quinta-feira, 17 de maio de 2012

Da arte e suas trucagens*

Cópia Fiel (Copie Conforme, França/Itália/Bélgica, 2010)
Dir: Abbas Kiarostami

Se o cinema iraniano possui uma vertente muito ligada ao neorrealismo italiano, fazendo com que muitos filmes venham se repetindo numa tentativa de olhar para as questões sociais do país através de uma narrativa direta e crua, Abbas Kiarostami parece ser um dos cineastas do país que mais buscam hoje uma renovação para esse modelo. Suas experimentações cinematográficas revelam um diretor inquieto com sua arte e suas possibilidades de reorganização estética.

Foi assim com Close-Up, por exemplo, misto de ficção e documentário, que usa as próprias pessoas envolvidas numa história real de falsidade ideológica para se interpretarem no filme, ou no radical Shirin que se constrói totalmente com as expressões faciais de mulheres de uma plateia de cinema enquanto assistem a um filme. Portanto, não é de se estranhar que seu mais novo projeto, Cópia Fiel, seu primeiro filme fora do Irã, filmado na Itália e falado em inglês, francês e italiano, faça uma instigante e inusitada discussão sobre originalidade e falseamento, aqui longe das preocupações de cunho social.

Cópia Fiel traz à tona essas questões através do encontro entre o escritor James Miller (William Shimell) e a dona de uma galeria de arte (Juliette Binoche). Ele a conhece na Toscana onde foi convidado a palestrar sobre seu mais novo livro, justamente intitulado “Cópia Fiel”. Os dois se conhecem e passeiam pelas belas paisagens da cidade italiana enquanto falam sobre as noções de cópia e autenticidade dentro do campo das artes, nos levando a pensar sobre se o real valor da arte não está justamente na cópia (representação do mundo real que, por sua vez, se constitui como objeto de observação do próprio fazer artístico).


Mas aí, surpreendentemente, a narrativa começa a seguir um percurso inusitado em que os personagens vestem outras máscaras, revelando as fragilidades e angústias das relações amorosas, numa das viradas de roteiro mais interessantes dos últimos tempos. O texto de Kiarostami tem o cuidado de mudar o viés da história com uma naturalidade impecável, mas sem nunca esquecer seu tema principal, agora aplicado ao caso dos próprios personagens que se tratam como um casal em crise discutindo a relação. A vida também revela suas trucagens.

Kiarostami acompanha seus personagens com uma câmera que está a serviço de suas caminhadas. Para onde vão, lá está ela como que espreitando cada movimento, principalmente as nuances e mudanças de comportamento de seus objetos de estudo. O melhor do filme é a forma inusitada com que as situações vão se desenhando, gerando curiosidade para o próximo passo que será dado. Imprevisível, Cópia Fiel põe em cheque as expectativas do público na mesma medida em que aprofunda suas observações sobre o lugar do real na própria narrativa.

E nesse percurso de observação e mudança de perspectiva, há de se destacar o trabalho dos atores que defendem personagens e discussões tão complexas. Binoche, que já havia trabalhado com o cineasta em Shrin (longa originado de um curta para o projeto coletivo Cada um com Seu Cinema), domina o filme do início ao fim, e não parece fazer esforço algum pra isso. Natural e verdadeira como as melhores atrizes sabem ser, faz jus ao prêmio de Melhor Atriz no Festival de Cannes em 2010, destaque que há muito já merecia. Mas vale pontuar também a interpretação segura de Shimell que se sustenta em pé de igualdade com sua parceira de cena.


Kiarostami revela mais uma vez sua veia de inquietude, à medida que questiona o próprio fazer artístico, sem contudo se abster da observação do cotidiano que tanto está presente em seus filmes. Talvez não faça tanta diferença que a arte seja vista como uma cópia da realidade (com todas as implicações que isso possa ter), mas que seja capaz de expor as mazelas e particularidades do mundo ao redor. Algo que o cineasta sempre buscou fazer com extrema qualidade através de seu ofício.

