Fome (Idem, Brasil,
2015)
Dir:
Cristiano Burlan
Filme denso e provocador, Fome,
do prolífico Cristiano Burlan, parece um filme cheio de nuances e questões, nem
sempre fáceis de organizar talvez mesmo pelo caráter aglutinado que parte de
uma situação inusitada: o filme é protagonizado pelo crítico e respeitado pesquisador
Jean-Claude Bernardet, interpretando aqui, inusitadamente, um morador de rua.
Numa nova fase da carreira,
Bernardet prefere estar frente às câmeras, ousar-se em papéis que exigem um
lado mais performático/improvisado/subjetivo, em projetos com vontade maior de
experimentar mesmo. Talvez estejamos aqui diante de seu melhor trabalho como
ator nos últimos anos – depois de assumir o risco em filmes como Pingo D’Água e FilmeFobia, nesse último interpretando a si próprio.
Quando apresentou Fome no último
Festival de Brasília, Bernardet falou de certa tradição da deambulação de
personagens no cinema, o que resume bem seu papel e a trajetória incerta pelas
ruas de São Paulo como mendigo. Empunha um carrinho cheio de quinquilharias, a
cata de comida e sossego na metrópole que o filme capta como espaço tão amplo quanto
aprisionador, repleto de “perigos” que a própria sociedade impõe a quem habita ali
do lado de fora.
O diretor Cristiano Burlan
embaralha alguns registros no filme e talvez por isso soe trôpego em alguns
momentos. Acompanha esse personagem pela cidade, faz algumas entrevistas com
moradores de rua reais e insere uma personagem feminina, uma estudante (Ana
Carolina Marinho), que pesquisa a situação desses moradores. O filme divide-se
entre a denúncia não de uma situação precária, mas antes da maneira como a
sociedade média lida com esses sujeitos aparentemente desamparados nas ruas,
mas também aponta para um traço de lirismo, do sujeito/ator que interage com os
elementos e situações que cruza o seu caminho, ficcionalizados ou não; esses
são os melhores momentos do filme – o encontro com um estranho cantor é um dos
mais belos do longa.

O personagem de Bernardet carrega
em si uma personalidade arredia: não se sujeita a coitadismos, não assume
postura condescendente e em certo momento, perto do fim do filme, numa cena com
o também crítico Francis Vogner dos Reis, “revela” que está na rua porque assim
o deseja, cansado da vida de professor universitário que levava. A cena
certamente carrega certa graça pelo tom inusitado, pelo diálogo de embate entre
os dois, mas nesse ponto o filme rompe mais uma vez com a ficção quando o
Jean-Claude Bernardet professor, ensaísta e crítico experiente, homem que
acumulou vivências e conhecimentos ao longo de tanto tempo de vida, reconhecido
e respeitado no meio cinematográfico brasileiro, emerge na narrativa como de si
mesmo, ainda que amparado em um personagem fictício.
E aí a persona mendigo perde força
na narrativa, pois soa como mero capricho no filme, experimento de classe
média, personificado por essa figura tarimbada. A fotografia estilizada
contrapõe-se ao título que remete à miséria, aos relatos duríssimos e reais de
gente que sofre e faz da rua seu campo de batalha cotidiana. Tudo parece ser
nublado pela direção conciliadora que o filme passa a promover. Fome é
difícil de definir, distende-se em muitas direções e acaba diluindo-se nelas,
mas ao menos nos confronta e mobiliza a discutir a relação de um corpo em um
espaço, ambos muito peculiares e potentes por aquilo que carregam enquanto
significantes de um imaginário real e palpável, mas não menos misteriosos.