Dir:
Tião
Filme
dos mais irreverentes e irônicos, com toques de nonsense, Animal Político
é um belo e estimulante corpo estranho na programação da Mostra Tiradentes. O cineasta
pernambucano Tião elege uma vaca como protagonista de uma jornada existencial
do animal diante do mundo e do seu lugar nesse mundo como indivíduo – apesar de estabelecer a própria discussão de que indivíduo seria esse tão peculiar animal que pensa e
age como um humano.
A
vaca vai à academia, come em bons restaurantes, vai à balada, joga vôlei. Vive
uma vida pacata de classe média, sem percalços. Uma voz off dá conta de expor os pensamentos do animal,
sendo ele dotada de uma inteligência média notável. Nesse sentido, há mesmo uma
antropomorfização do animal – que ganha mudança na terça parte do filme –,
passando a abrir possibilidades várias de metáforas sobre a condição
existencial do ser.
Isso
porque, na reflexão que faz de sua vida e de sua trajetória até então, a vaca sente
que algo está faltando, uma inquietação, uma sensação de vazio que a coloca em
crise diante daquela vida pacífica em que tudo parece funcionar em ordem. Assim, Animal Político abre-se para o caos de
ser quem se é, ainda que nunca cheguemos a entender com exatidão a ontologia de
si mesmo. É a partir dessa perturbação interna que o filme acompanha a
personagem numa procura, inicialmente, pelo conhecimento, pela informação que a
faria compreender os porquês que a afligem para, depois, alcançar o estágio de
iluminação e total entendimento de si.
Certamente
que toda essa busca filosófica é retratada da forma mais irônica possível,
repleto de humor rápido e perspicaz que o filme injeta a cada reflexão
proferida pelo animal. O filme trabalha no registro do nonsense, mas nunca se apaixona por ele. Nunca se conforma – assim como
seu personagem – com aquilo que se forma diante de si. Quando a vaca parte para
o deserto, para o que ela chama de “natureza selvagem”, como forma de se isolar
do mundo e buscar sua essência animal, o filme também lhe (nos) prega peças.
Se há ali um estranhamento pelo próprio
conceito da história, o filme não se prende a um lugar de conforto e apresenta
outras possibilidades à narrativa. Daí que causa uma estranheza interessante quando
surpreendentemente o filme rompe com a trama da vaca e nos joga em outro tempo,
nos apresentando à curiosa sequência intitulada “A pequena caucasiana” – a grosso
modo um digressão sobre o passado de formação do povo e da História do Brasil e
América Latina, obviamente com claros toques de irreverência, inquietude e desfaçatez, evidentes nos pensamentos dessa personagem altiva e peculiar que outrora
desembarcou nessa terra inóspita.
Essa
sequência, apesar da forma abrupta como surge, nos interpela sobre as marcas
históricas de nossa formação por um motivo que talvez seja a tentativa de oferecer
um princípio de resposta às inquietações existenciais que rondam o filme: podemos nunca chegar à
conclusão do que realmente somos, do que é a nossa essência ou de algo que
explique o sentido de nossa existência – como bem coloca o ice-borg, espécie de
oráculo cibernético que a vaca encontra no deserto, citando Buda: “A vida não
é uma pergunta a ser respondida, é um mistério a ser vivido”; ainda assim, um
pouco daquilo que somos passa pelo entendimento do como e do por que chegamos
até aqui, ou seja, de como nossa formação histórica pode conferir pistas sobre
quem sou eu e o que eu faço aqui nesse lugar nesse momento.
Mas
essa sequência serve também para incluir um elemento que será fundamental para
a jornada da vaca: o livro de normas da ABNT, legado a nós pela pequena caucasiana e
encontrado pela vaca no deserto em suas buscas existenciais. Mais uma vez o alerta
de ironia soa forte no filme sendo a ABNT essa representação instituída e reconhecida
da regra e do rigor. É a partir daí que o filme entra em outro registro, ainda mais
estranho porque a vaca retoma seus rumos de busca e peregrinação transfigurado
agora num animal bípede.
É
certo que existe certa ingenuidade nessa transformação, sendo a ABNT espécie de
detentora de respostas às coisas do mundo – ela funciona mais como forma, como
organização do pensamento e do conhecimento, não como conteúdo. De fato, a personagem continua sua
busca por respostas mesmo depois de encontrada essa joia do deserto.
E
é como todos esses elementos e tantos outros detalhes que Animal Político divaga sobre seu próprio eixo de criação narrativa,
oferecendo, ao sabor da dúvida e da graça, uma jornada de inquietação tanto
quanto de interesse pelo que vemos surgir no caminho do animal. Tião brinda o
espectador com irreverência e humor, ainda que suas muitas ideias precisem
passar pelo crivo do tempo para atestar sua real força, ou antes estabelecer-se como peça de chiste. Enquanto isso, sonhamos
com a possibilidade do conhecimento pleno.
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