domingo, 14 de setembro de 2014

CachoeiraDoc – Parte III


Jia Zhang-ke é hoje um cineasta sensação no círculo alternativo quando se fala em cinema mundial. Seu olhar aguçado sobre a China atual em vertiginosa transformação é de uma agudeza e melancolia latentes. Uma beleza ter a oportunidade de ver alguns de seus filmes na programação do CachoeiraDoc. 

Memórias de Xangai (Hai Shang Chuan Qi, China, 2010)
Dir: Jia Zhang-ke  

 
Uma grande preocupação temática tom lugar central na obra de Jia Zhang-ke: a modernidade que chega à China modificando drasticamente o espaço geográfico e com ele vai levando a história de um povo. Quando se detém em observar a transformação urbana em Memórias de Xangai, Jia parece antever duas cidades: a moderna, porém cinzenta, que engole a antiga, ainda povoada de memórias.

E mais importante que olhar para a cidade, é prestar atenção justamente no que as pessoas têm a dizer sobre seu passado. Em Memórias de Xangai, o diretor colhe depoimentos de várias pessoas que relembram episódios de suas vidas naquela cidade, importante centro comercial por conta de sua via portuária. Especialmente aqueles cujas famílias tiveram de fugir da Revolução Cultural promovida pelo governo de Mao Tsé-Tung, indo parar em Hong Kong e Taiwan.

É a partir desse movimento que ele reconstrói a própria história de Xangai, passando por turbulências político-culturais e fluxos migratórios com o passar do tempo. Através das narrativas e memórias particulares, afetivas mais que tudo, o cineasta alcança as dimensões históricas de um país. Pinça no passado narrativas que correm o risco de sumir no futuro.

Zhao Tao, a atriz fetiche do diretor, aparece em cena como um espectro que percorre a velha cidade, justamente aquela que deixa ver jogados nas ruas os destroços de construções antigas. De modo figurativo, é dali que ela parece recolher essas memórias diluídas no tempo.

E também no próprio cinema, que ganha importância fundamental como preservadora de imagens de um tempo a não se esquecer. É famosa, e relatada no filme, a ida de Michelangelo Antonioni ao país oriental para rodar um documentário sobre a Revolução de 1949 mas que acabou denunciando a China “real” e banido na país. Ou a incursão do celebrado cineasta taiwanês Hou Hsiao-hsien quando rodou Flores de Xangai.

Jia Zhang-ke é o cineasta dos escombros, que enxerga com melancolia essa crescimento acelerado do gigante vermelho. Mas é também o cineasta que sabe olhar para o humano, para as narrativas dessas pessoas que fazem pulsar a história de um país, antes que a modernidade a soterre.


Inútil (Wuyong, China/Hong Kong, 2007)
Dir: Jia Zhang-ke 

 
No universo da moda e da alta costura chinesa, a famosa estilista Ma Ke tem um projeto curioso: busca conferir um valor simbólico a peças de roupas artesanais enterrando-as no solo. É uma tentativa de absorver certa memória antiga incrustada na terra, representativa da história de uma coletividade que tem perdido o valor num sistema sócio-político arrasador.

Lembremos que a China é o país que mais exporta roupas para o mundo, com sua agora fabricação em larga escala de peças padronizadas e quase descartáveis. É para esse modo de produção que tomou lugar nessa China neocapitalista que Ma Ke (e Jia, por conseguinte) olha criticamente. Mas enquanto a estilista permanece em seu estúdio preparando-se para expor suas peças numa semana de moda na França, ainda que mantenha um discurso politizado, o olhar de Jia é mais profundo, mais amplo.

Sua câmera visita e observa, com longos takes, as fábricas têxteis que agrupa centenas de funcionários mal remunerados que produzem, em massa, roupas comuns. Numa cena icônica, eles precisam passar por entre grades para chegar ao local de trabalho. Operários sorrateiros, parecem aprisionados num sistema trabalhista cada vez mais desumanizado e redutor.

Jia viaja também para sua terra natal, Fenyang, no interior do país onde ainda subexistem costureiros e pequenos alfaiates que suprem as simples necessidades de vestimentas das pessoas locais. Mas esse é um ofício que está desaparecendo, pois ganha-se mais trabalhando como mineiro num país que tanto valoriza a construção civil. Nessa nova condição de trabalho, por entre a terra, os mineiros são os verdadeiros detentores de saberes e histórias antigas, gente comum, dona de uma memória que tem virado pó nesse processo cruel de modernidade da China.

É aqui que a proposta artística de Ma Ke parece ser escancarada e posta em xeque pelo filme. Aqueles mineiros estão, literalmente, cobertos de terra, junto com suas vivências pessoais e afetivas, correndo o risco de desaparecer diante do gigante chinês que sufoca as vozes do passado em nome do progresso, um dos grandes temas da obra de Jia Zhang-ke.

Os corpos desses homens soterrados da terra (em mais de um sentido), quando se juntam para se banhar, lembram as modelos que vestem as roupas soterradas de Ma Ke. Mas esses homens aqui não aparecem estáticos em pedestais aos olhos de uma plateia curiosa e fetichista. Quem olha para eles? Sob o signo da terra, Inútil é mais uma observação, sobretudo melancólica, de Jia sobre uma realidade avassaladora.


24 City (Er Shi Si Cheng Ji, China/Hong Kong/Japão, 2008)
Dir: Jia Zhang-ke 



Com 24 City, Jia Zhang-ke parece operar no mesmo registro da coleta de depoimentos visto em Memórias de Xangai. O foco agora são as histórias dos trabalhadores de uma antiga fábrica estatal de munições. Toda ela está sendo demolida para dar espaço a um complexo habitacional de luxo.

O cineasta vai em busca dessas memórias porque, em nome do progresso, o país tem demolido, literalmente, suas antigas construções para dar lugar a uma China moderna, aos moldes das grandes metrópoles mundiais. Em contrapartida, deixa de lado as narrativas afetivas dessas pessoas anônimas, que carregam vestígios da própria História da China. Tem-se aqui, portanto, mais uma variação de uma temática cara ao cineasta chinês.

Mas o mais curioso aqui é que alguns desses depoimentos são encenados por famosos atores chineses, ainda que baseados em falas “reais”. Dessa forma, o cineasta põe em xeque a representação do real e o mistura com encenações. É uma marca presente em sua obra essa hibridez de registros, dado que Jia trabalha com questões de uma realidade presente, latente.

No entanto, essa proposta parece fazer mais sentido para o espectador chinês que reconhece mais facilmente esses atores. De qualquer forma, a força dos testemunhos enche de riqueza e melancolia esse emaranhado de histórias. Exala sinceridade de todas elas, encenadas ou não. Assim como em Memórias de Xangai, o diretor não tem receio de utilizar longos depoimentos para a câmera.

Curioso que no meio dos relatos, uma tela preta entrecorta as imagens, como se o cineasta desse a impressão de que a fala fosse acabar ali. Mas ela volta, permanece viva, como deve permanecer na História oficial a história particular, coletiva, de um povo. É nesse conflito constante que a obra de Jia opera.

Talvez em 24 City o diretor tenha criado uma das sequências mais icônicas e representativas de sua carreira (rivalizando com aquela de Em Busca da Vida em que um prédio alça voo): quando umas das paredes da fábrica é demolida, a poeira sobe e se lança em direção à câmera. O letreiro de um poema de Yeats diz “As coisas que pensamos e fizemos/ se espalham antes de desaparecer/ como leite derramado sobre a pedra”. A China põe abaixo essas memórias, mas a câmera de cinema está lá para captar essas partículas de poeira e História que se esvaem no tempo.

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