terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Ondas de calor

Azul é a Cor Mais Quente (La Vie d’Adèle, França/Bélgica/Espanha, 2013)
Dir: Abdellatif Kechiche



Kechiche é um cineasta das coisas políticas. O fato de ser um tunisiano radicado na França dota seu cinema de preocupações com a condição do povo árabe num França cada vez mais xenofóbica (como visto em
A Culpa é do Voltaire), ou mesmo da própria condição daqueles que são extraídos de seu lugar de origem para servir ao fetiche exótico do europeu (Vênus Negra). Mas seria um equívoco achar que Azul é a Cor Mais Quente distancia-se desse aspecto politizado uma vez que toca em tema polêmico numa França em que a homofobia tem crescido nos últimos tempos. 

O despertar da sexualidade da jovem Adèle (Adèle Exarchopoulos) e a descoberta de um desejo que se inclina para outras mulheres são os pontos de observação desse filme altamente festejado desde que ganhou a Palma de Ouro em Cannes este ano. Interessante que justo num momento em que se discute com tanto afinco (e também ojeriza) a união de pessoas do mesmo sexo, esse filme venha somar e complexificar a questão.

Estamos longe do filme puramente panfletário, apesar de em alguns momentos isso ganhar amplitude maior, como na cena da discussão com as colegas de classe. É um deslize que pega carona em momentos nos quais o filme tenta parecer militante (como nas sequências do protesto na rua ou na estranha exibição de A Caixa de Pandora durante uma festa, com destaque para a figura sensual de Louise Brooks ao fundo, é claro!).

Mas Kechiche interessa-se muito mais pelo aspecto íntimo e pela trajetória emocionalmente conturbada dessa menina, via registro altamente naturalista com que acompanha o desabrochar de uma flor. É bastante reconhecível essa estética da câmera na mão, colada em seus atores, perscrutando olhares e gestos que dizem muito sobre os personagens, especialmente os dessa menina que tateia em busca de uma compreensão de si e de seus sentimentos.

E basta que a estranha moça de cabelos azuis (Léa Seydoux), mais do que chamar atenção por esse detalhe físico, ganhe espaço nos sonhos eróticos de Adèle. É nesse ponto que o filme aposta no sexo como potência de descobertas e consolidação de um desejo, embora nada seja definitivo na história (mais de uma vez, figuras masculinas vão tentar por à prova a vontade da protagonista). E é muito bonito ver como o filme confere tanta importância a isso não tratando o sexo como um simples ato carnal que precise constar numa ceninha rápida.

Antes que puramente voluptuoso, o sexo representa a experiência de atração e satisfação que essas duas jovens experimentam entre si. O que as longas cenas de sexo têm de cru, explícito e intenso só reforçam o tom naturalista que o filme persegue do início ao fim, para além do amor que também brota dali. Especialmente na forma como Adèle se conecta a Emma, tornando o filme o retrato de uma grande paixão pela qual vale a pena lutar.

Ainda que se alongue demais, Azul é a Cor Mais Quente mantém um ritmo muito coeso em sua estrutura. É interessante perceber como a história avança por meio de certas elipses que dão conta de algumas transformações de Adèle numa mulher, apesar da menina apaixonada e insegura ainda ser visível por entre seus os cabelos desgrenhados. 

Se aqui ou ali o roteiro precisa forçar certos conflitos (como todo o desentendimento entre as duas personagens na parte final do filme), Kechiche se esforça para filmar uma paixão que brota da vida comum, como qualquer outra. É como o azul, essa cor aparentemente fria, melancólica, mas passível de esconder mais calor e pulsão do que se imagina.


2 comentários:

Mila Ramos disse...

Rafa,
boas observações, principalmente quando você cita a preocupaão maior de Kechiche em retratar a trajetória da personagem em detrimento de criar um filme panfletário. Acho que é isto que me toca mais nesta obra, principalmente na primeira parte, quando há um cuidado maior na construção do universo da protagonista, o dia a dia, as emoções, as descobertas, a proximidade da câmera, as pinceladas de azul presentes no mundo exterior, o tom naturalista, a excelente atuação de Adèle Exarchopoulos entre outras coisas que, mesmo deixando o filme mais lento, nos aproxima, como você citou, do desabrochar da garota.
Não gosto da segunda parte, a forma como ela é conduzida, usando de alguns artifícios para facilitar os conflitos, já não sinto o mesmo cuidado na construção das cenas, me incomoda a forma como é feita as passagens do tempo e outras coisas. Mas no resumo geral, acho o filme um belo retrato de uma paixão com seus altos e baixos, tão igual a tantas outras e "trivializar" este relacionamento, para mim, é o grande mérito do diretor.

Rafael Carvalho disse...

Valeu, Mila. Também concordo contigo, acho a segunda parte mas descuidada, em termos de roteiro mesmo. Alguns conflitos são muito forçadinhos. Mas é claro o mérito que o filme tem em contar esse tipo de história com esse tratamento tão naturalista, e humano.