segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Mostra SP – Parte VI




Por las Plumas (Por las Plumas, Costa Rica, 2013)
Dir: Neto Villalobos



Por las Pumas faz todo o tipo de filme singelo, com personagens estabanados, mas carismáticos. Chalo (Allan Cascante) trabalha como segurança de um pequeno estabelecimento, embora sem o porte físico para tal. Tem poucos amigos, como o colega de trabalho Jason (Marvin Acosta) e a empregada doméstica revendedora de Avon Candy (Sylvia Sossa).

Acontece que Chalo é obcecado por rixas de galo. Tenta a todo custo comprar um animal desses bons de briga. Quando consegue, apelida-o de Rocky e passa a treiná-lo para o tão sonhado confronto. Quer ganhar dinheiro com isso. Por las Plumas é espirituosíssimo na forma como embala os anseios e sonhos daqueles tipos, pendendo para a comédia mais sutil, sem nunca tornar seus personagens caricaturas.

O mundo solitário de Chalo não lhe parece tão vazio assim porque ele se satisfaz com seus sonhos, ainda que morando numa casinha humilde, seus amigos assumindo o posto de família temporária. O diretor estreante Neto Villalobos encena uma rotina tranquila, ainda que sem grandes emoções diárias. Mas é aí que o filme ganha o espectador pela singeleza de uma vida palpável, contrapondo-a à violência que emana das rinhas de galo.


Um Pombo Pousou num Galho Refletindo Sobre a Existência (En Duva Satt På En Gren Och Funderade På Tillvaron, Suécia/Alemanha/Noruega/França, 2014)
Dir: Roy Andersson 

 


Um pombo num galho, empalhado, numa redoma de vidro; um homem, bastante pálido, observa o animal. O tempo parece suspenso, a câmera está fixa, pouco movimento dentro do quadro, fotografia monocromática. Assim começa esse curiosíssimo filme que parece operar numa outra dimensão de realidade. O absurdo filosófico do título ganha um contorno perceptível: as mini-situações aqui apresentadas são pinçadas de uma realidade que se querem nonsense e, por isso mesmo, interessantes de serem postas em cena.

Esse tipo de tableau vivant se repetirá formalmente por todo o filme. Na verdade, trata-se de um dispositivo narrativo já usado por Roy Andersson em seus trabalhos anteriores, Vocês, os Vivos e Canções do Segundo Andar. Perfazem uma espécie de trilogia dos absurdos cotidianos, via humor negro na maneira de olhar para as pequenas desgraças humanas.

Ou não tão pequenas assim: esse novo filme começa com observações sobre a morte e algumas de suas idiossincrasias – sem deixar de serem hilárias, diga-se. Mas logo o filme torna-se um amontoado de situações em que os personagens misturam-se e retornam momentos depois, enfrentando conflitos por vezes banais, mas com consequência tragicômicas.

Há algo de Jacques Tati nessa construção de quadros em que a atenção do espectador pode ser levada a se fixar em certo ponto, diversos são os elementos que estão distribuídos no plano. É o tipo de filme que brinca com as percepções daquilo que temos diante de nós e daquilo que somos levados a perceber mais detidamente. É também muito engraçado, perseguindo situações bizarras. Tão estranhas como pode ser o próprio dia a dia.


O Pequeno Quinquin (P’tit Quinquin, França, 2014) 
Dir: Bruno Dumont
 
Seria muito estranho testemunhar uma virada na carreira de Bruno Dumont. É certo que esse O Pequeno Quinquin envereda pelos caminhos da comédia de tons detetivescos, coisa muito distante dos filmes barra-pesada que o diretor já fez. Mas é muito fácil reconhecer aqui o universo de Dumont: interior da França, com sua gente simples e feia, envoltas em situações bizarras. É o mundo cão no mesmo tipo de geografia que o cineasta está acostumado a observar.

Há ainda o fato do projeto ser originalmente uma série para a TV francesa, reunida aqui num filme de mais de três horas de duração, muito palatável para se ver no cinema, engraçado até certo ponto. Se essa era a maior qualidade do projeto, ainda que numa medida muito particular em se tratando do diretor em questão, ela é o forte e o fraco do filme.

Não há dúvidas de que o longa rende boas gargalhadas em momentos inesperados – como a menina que canta no funeral, o avô arrumando a mesa do almoço, a aparição do herói “caipira-man”. Mas Dummont comumente ultrapassa o timming cômico, ora prolongando demais o efeito das gags, ora repetindo as mesmas piadas tempos depois – a garota que insiste em cantar agudo será usada mais de uma vez para efeitos de graça, por exemplo.

O pequeno Quinquin (Alane Delhaye) e sua trupe de amigos endiabrados – além da garotinha que surge como seu “par romântico” – estão ali para observar e acompanhar as investigações de um crime misterioso: uma vaca é encontrada morta num bueiro, com pedaços de corpo humano dentro dela. Essa é só a ponta de uma série de assassinatos estranhos inseridos na atmosfera da pacata região interiorana.

Mas mais do que o próprio protagonista, é o comandante de polícia Van der Weyden (Bernard Pruvost), detetive ranzinza, com seus tiques incontroláveis na face, voz embolada e comportamento arrogante, quem rouba o filme. Suas tiradas de metido a esperto, sempre se achando no controle da situação, são ótimas.

Nesse sentido, o filme está menos preocupado na resolução do caso policial em si - que se torna mais confuso e sem razão - e mais focado no desfile de tipos estranhos, de comportamentos incomuns e suspeitos. É mais uma maneira de Dumont lançar luz sobre a inexplicável crueldade humana, ainda que seja naquele garotinho feio e atentado que parece residir uma ponta de amor e afeto.


Relatos Selvagens (Relatos Salvajes, Argentina/Espanha, 2014)
Dir: Damián Szifrón 


 
Encerrando bem a Mostra SP, Relatos Selvagens (que foi o filme de abertura) é uma das grandes surpresas da programação, filme de humor negro em episódios que tinha tudo para desandar. É realmente prazeroso ver um filme em esquetes em que todas elas são boas, sem exceção. E ainda são coesas: o que reúne histórias e personagens tão díspares é essa veia instintiva do ser humano para a violência extrema e vingança quando as agruras do cotidiano nos põem em prova.

Os passageiros de um voo, a recepcionista de um restaurante vagabundo de meio de estrada, uma família de classe alta, todos eles vivem seu dia de cão. Veem seu mundo se revirar de ponta cabeça por conta de situações extremas que invadem sua rotina e inspiram ódio crescente, esse mesmo que os faz perder a razão.

O diretor e roteirista Damián Szifrón, com precisão absurda, seja ela de encenação, seja no desenho do roteiro, surpreendente sempre que o filme parece dar ares de que vai degringolar. Szifrón é habilidoso porque, para além da veia cômica, sustenta cada história do início ao filme. O resultado final supõe um controle milimétrico de cada instante de cena, sem forçações. 

O episódio da noiva – talvez o melhor e, justamente, o escolhido para fechar o filme – é exemplar dessa precisão. A personagem vai do ódio absoluto ao “dane-se tudo”, situação cheia de reviravoltas e sempre imprevisível. Assim como o segmento dos dois motoristas que se digladiam na estrada cresce em escracho, inverte expectativas e nunca perde o ritmo até o final arrasador. Relatos Selvagens é a prova de como é possível narrar bem e entreter, ser engraçado e não ofender; enfim, fazer bom cinema.

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