terça-feira, 3 de março de 2015

Campo de batalha operário

Dois Dias, Uma Noite (Deux Jours, Une Nuit, Bélgica/França/Itália, 2014)
Dir : Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne




A escrita fílmica que os irmãos Dardenne construíram em sua carreira parece cada vez mais sólida. E pelo visto eles estão longe de querer fugir dessa zona de conforto. Câmera trêmula filmando as pessoas de perto, situações-limite, personagens em movimento constante, apego ao plano-sequência, questões de cunho social – aqui perpassado pelo financeiro e trabalhista – como mola propulsora da narrativa, realismo de urgência.

Tudo isso está em Dois Dias, Uma Noite. Se o filme transparece tão concisamente uma sensação de dèjá vu na encenação, é no roteiro que parece residir certa fragilidade do filme. De perto, há algo de maneirista na forma como a protagonista busca reverter sua posição na iminência de perder o emprego. Há algo de calculado no desdobrar das situações que parecem estar ali para reforçar a crítica social que se quer tecer, e em maior escala para que o final possua certa reviravolta que vai dizer muito sobre sua protagonista.  

Sandra (Marion Cotillard) começa o filme sendo demitida do emprego. Por pressão de seu supervisor, os colegas de trabalho votaram para que ela saísse em troca de uma bonificação financeira para cada um. Agora, o trabalho de Hércules de Sandra é tentar convencer os colegas, um a um, numa nova votação, a abrirem mão da grana para que ela continue no emprego.

Essa é a forma inteligente dos Dardennes apertarem a ferida da crise financeira europeia. É no confronto de Sandra com seus colegas que a situação ganha dimensões palpáveis porque cada um deles, assim como ela, enfrenta problemas diários, têm contas a pagar e estão com a corda no pescoço. O cenário não é nada agradável para essa classe média. Mas há humanidade ali também, nesse embaraçoso jogo entre ver o eu e o outro. Por mais que o dispositivo narrativo soe repetitivo, o filme nos faz torcer por essa mulher impelida a agir em prol do sustento do seu lar.



E é difícil negar como Cotillard é o grande trunfo aqui. Curioso pensar nela como a força do filme quando sua personagem marca-se justamente pela fragilidade, quase que obrigada pelo marido (Fabrizio Rongione) e pela amiga de trabalho a ir à luta. Ela carrega um histórico de depressão sugerido pelo filme e junta força nos remédios para seguir sua jornada, ainda que a contragosto. Talvez nem ela mesma acredite na vitória do empreendimento, mas está num campo de batalha que lhe dá trégua.

Daí que não basta o problema que é ter de convencer a todos, há ainda o conflito interno de se dispor a empreender aquela jornada. A protagonista é posta em ação desenfreada, o tempo a seu desfavor. Tudo isso para que Sandra, ao fim, reforce sua dignidade. É mais uma protagonista dardenniana torta, porém pulsante, ainda que sob a força cruel das circunstâncias. 

Com o domínio preciso das tensões interpessoais que os diretores possuem – tão humanistas nas diversas facetas apresentadas – as fraquezas do roteiro podem até soarem diminutas. O próprio absurdo da situação demonstra as garras ingratas do capitalismo mais competitivo e só reforça o estado atual de um mundo cruel para o trabalhador médio. Este campo de batalha estará sempre ativo.

2 comentários:

Alex Gonçalves disse...

Rafael, a analogia a Hércules é genial, uma pena que a protagonista não tenha 12 colegas de trabalho, mas 16, o que renderia muito pano para a manga. Como não é segredo, não aprecio o cinema dos Dardenne, essa zona de conforto mencionada é incômoda. Eles não parecem progredir de um filme para o outro, fazendo somente um processo de reciclagem de personagens e os contextos em que estão inseridos. Ainda assim, "Dois Dias, Uma Noite" consegue ser o melhor que eles produziram até hoje (bom, ao menos considerando o que já vi), ainda que as muletas da narrativa pesem muito contra o resultado final mais positivo.

Rafael Carvalho disse...

Alex, eu já vejo uma pequena progressão entre um filme e outro, principalmente no que diz respeito à inclusão da esperança nos seus personagens. Os primeiros filmes são muito duros, depois eles começam a ser mais condescendentes. Mas enfim, entendo que os filmes se pareçam muito, mas o estilo que eles imprimem aos filmes é incrível. E diferente de você, já acho esse aqui um pouco mais fraco do que os demais, ainda que goste do filme.