Cópia Fiel (Copie Conforme, França/Itália/Bélgica,
2010)
Dir: Abbas Kiarostami
Se o cinema iraniano possui uma
vertente muito ligada ao neorrealismo italiano, fazendo com que muitos filmes venham
se repetindo numa tentativa de olhar para as questões sociais do país através
de uma narrativa direta e crua, Abbas Kiarostami parece ser um dos cineastas do
país que mais buscam hoje uma renovação para esse modelo. Suas experimentações
cinematográficas revelam um diretor inquieto com sua arte e suas possibilidades
de reorganização estética.
Foi assim com Close-Up, por exemplo, misto de ficção e documentário, que
usa as próprias pessoas envolvidas numa história real de falsidade ideológica
para se interpretarem no filme, ou no radical Shirin que se constrói
totalmente com as expressões faciais de mulheres de uma plateia de cinema enquanto
assistem a um filme. Portanto, não é de se estranhar que seu mais novo projeto,
Cópia Fiel, seu primeiro filme fora do Irã, filmado na Itália e falado
em inglês, francês e italiano, faça uma instigante e inusitada discussão sobre
originalidade e falseamento, aqui longe das preocupações de cunho social.
Cópia Fiel traz à tona essas questões através do
encontro entre o escritor James Miller (William Shimell) e a dona de uma
galeria de arte (Juliette Binoche). Ele a conhece na Toscana onde foi convidado
a palestrar sobre seu mais novo livro, justamente intitulado “Cópia Fiel”. Os
dois se conhecem e passeiam pelas belas paisagens da cidade italiana enquanto
falam sobre as noções de cópia e autenticidade dentro do campo das artes, nos
levando a pensar sobre se o real valor da arte não está justamente na cópia
(representação do mundo real que, por sua vez, se constitui como objeto de
observação do próprio fazer artístico).

Mas aí, surpreendentemente, a narrativa começa a seguir um percurso inusitado
em que os personagens vestem outras máscaras, revelando as fragilidades e
angústias das relações amorosas, numa das viradas de roteiro mais interessantes
dos últimos tempos. O texto de Kiarostami tem o cuidado de mudar o viés da
história com uma naturalidade impecável, mas sem nunca esquecer seu tema
principal, agora aplicado ao caso dos próprios personagens que se tratam como
um casal em crise discutindo a relação. A vida também revela suas trucagens.
Kiarostami acompanha seus personagens com uma câmera que está a serviço de suas
caminhadas. Para onde vão, lá está ela como que espreitando cada movimento,
principalmente as nuances e mudanças de comportamento de seus objetos de
estudo. O melhor do filme é a forma inusitada com que as situações vão se
desenhando, gerando curiosidade para o próximo passo que será dado.
Imprevisível, Cópia Fiel põe em cheque as expectativas do público na
mesma medida em que aprofunda suas observações sobre o lugar do real na própria
narrativa.
E nesse percurso de observação e
mudança de perspectiva, há de se destacar o trabalho dos atores que defendem
personagens e discussões tão complexas. Binoche, que já havia trabalhado com o
cineasta em Shrin (longa originado de um curta para o projeto coletivo Cada
um com Seu Cinema), domina o filme do início ao fim, e não parece fazer
esforço algum pra isso. Natural e verdadeira como as melhores atrizes sabem
ser, faz jus ao prêmio de Melhor Atriz no Festival de Cannes em 2010, destaque
que há muito já merecia. Mas vale pontuar também a interpretação segura de
Shimell que se sustenta em pé de igualdade com sua parceira de cena.

Kiarostami revela mais uma vez sua veia de inquietude, à medida que questiona o
próprio fazer artístico, sem contudo se abster da observação do cotidiano que
tanto está presente em seus filmes. Talvez não faça tanta diferença que a arte
seja vista como uma cópia da realidade (com todas as implicações que isso possa
ter), mas que seja capaz de expor as mazelas e particularidades do mundo ao
redor. Algo que o cineasta sempre buscou fazer com extrema qualidade através de
seu ofício.
Assim, Cópia Fiel apresenta, sem nunca tentar explicar, o truque (ou o
sortilégio, como queiram) da dicotomia cópia/original, que ganha forma e
concretude na mudança que se opera na relação entre os dois personagens. Dessa
forma, acaba por evidenciar o próprio cinema enquanto artifício artístico que
nada mais é do que um retrato (ou vários deles em movimento) da vida real, e do
qual o espectador decide se aceita ou não confiar.

Daí que é importante pensar, por
exemplo, que o reflexo dos prédios que surge no vidro do carro enquanto os
protagonistas adentram o interior do país, são meros reflexos (que por sua vez,
embaça o rosto dos próprios atores); não passam de impressão borrada do seu
objeto real. Mas seriam os verdadeiros prédios mais importantes, interessantes
ou preponderantes do que suas imagens refletidas naquele vidro, naquele instante?
Talvez importe menos saber se o homem e a mulher não passam de desconhecidos ou
se são mesmo casados, e muito mais conhecer e compartilhar suas angústias e
dilemas, sejam eles sobre as artes ou suas próprias vidas.
*Essa crítica foi a vencedora do
Concurso Estadual de Estímulo à Crítica de Artes, na categoria Audiovisual,
promovido pela Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb).