sábado, 30 de setembro de 2017

Festival de Brasília – Parte X


Arábia (Idem, Brasil, 2017)
Dir: Affonso Uchoa e João Dumans


Adirley Queirós, ao apresentar no festival, um dia antes, seu Era uma Vez Brasília, falou sobre sua descrença na narrativa convencional e nos modos cada vez mais comuns de contar histórias, incômodo que fica impresso no seu filme. Trata-se de provocação válida, que encontra cabimento dentro de sua proposta autoral, conceitual e política do próprio cinema. Mas eis que no último dia da mostra competitiva chega-nos um filme como Arábia para reafirmar o poder da narrativa, da palavra, da ação em subsequência, surpreendendo ainda por encontrar afeto na vida e pensamento de um operário, personagem facilmente secundarizado.

Dirigido por Affonso Uchoa e João Dumans, Arábia trouxe um respiro muito bem-vindo para uma seleção de longas cheia de tropeços em Brasília, ainda que os filmes suscitassem questões importantes a serem debatidas – e foram, alguns com mais força que outros. Arábia também toca em questão crucial: a difícil vida de trabalhadores braçais que passam de emprego em emprego nas fábricas e regiões operárias, encarnada aqui na trajetória errante de Cristiano (Aristides Souza). Antes de chegar a ele, o filme começa na Vila Operária de Ouro Preto, onde um garoto vive com o irmão mais novo. Um dia, ele encontra um caderno esquecido de um dos operários. Naquelas páginas está o relato em primeira pessoa de Cristiano, rememorando as voltas que deu e as experiências de uma vida, suas complexidades e frustrações.

Os diretores oferecem um olhar muito bucólico para esse personagem e o universo em que está inserido. Assim como acontece em Café com Canela, o protagonista nunca é visto pela chave do clichê e do que se espera de um operário (rudeza, pouca inteligência, falta de criticidade), tipo de estereótipo a que personagens assim estão sendo sempre representados nas telas e ficções. Cristiano tem sonhos, aspirações, pulsões amorosas, mas também uma passagem pela cadeia – sua narrativa começa logo após ele conseguir escapar da prisão – além de outras complicações que virão a seguir no seu caminho tortuoso – o filme nunca o endeusa. Tudo isso passa pelas projeções de si que ele perfaz em sua escrita simples, mas repleta de sinceridade.

A forte base literária do filme preenche a narrativa de uma poesia do mundano, o que faz de Arábia uma espécie de crônica da luta constante desse homem na tentativa de se manter de pé, de seguir em frente tentando se firmar no mundo enquanto este mesmo mundo quer colocá-lo para baixo. Há ali uma poética do proletariado, no sentido de dar forma a uma veia criadora de subjetividades, um sujeito literário que vemos nascer para fazer uma autoficção muito particular. Podemos mesmo questionar as camadas de ficcionalização que existem nessa operação em que o filme nos coloca: um menino com referências literárias lê a narrativa que um outro desconhecido escreveu de si próprio e que se transforma na tessitura fílmica.

Porém, apesar dessas camadas formais, o filme está menos preocupado com a proposição de uma narrativa que discuta suas nuances, ou seja, com uma metanarrativa fílmico-literária, e muito mais interessado no substrato moral e íntimo que dê conta de forjar a identidade do protagonista, através de uma aparente banalidade de seu cotidiano. É quando o ordinário se torna pulsante, sem abandonar a cadência naturalista que dita o ritmo do filme. Aristides Souza, ator não-profissional, dá corpo e voz para esse jovem homem do trabalho, e é importante destacar essas duas dimensões de sua atuação. Primeiro porque Arábia concentra-se muito no texto em voz off do próprio Cristiano, dando consistência aos testemunho de suas aventuras errantes; mas é também muito forte a presença de Aristides em tela como imagem e semblante do jovem à procura de seu lugar no mundo.

Aristides já estava lá no longa anterior que Uchoa havia dirigido, o ótimo A Vizinhança do Tigre, documentário que olha para os jovens de uma periferia de Belo Horizonte muito próximos do crime e da violência urbana. É curioso pensar que ator e personagem se confundem no novo filme, espécie de prolongamento ficcional do que seriam os caminhos de oportunidades a serem perseguidos por alguns daqueles jovens. Agora, junto com Dumans, Uchoa avança na proposição de dar a ver um espaço de conquistas e subjetividades muitas vezes negadas a tais personagens, que crescem como pulsão de vida e resistência sob dura realidade.

No final do filme, depois de passar por muitos empregos e percorrer muito chão, Cristiano expõe o desejo de explosão da fábrica onde está trabalhando, uma vontade de libertação catártica que ganha dimensão figurada, mas não menos prenhe de desejos de fuga de uma estrutura aprisionadora (e esse é um mesmo gesto simbólico que Adirley Queirós já havia empreendido no memorável final de Branco Sai, Preto Fica, coisa que ele não conseguiu construir ou avançar em seu último trabalho). Mas se no filme brasiliense havia ira e vontade de enfrentamento, em Arábia há dissabor pelo tanto de esforço e luta que ainda serão exigidos desse personagem, enquanto o filme é ainda capaz de buscar confortá-lo. Não é um equilíbrio fácil de conseguir, mas sempre muito prazeroso de testemunhar.

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