terça-feira, 5 de julho de 2016

Cine Ceará – Parte III


Menino 23 – Infâncias Perdidas no Brasil (Idem, Brasil, 2015) 
Dir: Belisario Franca


História forte e impressionante é o efeito dos acontecimentos revelados nesse documentário brasileiro Menino 23 – Infâncias Perdidas no Brasil, um resgate de um traço de nossa História pouco conhecido e investigado. O filme revela o caso do tráfico de crianças negras, nos anos 1930, para fins de trabalho escravo em uma fazenda no interior de São Paulo. Além disso, os donos eram cultores do nazismo e da soberania ariana.

Menino 23, dirigido por Belisario Franca, parte da pesquisa de doutorado do historiador Sidney Aguilar, o que deve ter pesado no surpreendente prêmio de melhor roteiro que o filme recebeu. De fato, é um trabalho de reconstituição dos fatos primordial, ainda mais diante do encontro com o seu Aloísio Silva, um dos garotos seqüestrados, um dos poucos vivos ates hoje.

Seu Aloísio era o menino número 23 – assim como aconteciam nos campos de concentração nazistas, os garotos da fazenda eram registrados e reconhecidos por numerais. Sua recusa inicial em falar do assunto vai sendo quebrada aos poucos, e o filme acaba por revelar as particularidades de uma vida tolhida pelo pensamento totalitário e ignóbil comando por aqueles aristocratas.

Se esse remexer de duras memórias é o que mais angustia o espectador, o filme peca ao investir na reconstituição ficcional de alguns acontecimentos narrados. Filmados em preto-e-branco, com luz estilizada e abusando da câmera lenta, esses momentos só servem para ilustrar algo que está sendo dito nos depoimentos e pouco contribui para o andamento do filme.

Poderiam ser momentos usados para causar maior comoção do público, mas não parece ser esse o caso; as cenas recriadas servem como forma de preencher o filme e não torná-lo um mero relato daqueles absurdos, o que por si só já é chocante. O filme não precisaria desse tipo de recurso, porque as histórias que surgem ali já dão conta desse trágico passado nebuloso, sem que isso signifique a exploração da dor de uma vida em privação, embora enfrente a necessidade de confrontá-la.


Casa Blanca (Idem, México/Polônia/Cuba, 2015) 
Dir: Aleksandra Maciuszek


Certamente o filme mais polêmico dessa edição do Cine Ceará, Casa Blanca coloca em questão, de modo muito frontal, a moral do cinema direto e sua representação das pessoas em condição de vulnerabilidade. A diretora polonesa, graduada em Cuba, acompanha o dia a dia de mãe e filho que moram em uma comunidade de pescadores em Havana. Ela, uma idosa quase inválida, ele, já um homem, mas com síndrome de down.

Estão como que praticamente a sós no mundo, contam com pouca ajuda externa para realizar tarefas banais do cotidiano e sobreviver num contexto de pobreza; amam-se e brigam quase que na mesma intensidade e frequencia. O filme busca observar, impassível, a rotina dos dois, como se a câmera estive ali escondida, captando silenciosamente o passar dos dias e os conflitos dos personagens, que não são poucos, especialmente entre eles mesmos.

Mas não é numa posição agradável essa em que a cineasta nos coloca: diante de certa miserabilidade de um contexto familiar tão particular e sofrido, não só pela vida que levam, mas pela condição física e emocional sempre à beira do colapso. Casa Blanca não necessariamente nos inspira pena diante daquela realidade retratada, porém trata com certa passividade aquela situação, como se quisesse se promover diante disso, sem nunca se expor no próprio filme. Prefere expor a dor e as dificuldades do outro, o que sempre gera desconforto.

E isso nos lembra, em comparativo, o filme nacional A Pessoa É para o que Nasce, de Roberto Berliner e Leonardo Domingues, sobre as três irmãs cegas e idosas. No filme nacional existe o mesmo tipo de exposição em torno de figuras de certa forma vulneráveis, mas com uma grande diferença que não aparece aqui: os realizadores são personagens do filme, eles se colocam como sujeitos que estão cientes do que fazem como forma de aproximação com o material humano que retrata. Já a cineasta polonesa, ao simplesmente colocar ali sua câmera em enquadramentos estudados e se anular diante da situação que observa, deixa em aberto sua relação com o “real” e, consequentemente, com as imagens que produz, tornando-as por demais abertas, inconsequentes. 

Nem mesmo o belíssimo trabalho técnico e de encenação da diretora Aleksandra Maciuszek consegue desanuviar essas questões. Ela domina muito bem a técnica, o filme tem ritmo e não se entrega aos planos demorados e contemplativos, bem como o trabalho de iluminação é primoroso para um documentário. Mas tudo isso não deixa de revelar certa frieza no modo que a cineasta reporta tal situação. Casa Blanca é um filme incômodo, não no melhor dos sentidos.

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