segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Mostra de Tiradentes – Parte II


Futuro Junho (Idem, Brasil, 2015)
Dir: Maria Augusta Ramos


Se os movimentos de reivindicação e mobilização políticas, em grande parte encabeçada por jovens, ganharam as ruas de todo o Brasil nos últimos anos, marcando profundamente a sociedade brasileira mais engajada, no cinema esse mesmo movimento rendeu poucos registros realmente potentes como cinema (muito embora, enquanto imagem documental muitos deles são fortíssimos).

À primeira vista, Futuro Junho poderia ser esse filme, diante de tantas tentativas que ficaram somente na superfície. Mas no fundo extrapola essa espécie de classificação e acaba sendo o retrato de indivíduos díspares envoltos numa questão que engloba tudo isso: a vida financeira no Brasil.

Tem a mão segura e competente da documentarista Maria Augusta Ramos, cineasta brasileira que enveredou muito bem pelos caminhos do cinema documental direto em sua já consistente obra. Seu estilo está marcado pelo rigor formal e pela característica de encenação que existe na reprodução do real ali captado por sua câmera aparentemente invisível.

Com Futuro Junho, a diretora parte desse momento recente de efervescência mobilizadora da vida política para construir um filme mosaico com gente palpável, de carne e osso, multifacetada. Ela observa a rotina, familiar e profissional, de quatro personagens distintos em São Paulo: um economista, um operário de fábrica automobilística, um líder sindical e um motoboy, muito embora eles revelem mais de si mesmos do que essas simples denominações de cada um.

É uma maneira inteligente de lidar com um tipo de temática espinhosa que rende discussões acaloradas, muito reveladora da situação social, econômica e política do Brasil nesse momento conturbado. Alcança ainda um lado muito humano e afetuoso da situação, nas particularidades e contradições de cada um.

Mesmo sem ir fundo nas muitas questões que se deixam entrever ali, embora as muitas leituras possíveis de se fazer do rico material estão completamente abertas, Futuro Junho é o que se espera desse tipo de proposta. Aponta ainda para um olhar apurado e menos apressado sobre os imperativos econômicos em nossa vida prática.


Através da Sombra (Idem, Brasil, 2015) 
Dir: Walter Lima Jr.



Mesmo que muitos realizadores brasileiros contemporâneos sejam confessos admiradores do cinema de horror mais clássico, é curioso perceber que o horror o filme nacional tenha ganhado força a partir de construções mais conceituais (caso de Trabalhar Cansa e Quando Eu Era Vivo, para citar alguns). Mais recentemente algumas propostas mais convencionais têm surgido numa espécie de filão aberto (como O Amuleto e Isolados).

Por isso é tão curioso perceber como a proposta de Através da Sombra esteja em emular um tipo de narrativa de horror bastante clássica e mesmo elegante, fazendo mesmo questão de utilizar elementos tão comuns ao gênero (a casa mal assombrada, crianças como presenças que guardam segredos, limite entre a percepção da realidade versus a loucura, vultos e visões várias). Interessante também é pensar na figura de uma cineasta veterano como Walter Lima Jr. à frente desse tipo de filme.

Apesar de lidar com esses clichês, o filme assume um lugar de apropriação muito consciente dos cânones do filme de horror com muita classe. O casarão sombrio é parte de uma grande fazenda cafeeira, ainda na época escravocrata; o forte cheiro de café queimado empesteia o lugar e prenuncia maus agouros. É para lá que vai a professora Laura (Virgínia Cavendish), contratada para cuidar da educação de duas crianças, além de assumir a governança da propriedade.

Se o filme consegue ser feliz ao formatar uma atmosfera que culmina no horror psicológico, além de contar com um design de produção caprichadíssimo, o roteiro se abre a uma série de possibilidades que desencaminham a trama. Deixa escapar tantas arestas e questões que vão surgindo no caminho – e na mente – de Laura que parece mesmo um tanto perdido sobre onde quer chegar com seus muitos desdobramentos e reviravoltas.

É claro que a morte permeia o ambiente, assim como a figura recatada e enlutada de Laura é confrontada com certas pulsões sexuais retraídas. Mas o roteiro inchado acaba por levar o filme para caminhos pouco focados. Poderia ser uma maneira de abandonar o classicismo da coisa toda, mas resulta na perda de intensidade dramática da trama, e sobram meros sustos e aparições fantasmáticas nas janelas.


O Diabo Mora Aqui (Idem, Brasil, 2016) 
Dir: Dante Vescio e Rodrigo Gasparini


Delirante filme de terror nacional, O Diabo Mora Aqui é um achado dentro da produção recente que mira no horror como ponto de interesse resgatado nos últimos tempos (e a Mostra de Tiradentes se revela atenta ao gênero depois de ter exibido ano passado As Fábulas Negras, e ter iniciado sua edição de 2014 com Quando Eu Era Vivo).

O filme da dupla paulista aposta no terror macabro, com direito a grupo de adolescentes que viajam para uma casa no meio da floresta, além de toda a atmosfera de filme B trash. No entanto, seu maior trunfo é contar com um enredo bastante original que dialoga muito com certo passado brasileiro, mas surpreende por nunca se mostrar previsível e pelos estranhos detalhes que compõem seu universo mítico.

A grosso modo, há uma espécie de uma antiga lenda que dá conta da história do Barão do Mel, antigo senhor de escravos que tinha prazer em maltratar os negros que lhe serviam. Ele acaba sendo “derrotado” por conta de uma maldição antiga que envolve um bebê sacrificado e uma entidade macabra senhoril escondida nas entranhas da terra. A possibilidade de libertação desses seres é para onde convergem os episódios de pavor que veremos no longa, praticamente se passando no decorrer de uma noite.

O filme parece mesmo interessado em contar essa história, nos fazendo entender suas peças, enquanto os personagens vão se encontrando. E através dela, o filme dá vazão aos elementos do terror e não o contrário ao fazer do enredo mero subterfúgio para sustos e sangue jorrado.

Em determinados momentos certos detalhes e reviravoltas do roteiro podem até ser postos em questão, mas existe outra potência que sustenta o filme, para além do prazer pelo gore, sujeira e pelo macabro: consegue crescer em delírio e surto na medida em que nos rendemos aos terríveis desdobramentos que se desenrolam naquela casa, no embate de personagens tão bizarros e mesmo palpáveis em suas convicções e objetivos. 

O tom alucinado é fortalecido por um desenho de som que acrescenta camadas de horror e estranheza à trama na medida em que acompanha o fluxo insano de piração intensa que vai surgir da metade em diante (algo bastante visível no conjunto de atuações de todo o elenco, partindo do natural para o histriônico com ganho total de efeito dramático). O Diabo Mora Aqui é desses que dá gosto de ver surgir no panorama cinematográfico nacional.

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