Índios
Zoró – Antes, Agora e Depois? (Idem, Brasil, 2016)
Dir: Luiz Paulino dos Santos
Figura
por si só mítica e célebre, decano do cinema baiano e presença muito forte em
certos momentos da história do cinema nacional (como no caso de Barravento, filme que começou a dirigir, mas por desavenças com o
produtor, teve de ceder lugar ao jovem Glauber Rocha em seu
primeiro longa-metragem ali; ou também no fundamental curta Um Dia na Rampa), Luiz Paulino dos
Santos é um senhor de 83 anos, há muito afastado do cinema.
Surpreendentemente,
a Mostra de Tiradentes descobre esse filme curioso e que lança outro olhar para
a questão indígena. Se a competição principal do festival é destinada a filmes
de realizadores iniciantes em seus primeiros longas-metragens, a presença de
Luiz Paulino aqui é dessas apostas corajosas que são a marca de Tiradentes.
Isso por que existe o privilégio do filme de risco, lugar que Índios Zoró – Agora, Antes e Depois? preenche
muito bem.
Em
1983, Luiz Paulino filmou o curta Ikaténa
– Vamos Caçar, sobre a tribo Zoró. Agora, o diretor
retorna ao lugar e encontra os índios evangelizados. Se a comunidade indígena
já sofreu uma série de modificações culturais e de modos de vida diante de uma
sociedade “branca” bastante desafeita aos povos nativos, também Luiz Paulino já
não é mais o mesmo.
E
isso é importantíssimo no filme porque sua figura é central, a ponto dele ser
pensado mesmo como personagem principal da narrativa. Mais espiritualizado e evocando referências xamânicas, Luiz Paulino é quem guia os caminhos do filme, olhando com atenção e carinho o deslocamento da figura indígena naquele lugar,
oferecendo espaço para que o diretor posicione-se, mas com o traço da
generosidade afetuosa que ele nutre por aquela comunidade, e nunca de modo
meramente denuncista.
É
bom ver – como também está em outro filme da competição em Tiradentes, Taego Ãwa – um olhar sobre os povos
nativos que não passa pelo exotismo, pela observação antropológica/sociológica,
muito menos pela condescendência. Luiz Paulino se insere com muita naturalidade
naquele espaço, sente suas reconfigurações, mas continua disposto a gostar dele.
Índios Zoró –
Antes, Agora e Depois? deixa que o diretor/personagem interaja com o
ambiente e seus novos integrantes, mas flerta bastante com a memória,
especialmente nas imagens que resgata do curta anterior de Luiz Paulino e as
ressignificações que isso provoca, nele e no espectador. Seria uma experiência emocional muito forte - e não duvido que seja -, mas a preferência aqui é pela singeleza.
Aracati atravessa tema
muito caro às questões de (des)ocupação de espaço e que já tem sido abordado em
alguns filmes: cidades e/ou pequenas comunidades que desaparecem para dar lugar
a grandes empreendimentos, como represas ou fábricas. É o progresso chegando, e
vem com ele os questionamentos de “para quem?” e “a custo de quê?” Apesar de
apontar para essas proposições sociopolíticas, Aracati busca o registro da melancolia poética para dar conta de
uma paisagem bruscamente ressignificada.
No
caso aqui, estamos na região do interior do Ceará, o Vale do Jaguaribe. A ideia
é perseguir a rota do vento Aracati, num movimento que sai do litoral e adentra
o interior do Estado. E filmar o vento se torna aqui uma curioso, além de
corajoso, ponto de partida, espécie de abstração que, mesmo na tentativa
de ser seguida à risca, ganha outros propósitos porque o vento não aparece
sozinho na paisagem.
Trata-se,
talvez, e no bom sentido, de uma bela desculpa para olhar uma região e
algumas de suas implicações na relação com outros elementos - tecnológicos, humanos. O filme se esclarece todo por imagens – não há narração ou letreiros explicativos – e a imagem surge
aqui como força não só estética, mas como modo de expressão que interpela a
observação.
A
entrega a esse tipo de registro faz ver, para além da beleza – mesmo que à
natureza se misturem máquinas e engrenagens, inseridos ali pelo homem – o espaço em modificação, sem que o filme soe de algum modo denuncista. Ao
contrário, é muito plácido e guia o espectador por um caminho de contemplação e
descoberta, ainda que também de questionamentos.
Existe
um formalismo que se apresenta no enquadramento rígido, no plano longo e na
contemplação dos espaços. De início, pode distanciar e parecer frio demais,
excessivamente preocupado com a forma, mas aos poucos o filme te ganha não só
pelas belas cenas, mas pela compreensão do tipo de mudança brusca que aquele
lugar sofreu.
Quando
o elemento humano entra de modo mais concreto na narrativa – penso que ele
sempre esteve ali, pelo menos atrás da câmera, mesmo que como sujeito que vem de
fora – o filme cresce um pouco mais. Os homens da terra, antigos moradores das
redondezas que já parecem deslocados naquele espaço tão pouco afeito à presença
humana, são interpelados pela equipe de filmagem e acrescentam novos
componentes ao filme: desde as questões sobre o que seria real ou não, os
limites da ficção, a possibilidade do surreal e mesmo o repensar do lugar do
Ceará no mapa do Brasil, tudo isso com muita graça. São momentos de rara beleza e espontaneidade que surpreendem
pela complexidade que trazem à narrativa.
É como se essa
presença natural do ser humano trouxesse consigo um componente fabular, pondo
em questão a própria natureza realista daquele lugar – e todo aquele maquinário
das fábricas e torres eólicas não seriam, justamente, marcas “de outro mundo”,
alienígena? Dessa forma, Aracati torna-se
uma bela experiência de despreendimentos e descobertas, ainda que sobre uma
sensação de perda pelo o que aquele lugar se tornou.
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