Uma rápida passada em Salvador me deu a oportunidade de aproveitar três dias no VI Panorama Internacional Coisa de Cinema, festival realizado no Espaço Unibanco Glauber Rocha (e também na Sala Walter da Silveira). O evento termina hoje. Fica aqui e nos próximos posts algumas impressões do que pude conferir nesses dias intensos de cinema.
Madadayo (Idem, Japão, 1993)
Dir: Akira Kurosawa


Último filme do mestre japonês, não deixa de ser curioso que
Madadayo possa ser visto como o cato de cisne do autor. Uma espécie de filme-testamento, um
grand finale para uma carreira sublime (mesmo com seus altos e baixos). Não que a obra se equipare em qualidade aos melhores de seus filmes (como
Rashomon – do qual sou fã fervoroso –,
Ran e
Sonhos), mas porque, ao contar a história do professor aposentado que perde tudo durante a guerra (exceto seus amigos), o cineasta faz uma grande reverência àqueles que vivem com dignidade, apesar das contravenções do destino.
A rudeza inicial do professor Uchida (Tatsuo Matsumura) cede lugar à humildade face a um modo de vida mais simples (ele precisará, por exemplo, abandonar o casarão onde vivia com a esposa para habitar um pequeno cubículo no meio da floresta). Talvez um tanto longo demais, e com algumas sequências desnecessárias, o filme traz a marca inconfundível de seu autor na vagarosidade com leva sua narrativa. Nesse sentido, a comemoração de aniversário do professor ou o sumiço de uma gata se tornam momentos que o filme faz questão de dar importância. E o belíssimo final remete a nada menos que ao grande cerne de
Cidadão Kane. O professor Uchida também tem sua
rosebud, sua recordação de infância, que nem os tempos difíceis conseguiram apagar da memória.
Um Lugar ao Sol (Idem, Brasil, 2009)
Dir: Gabriel Mascaro

Um Lugar ao Sol é o típico documentário que vale muito pelos depoimentos que coleta, muitas vezes deixando o espectador embasbacado pelo que acabou de ouvir. A proposta é conversar com pessoas que moram em coberturas de grandes edifícios das cidades do Recife, São Paulo e Rio de Janeiro, característica inconfundível daqueles com alto poder aquisitivo, os que concentram grande parte da renda no Brasil. Poucos deles se dispuseram a falar. O resultado, por vezes, é assustador. Como quando uma senhora se diz privilegiada porque ali ela estaria mais pertinho de Deus.
Interessante destacar certo traço do cinema documental contemporâneo em investigar determinado objeto a partir de um ponto de vista específico. Nesse caso,
Um Lugar ao Sol se propõe a um contato com a mentalidade de uma classe alta alta, demonstrando toda sua fragilidade de pensamento burguês, sem cair na “obrigação” de ter de ouvir o outro lado. Pena que em determinado momento, o documentário se acomode em sua própria proposta apostando somente na fala de seus entrevistados, sem ousar demais.
A Alma do Osso (Idem, Brasil, 2010)
Dir: Cao Guimarães


Paciência há de ter um limite.
A Alma do Osso ultrapassou o meu a partir de uma investigação que não parece dizer muito sobre coisa nenhuma, embora a gente espere esse alguma coisa por um bom tempo. Fazendo parte da chamada Trilogia da Solidão (composta ainda por
Andarilho e o ainda não-realizado
O Homem da Multidão), o filme acompanha o dia-a-dia de um ermitão que vive numa caverna no meio do nada, longe de todos. A câmera acompanha os afazeres daquele senhor, tais como acender uma fogueira, fazer café e comida em latas sujas, cantar e tocar violão à noite.
O problema aqui não é necessariamente porque o filme tem esse tom arrastado.
Andarilho, por exemplo, possui essa mesma atmosfera de lentidão, mas é extremamente mais interessante por aquilo que ele consegue deixar impresso nas entrelinhas, na visão subjetiva do espectador. Acompanhar o ermitão é tarefa cansativa que não funciona nem como aventura estética. Mas é nos seus momentos finais que o filme se trai completamente. Temos a oportunidade de ver aquele senhor falar, o que deixa entrever um personagem muito mais interessante do que nos foi apresentado nos minutos anteriores.
O Inferno de Henri-Georges Clouzot (L’Enfer d’Henri-Georges Clouzot, França, 2009)
Dir: Serge Bromberg e Ruxandra Medrea


Os comentários positivos em torno desse filme me despertaram para a urgência de conhecer o cinema de Henri-Georges Clouzot, antes de conferir o documentário sobre o processo de produção de uma obra que teria tudo para receber a denominação de “revolucionária”.
L’Enfer era a menina dos olhos de uma cineasta que recebeu, em 1964, carta branca (e bastante dinheiro) de um estúdio norte-americano para filmar como quisesse a história de um homem (Serge Reggiani) que enlouquece de ciúmes pela bela esposa, interpretada por Romy Schneider.Vindo de um cineasta que já tinha feito pelo menos uma obra-prima,
As Diabólicas, Clouzot pensava em fazer algo grandioso.
Durante a produção, diretor e equipe testavam todo tipo de aparato, desde novos experimentos com a iluminação, o revezamento entre imagens preto-e-branco e coloridas, efeitos de luz que acentuassem o delírio do personagem, aliado a um trabalho de maquiagem e figurino específico para fins de coloração na película, até distorção dos sons e ruídos. Mas Clouzot nunca sabia o que queria, a equipe se distanciava cada vez mais do filme, a tensão era crescente, culminando com o ataque cardíaco do diretor e o conseqüente abandono das filmagens. O filme nunca seria concluído. O atual documentário, bastante pontual, passeia por todas essas questões, mas vale muito por revelar, enfim, as imagens e testes realizados por Clouzot, esse homem que transformou em inferno sua própria obsessão.
PS: Claude Chabrol, em 1994, iria filmar o roteiro deixado por Clouzot em
Ciúme - O Inferno do Amor Possessivo, fato que o documentário nem sequer cita. E é um grande Chabrol.