sábado, 21 de março de 2015

Star sick system

Mapas para as Estrelas (Maps to the Stars, EUA/Canadá/ Alemanha/França, 2014)
Dir: David Cronenberg


Mapas para as Estrelas pode ser visto como o filme mais exemplar de uma nova “fase” de David Cronenberg (mas não certamente seu melhor). É um momento em que a doentia das pessoas no mundo encontra na narrativa uma atmosfera limpa, classe A, distante do aspecto sujo e grotesco de seus trabalhos de início da carreira (seria esse o filme mais asséptico de Cronenberg?). Essa nova postura não impede que o diretor continue mirando nas questões que lhes são caras, o corpo mais uma vez como lugar de inscrição de marcas indeléveis.

O diretor encontrou no coração de Hollywood e suas intrigas entre astros de ego inflado o ambiente ideal para refletir sobre certo estado de podridão da mente e alma humanas. O filme não poupa ninguém. De Havana (Julianne Moore), atriz de meia idade que quer o papel num remake outrora estrelado por sua mãe, ao astro mirim egocêntrico Benjie (Evan Bird), agenciado por um pai ganancioso (John Cusack) e uma mãe traumatizada (Olivia Williams). É a chegada da misteriosa Agatha (Mia Wasikowska), garota com pretensões de estrela, que tumultua a rotina desses personagens.

Baseado no livro Dead Stars, de Bruce Wagner, que o adaptou para o cinema, Mapas para as Estrelas trafega por um terreno já muito pisado por outros, apontando o dedo para o cinismo e obscurantismo do star system e daqueles que fazem a roda da fortuna e da vaidade girar, e isso não é lá mais novidade. De um Robert Altman, num filme mosaico como O Jogador, a Sofia Coppola e seu minimalismo em Um Lugar Qualquer, dentre tantos outros.

O próprio fato de todos os personagens principais serem pintados com tintas fortes de doentia pode tornar o discurso do filme um tanto tendencioso: ninguém se salva, não há carinho por esses homens e mulheres escrotos vivendo de aparências, mirando nos dólares e capas de revistas que poderão ganhar. Pode ser fácil apontar o dedo e rir de gente visivelmente tão canalha, o que garante de imediato uma adesão cúmplice do espectador.

Mas o que faz uma bela diferença aqui é que, além de hábil encenador, Cronenberg consegue explorar seus velhos temas, para além do aspecto de sujidade do humano. Só que agora numa estética mais clean, “refinada”, contrastando com a imundice interior de cada um dos personagens. Cineasta que tão bem explora os limites do corpo, inscreve na carne de seus personagens os indícios de seus dramas. Havana começa o filme numa sessão de terapia em que seu corpo é contorcido enquanto é lembrada dos traumas do passado, o mesmo preservado nas cicatrizes que Agatha esconde no corpo.

E há ainda uma curiosa investida ao tom cômico que invade o nonsense de muitas situações e transforma tudo num jogo de humor negro delicioso. Certa comemoração da personagem de Havana – bye Micah! – numa dada cena é desde já uma dos momentos mais abismais do ano, alegremente aterrador na maneira de olhar para as atitudes dessa mulher. Referências e indiretas sobre figuras reais do universo hollywoodiano são disparadas pelo filme sem concessões, tiradas engraçadas e de um sarcasmo que poucas vezes se vê tão descaradamente num filme. 

Com Mapas para as Estrelas o diretor canadense acaba seguindo os caminhos naturais de um filme taxativo, mas mantém em alta os tons de cinismo. Pode parecer pouco, mas nas mãos de Cronenberg isso vira um jogo perverso (e delicioso de acompanhar) que só expõe as mazelas de certo círculo vicioso no mundo das artes cinematográficas. Se num filme como Cosmópolis, para ficar num exemplo recente, há algo de muito mais provocador e complexo sobre o muno do dinheiro e seus atores, aqui o propósito do olhar é menos pretensioso, mas o resultado não deixa de ser recompensador.

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