Serras da Desordem (Idem, Brasil, 2006)
Dir:
Andrea Tonacci
O
índio Awá, mais tarde conhecido como Carapirú, teve sua tribo dizimada. Fugido,
foi parar numa pequena e pobre comunidade que o acolheu afetuosamente. Depois,
foi apadrinhado pela Funai que cuidou da integridade do indígena. Pelas mãos do
indigenista Sydney Possuelo, ele foi cuidado e teve um encontro inusitado com
outro índio que se revelou ser seu filho, o bebê de quem ele foi separado quando
a tribo foi atacada.
Essa
história verídica é recontada num misto de encenação e documentário pelas mãos
do mestre Andrea Tonacci, figura fundamental do chamado Cinema Marginal. 10
anos depois de aparecer para o público na Mostra de Cinema de Tiradentes, eis
que Serras da Desordem ganha revisão
no mesmo lugar, em espaço de honra. Andrea Tonacci é homenageado dessa edição
da mostra e tem sua obra discutida e celebrada.
Serras da
Desordem
ganha lugar para mostrar por que é um filme tão forte de construção narrativa,
para além de denunciar o genocídio do povo indígena no Brasil, algo que tantos
outros filmes fizeram e têm feito recentemente. Mas nas mãos de Tonacci essa
história ganha nuances mais ricas, como cinema, sem ranços de militância
exacerbada.
Pelas
frestas da encenação, surgem aqui, pelo menos, duas possibilidades muito
potentes de representação do real: aquela como observação dos fatos ocorridos (como
os momentos de placidez e rotina da tribo de Carapirú, em total harmonia com a
natureza) e aquele do real fílmico da própria feitura do filme (o retorno de
Carapirú a certos lugares por onde ele passou nesse trajeto, como na comunidade
que o acolheu ou a convivência com a família de Possuelo).
Serras da Desordem abre-se para
uma construção narrativa cheia de complexidades – como era de se esperar de um
filme de Tonacci –, interpelando o espectador sobre a natureza das imagens
enquanto construção fictícia ou documental, já que alterna essas duas chaves,
sem, no entanto, chamar atenção para elas. Lança mão, inclusive, de uma
fotografia que reveza entre o preto-e-branco e a colorida.
Algumas
vezes o filme faz questão de revelar seu traço de ficcionalização, mas também mostra
personagens dando depoimentos diretamente para a câmera. O filme de Tonacci
pode servir mesmo como um paradigma precursor de uma tendência muito forte no
cinema brasileiro em equilibrar o real e a encenação. Mas sem pretensões de reinventar
a roda” (em certo momento, utiliza imagens de Iracema – Uma Transa Amazônica, filme que já continha esses
elementos, isso em 1975). Há mesmo uma preocupação clássica em contar uma
história por si incrível, sem grandes rodeios, mas com pitadas de criação
formal.
O
filme ganha força também por retomar a discussão sobre a situação indígena no
país a partir de um escopo maior. Atravessa a História do Brasil, no seu avanço
pela modernização e desenvolvimento técnico e social, para expor a crueza no
retrocesso em lidar com os povos nativos, apontando para o caminho mesmo do
extermínio. Tonacci faz esse apanhado resgatando uma série de imagens
documentais de certo imaginário brasileiro que remetem a essa ideia de
desenvolvimento, sem dizer uma palavra sobre isso. E, mais uma vez, sem parecer
que está fazendo um tratado sociológico.
A
própria figura de Carapirú no fim do processo de reintegração à sua tribo
original – ou o que restou dela – não deixa de revelar um sujeito indígena que
já carrega costumes do “homem branco” (veste roupas e come de colher, por
exemplo). É como um processo irreversível que transparece pela feição harmoniosa
do índio, mesmo quando narra suas desventuras.
Serras da Desordem ainda chega ao ponto
de colocar em evidência a própria manipulação da imagem cinematográfica como
predestinada a contar histórias. No começo do filme, Carapirú, em sonho,
repassa sua vida. Ao fim, o sonho revela-se narração fílmica. Cinema, portanto,
é quimera, mas também realidade.
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