sábado, 14 de julho de 2012

Em busca de uma geração

Na Estrada (On the Road, EUA/Reino Unido/Brasil/França, 2012)
Dir: Walter Salles

  

Um dos perigos das adaptações de grandes obras literárias é o aprisionamento a conceitos, ideias e pressupostos por vezes já tão consagrados e amados por conta do material prévio. Menos mal quando a transposição se pretende livre, o que não é o caso de Na Estrada, comandado por Walter Salles, levando para as telas On the Road, o livro-chave da geração beat, movimento transgressor que surge nos Estados Unidos em fins dos anos 40, uma ode à liberdade, sexo, drogas e desvarios de uma juventude inquieta com seu tempo.

Aquele espírito livre-jovem-inconsequente do livro de Jack Kerouac surge bem apreendido aqui, pulsa na tela com certa força, mesmo que não seja uma constante durante todo o filme. Daí que Na Estrada não se distancia do que se propõe a realizar, fazer justiça ao livro que influenciou toda uma geração, mas também nem sempre chega a empolgar tanto. O roteiro de Jose Rivera, o mesmo parceiro de Salles em Diários de Motocicleta, parece no lugar, mas podia ser mais ousado.

No fundo, o enredo se lança a um arco desordenado (e isso é um elogio) já que a história original não possui um fio narrativo concreto a seguir. Sal Paradise (Sam Riley) encarna a persona do próprio Keroauc, incipiente escritor que conhece o inconsequente e aventuresco Dean Moriaty (Garrett Hedlund), símbolo hedonista do movimento e guia (a)moral dos jovens desajustados. Com ele e outros, seus iguais, ou mesmo sozinho, parte não em uma, mas numa série de viagens, cruzando cidades e estados norte-americanos, indo de lá pra cá, em busca de um algo que nem eles sabem bem explicar o quê. São experiências de vida, enfim.

Na Estrada é por isso mesmo um filme bastante musical, tendo o jazz e o blues não só como referências diretas do que aqueles jovens gostavam de ouvir, no submundo da cena musical (o underground sempre como preferência dessa geração), mas também funciona como propulsora ao embalar o trajeto torto dos personagens, como se eles improvisassem o seu caminho à medida que o fazem.

Ainda assim, o filme parece preso a uma necessidade de demarcar grande parte dos acontecimentos do livro (mesmo tipo de problema de lógica adaptativa que Fernando Meirelles utilizou em Ensaio Sobre a Cegueira), o que deixa o filme um tanto travado em alguns momentos, como a necessidade de apresentar certos personagens que não poderão ser melhor desenvolvidos no filme (os mais prejudicados são a trabalhadora rural de Alice Braga e a representação do beat William S. Burroughs, encarnado por Viggo Mortensen, junto com sua esposa vivida por Amy Adams – esses dois últimos, aliás, em ótimas atuações).

Se do lado de outros filmes de Walter Salles, Na Estrada empalidece um tanto, pelo menos o filme faz muito sentido dentro da filmografia “road movie” tão cara ao cineasta. Desde o plano que abre o filme, com foco nos passos de Sal pela estrada de terra batida, ao som de uma música triste por ele cantada, temos a sensação de que um filme sobre deslocamentos (em vários sentidos) parece estar nas mãos certas. Precursores dos hippies e da contracultura que floresceria nos anos 60, a geração beat tem aqui um belo defensor, mesmo que não à altura das grandes obras literárias que eles escreveriam. Seria pedir demais, talvez, mas ainda assim Na Estrada funciona como espelho daquela geração.

8 comentários:

ANTONIO NAHUD disse...

Já desconfiava que NA ESTRADA seria uma pálida tradução do clássico de Kerouac.

O Falcão Maltês

Kamila disse...

Infelizmente, "Na Estrada" ainda não estreou na minha cidade. Estou muito ansiosa para conferir o filme, não só por ser a adaptação de um clássico livro, mas também por ser uma obra dirigida pelo Walter Salles, que é um dos nossos melhores diretores. Não li seu texto direito para não perder a surpresa, para não ser influenciada por outras críticas, mas espero gostar do filme.

