terça-feira, 10 de julho de 2012

Tempo vivo


Girimunho (Idem, Brasil/Espanha/Alemanha, 2011)
Direção: Clarissa Campolina e Helvécio Marins Jr.

Dentro de uma certa cena independente no cinema brasileiro (pouco visto e conhecido, por isso é independente), o mineiro Girimunho faz parte dos bons projetos que despontam no ano na safra nacional, embora esteja longe de chegar ao grande público. A partir de um registro naturalista e intimista, o primeiro longa-metragem de Clarissa Campolina e Helvécio Marins Jr., ambos do coletivo Teia, é uma observação do tempo, pela visão envelhecida, e tudo de positivo que isso carrega, de uma senhora que vive no interior de Minas Gerais.

O que Dona Bastú (Maria Sebastiana Martins Alvaro) vê passar a sua frente é a vida simples e corriqueira de seu ambiente natural, a pacata paisagem ribeirinha de São Romão, às margens do Rio São Francisco, seu dia-a-dia e povo humilde. Mas sua visão se torna entremeada pela aura da morte ou da simples espera pelo fim, seja na morte repentina do marido Feliciano, seja pela própria consciência da sua finitude. A neta que está prestes a deixá-la para ir morar e trabalhar numa cidade maior seria um dos indícios dessa noção de “perda”. 

Porém, por mais sombrio e triste que tudo isso possa ter em essência, o que menos há em Girimunho é pesar ou tristeza pelo que se foi ou que está para ir. Pelo contrário, a rotina pacata e a espera pelo fim não impedem que a alegria ainda esteja presente. Não necessariamente uma alegria de festa (que também há), mas a de paz de espírito. Nem mesmo quando o espírito de Feliciano parece retornar para bater suas ferramentas na oficina de casa, assustando Bastú e intrigando os vizinhos, cria-se aí um clima de mistério ou tensão. Exala muito mais uma atmosfera de ancestralidade que aquele povo reconhece como possível.

É aí que entra em cena Maria do Boi (Maria da Conceição Gomes de Moura), senhora amiga de Bastú, cantadeira da região, celebrando com alegria a tradição oral que remonta a tempos imemoriais. É a ela que Bastú recorre para fazer acalmar a alma do marido, outra senhora que apresenta uma relação bastante particular com as coisas da morte, em especial através da celebração musical.

Para quem acha que nesse tipo de filme “nada” acontece, em Girimunho a noção de tempo está ligada à própria ideia de espera e daquilo que podemos fazer, ou como se portar (suportar?) enquanto aguardamos. Dona Bastú entende isso muito bem, não tem pressa da vida, como a própria narrativa do filme e seu apego pelos tempos mortos (expressão infeliz, me parece, porque a impressão de tempo, por mais estático que seja, sempre tem algo a dizer, algo sempre acontece). Afinal, como fala a protagonista em certo momento, “o tempo não para, quem para somos nós”.

Se o filme pode lembrar a atmosfera etérea e sensorial do cinema de um Apichatpong Weerasethakul, preservando a transcendentalidade da morte e seus mistérios, a obra mineira consegue se mostrar fiel a um certo estilo de vida interiorano brasileiro, que preserva ainda um conhecimento secular das coisas de seu povo.

O tom natural, outro fator forte de percepção na obra, é mérito de um trabalho de direção cuidadoso, que encontrou no próprio espaço físico pessoas que possuem contato direto com as questões apresentadas no filme. O aspecto documental é sentido em cada cena, principalmente pela presença dos atores que emprestam sua própria experiência de vida para compor seus personagens. Perfazendo um belo paralelo com o também mineiro O Céu Sobre os Ombros, Girimunho ganha força pela naturalidade imensa como que encena a própria vida de quem os faz, ao mesmo tempo em que o fio de história ficcional está presente a todo momento (e se conclua satisfatoriamente).

Por mais que esse tipo de experiência seja bastante propenso ao improviso e à interferência do acaso, como próprio da tradição documental, nota-se no todo uma preocupação pelo enredo contado e sua conclusão, embora aberta a muitas interpretações (e não deixa de ser interessante ver o nome de Felipe Bragança assinando o roteiro aqui, ele que revelou facetas mais fantasiosas e menos naturalista em filmes próprios como A Alegria e A Fuga da Mulher Gorila, em parceria com Marina Meliande, montadora aqui).

Em Girimunho, celebra-se a vida através da própria despedida, mesmo que ela demore ou que insista em não se cumprir. Porque mesmo na mais árida das regiões, onde nada parece acontecer e o tempo insiste em soar suspenso, um girimunho (um redemoinho, no dizer local) cruza, de relance, a estrada de chão batido. Revela vida, portanto. O tempo não parou.

2 comentários:

Elizio disse...

Me deu uma boa vontade de ver!!

Rafael Carvalho disse...

Rapaz, acho que você ia gostar, é de uma sensibilidade tocante. Mas o tom é bem calmo, sem pressa, lento a seu modo. Não tem problemas com filmes assim, tem?