Assim, Cópia Fiel apresenta, sem nunca tentar explicar, o truque (ou o sortilégio, como queiram) da dicotomia cópia/original, que ganha forma e concretude na mudança que se opera na relação entre os dois personagens. Dessa forma, acaba por evidenciar o próprio cinema enquanto artifício artístico que nada mais é do que um retrato (ou vários deles em movimento) da vida real, e do qual o espectador decide se aceita ou não confiar.

Daí que é importante pensar, por exemplo, que o reflexo dos prédios que surge no vidro do carro enquanto os protagonistas adentram o interior do país, são meros reflexos (que por sua vez, embaça o rosto dos próprios atores); não passam de impressão borrada do seu objeto real. Mas seriam os verdadeiros prédios mais importantes, interessantes ou preponderantes do que suas imagens refletidas naquele vidro, naquele instante? Talvez importe menos saber se o homem e a mulher não passam de desconhecidos ou se são mesmo casados, e muito mais conhecer e compartilhar suas angústias e dilemas, sejam eles sobre as artes ou suas próprias vidas.


*Essa crítica foi a vencedora do Concurso Estadual de Estímulo à Crítica de Artes, na categoria Audiovisual, promovido pela Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb).

7 comentários:

ANTONIO NAHUD disse...

Um dos melhores filmes do ano passado. A Binoche tá fantástica.

O Falcão Maltês

Kamila disse...

Parabéns por ter vencido o Concurso, Rafael! :)

Em relação ao filme: o aspecto que eu mais gosto na obra é que ela tem uma característica teatral bem forte, privilegiando o roteiro e o trabalho dos atores. E aqui temos uma Juliette Binoche SENSACIONAL. Amo também a forma como o roteiro vai desnudando a relação entre os dois personagens centrais.

Alex Gonçalves disse...

E já me chamou de exagerado quando disse uma vez que é um dos melhores blogueiros cinéfilos que há por aí. Meus sinceros parabéns pela vitória neste concurso e que futuramente apareçam ainda mais oportunidades para esse reconhecimento.

É uma excelente crítica, que se aprofunda em compreender a brincadeira que Abbas Kiarostami faz a partir do encontro dos protagonistas. Gostei especialmente do último parágrafo, que comprova que aquele plano-sequência do carro mostra muito mais do que habilidade técnica do cineasta.

Acredito que há algumas imperfeições no resultado final (a dinâmica entre os protagonistas é tão perfeita que a discussão principal sobre o quão boa ou superior uma cópia artística é diante de seu original me pareceu apenas um mero detalhe), mas o filme é uma experiência suficientemente positiva. Me senti motivado a procurar outras obras de Kiarostami, talvez eu dê prioridade as duas realizações que você apontou ao longo da crítica.

Amanda Aouad disse...

É um belo filme mesmo, e você soube ressaltar muito bem as discussões que vão muito além de cópia ou original. Parabéns.

bjs

Rafael Carvalho disse...

Antonio, um fenômeno de filme e interpretação.

Kamila, obrigado. Também percebo essa veia teatral no filme, mas há muito de visual na obra porque ela depende bastante do ambiente externo para compor esse jogo de construções que se bifurca na metade da narrativa.

Grato pelas palavras, meu caro Alex. Aquele plano-sequencia acho que exemplifica bem essa construção do falsealmento, mas o filme tem outros exemplos disso. Acho que essa dinâmica do casal "atrapalhar" a discussão principal do filme acaba soando como uma corruptela do mesmo tema, até porque seria chato bater na mesma tecla o filme inteiro. Mas sobre os trabalhos anteriores do Kiarostami, saiba que a estética dele é bem diferente dessa vista em Cópia Fiel (coisa que ele parece querer aprofundar como já demonstra algumas - boas - reações de seu novo filme em Cannes este ano, Like Someone in Love).

Obrigado, Amanda. O filme ajuda bastante para incitar essas reflexões.

Leandro Afonso disse...

Do que me lembro do filme, o que mais me agrada é a capacidade de fazer tudo isso bem fluído. É muito possível simbolismo, muita possível metáfora, mas tudo acontece naturalmente. Não ficou tanto assim, mas quero muito rever.

Parabéns por texto e prêmio!

Rafael Carvalho disse...

Leandro, só não foi o melhor filme do ano passado pra mim por conta de A Árvore da Vida. Essa naturalidade é especialmente forte num filme tão complexo e aberto.