segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Marcas de afeto

Tatuagem (Idem, Brasil, 2013)
Dir: Hilton Lacerda





Vem de Pernambuco mais um belo exemplar de cinema com personalidade, no mesmo ano em que O Som ao Redor ganhou as telas comerciais do cinema brasileiro, depois de um grande sucesso mundo a fora. Hilton Lacerda, à frente de seu primeiro longa-metragem de ficção depois de um logo trabalho como roteirista nos filmes do conterrâneo Cláudio Assis, chega com um filme que faz alarde, mas cercado de afetos.

Tatuagem vem (e vence) pela marca do escracho. Logo em um dos primeiros números apresentados pela trupe de teatro Chão de Estrelas, um dos personagens diz que “nossa arma é o deboche”. É a dica para que encaremos com muito bom humor e anarquismo contestador as apresentações do grupo, cheios de um subtexto (homo)sexual e político. 

Clécio (Irandhir Santos) é o líder do grupo que batalha para continuar mantendo de pé o seu ganha-pão com os poucos recursos de que dispõe, e ainda tendo de enfrentar a censura militar em fins dos anos 1970. Um dos grandes acertos de Larceda é nunca transformar seu filme numa mera bandeira contra os ditames da Ditadura simplesmente, mas antes em dar relevância a um tipo de comportamento duramente oprimido, inclusive socialmente.

O romance que vai surgir entre o protagonista e o soldado Fininha (Jesuíta Barbosa), cunhado do melhor amigo de Clécio, o espalhafatoso Paulete (Rodrigo Garcia), já dá conta de contrapor lados que se chocam, mas ganhando nuances mais picantes aqui. É, portanto, um filme que clama por liberdade, artística e sexual, via comportamentos que desafiam a moral vigente. Lacerda conduz com muita delicadeza o que está na esfera dos sentimentos, e as pessoas que se reúnem em torno do grupo não deixam de formar uma bela e desordenada família, apesar das desavenças que surgem em certos momentos.

E conduz desprovido de todo moralismo o que se encontra no âmbito do questionamento de valores e hipocrisias sociais. A Polka do Cu, canção-desbunde cujo número é apresentado na parte final do filme (e deflagrador de consequências duras), é um desses momentos não só carregado de coragens e escracho, mas que representa muito bem uma visão de mundo que aquelas pessoas (e o filme) compartilham harmoniosamente.

Há de se destacar um cuidado muito conceitual na textura do filme vinda de uma fotografia em tons granulados que denunciam a época passada (quase como um registro nostálgico) e também um momento ainda opressor, apesar da alegria que aquele grupo quer propagar com seus espetáculos. A trilha sonora, uma feliz parceria com DJ Dolores, é outra marca que faz a ponte do filme com o gênero musical, mas de forma muito pessoal. 

Dos trabalhos que roteirizou para Cláudio Assis, Lacerda mantém a veia contestadora, de tons anárquicos que afrontam o mais tacanho dos moralismos. Mas Tatuagem é também dotado de um lirismo e carinho por seus personagens que o coloca bem longe daquilo que Assis já dirigiu (com exceção, talvez, do mais poético A Febre do Rato). Nesse equilíbrio de atmosferas, Larceda acrescenta mais uma peça na filmografia pernambucana recente que faz o cinema nacional pulsar, contestadora e afetuosamente.

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