Depois, quando assistir "Na Estrada", volto aqui, leio seu texto com calma e o comento da forma que merece. :)

Leandro Afonso disse...

Sem poder falar do quão livre Walter Salles esteve para se afastar do livro, me soou uma tentativa de filmar o livro, e não de fazer um filme baseado no livro. Além dos personagens, sobre o quais você falou, temos situações e citações idênticas, de um Kerouac inspirado, mas que não inspiram o filme. São situações às vezes inspiradas, um espírito capturado, mas um road-movie insosso.

Para mim, o espírito do livro, o que naturalmente é tão caro aos fãs e a boa parte do público, está muito mais presente em um filme como E SUA MÃE TAMBÉM.

Rafael Carvalho disse...

Antonio, eu acho que o espírito do livro está lá. Talvez exista uma necessidade de pontuar determinadas questões que não ficam bem desenvolvidas e aí a tradução se torna um tanto capenga. Mas ainda assim é um bom filme.

Kamila, vou esperar seu retorno. Também gosto muito do Walter Salles, junto com o Eduardo Coutinho, considero-os nossos melhores diretores.

Leandro, insosso é um adjetivo que se aplica a muitas partes do filme, embora sejam transposições exatas como você coloca. Eu consigo ver o espírito do livro, no filme, mais na forma como a narrativa se dá, os vai-e-vens, as viagens desordenadas, a ausência de uma unidade de tempo e espaço, um frescor musical que vai levando os personagens em sua rota libertária e anárquica. Mas por vezes a coisa engessa e o filme perde esse espírito.

Alex Gonçalves disse...

Eu não gostei nem um pouco do filme. Não sou maior fã da obra de Kerouac, mas acredito que o escritor foi capaz de transmitir a sensação de liberdade que temos quando embarcamos numa aventura em que às vezes não há um destino determinado previamente. Agora, este filme do Salles nem parece um road movie, pois são mínimos os instantes em que vemos os personagens na estrada. O vemos em vários lugares, mas poucas vezes é registrado as dificuldades que tiveram para chegar aonde quer que seja.

Sem dizer que o filme tem um teor homoerótico que soa totalmente deslocado. Aliás, nem sei se foi a intenção de Salles e até achei estranho ninguém ter discutido isto ao falar sobre o filme, mas há cenas entre Sal e Dean em que isto fica bem claro.

Rafael Carvalho disse...

Ih Alex, tá de pá virada, hein. Eu tenho me desencantado pelo filme com o tempo. Ainda acho que certa atmosfera de liberdade anárquica está ali, mas sem a mesma força porque tem coisas muito "corretas" na transposição, sabe? São partes do livro muito demarcadas que precisavam ser colocadas de qualquer jeito no filme. Sobre o teor homoerótico, acho que o material já incita isso (e a própria vida pessoal dos personagens envolvidos), mas me parece algo mais acentuado no filme mesmo. Não vejo problemas.

Elizio disse...

Achei que ia achar um 'easy rider', mas achei um filme um tanto longo e caótico em alguns pontos. Se não tivesse o nome Walter Salles por trás, não sei seria tão bem visto.
Concordo com você com os personagens sem desenvolvimento. Acrescentaria a eles a propria Camille, mulher de Dean; ou até mesmo a mãe... que aparece em cenas perdidas do filme.

Não sei se vi o filme como Mais do Mesmo, mas fica uma sensação de "já sei o que vai acontecer..."

Rafael Carvalho disse...

Rapaz, como te falei em outra conversa, o filme tem ficado mais fraco pra mim cada vez que eu penso nele. Agora me parece um tanto burocrático, não é um filme que ficou marcado na memória. Se tivesse a pegada anárquica do Easy Rider, em sua forma, penso eu, seria realmente mais interessante.