quinta-feira, 26 de novembro de 2015

O horror visível

A Visita (The Visit, EUA, 2015)
Dir: M. Night Shyamalan



Depois de amargar uma fase ruim de sua carreira, M. Night Shyamalan parece retornar ao melhor de seu estilo no seu mais novo filme, A Visita, ao mesmo tempo em que o reinventa de forma bastante satisfatória. Trata-se de um verdadeiro trunfo depois de abusar da crença absurda na fábula (em filmes como A Dama na Água e Fim dos Tempos) e após se envolver com projetos menos pessoais (O Último Mestre do Ar e o bom Depois da Terra).

Vendo A Visita é possível atestar como uma baixa nas pretensões fez bem ao diretor nessa nova empreitada, algo que já se podia notar pela gestação do projeto, ainda que existam sacadas de realização e escrita muito boas aqui, sem que elas precisem chamar grande atenção. O filme sabe muito bem reaver os grandes dilemas e preferências do cineasta pela narrativa de suspense/terror ao contar uma história desse tipo com recursos os mais simples possíveis. E, para além de si própria enquanto conto assustador, consegue alcançar algo maior a partir das cicatrizes familiares que se fazem presentes na vida de seus personagens.

Sendo a família ou o espírito de união de um grupo em torno de um eixo de segurança um dos temas mais fortes da obra do cineasta indiano-americano, aqui ele mais uma vez arquiteta toda uma situação de suspense para resolver um drama pessoal. Os irmãos Becca (Olivia) e Tyler (Ed Oxenbould) não conhecem os avós maternos por causa da rixa deles com a mãe. Mas com a insistência dos velhos, a mãe deixa que eles visitem os avós, pela primeira vez, na sua casa de campo no interior.

A opção pouco original de trabalhar completamente com câmera subjetiva – Becca insiste em gravar tudo com sua câmera digital com o pretexto de realizar um documentário sobre o encontro com os avós – faz com que o cineasta deixe de lado o preciosismo estético, algo que já eclipsou seus roteiros antes. Mas é essa escolha que concentra a força das imagens que os irmãos irão coletar no primeiro contato com duas pessoas alheias.

Está preparado o terreno para que o cineasta transforme essa reunião familiar feliz num crescendo de tensão e pavor, quando avô e avó (vividos pelos ótimos Deanna Dunagan e Peter McRobbie) passarem a apresentar comportamentos estranhos, especialmente à noite. Remetem mesmo a depravações e inquietações da alma, o que gera imagens de puro arrepio – as andanças da avó de madrugada pela casa, as fraldas sujas de sangue do avô.


De quebra, Shyamalan ainda consegue fazer um estudo muito perspicaz sobre a natureza da imagem contemporânea e da forma como lidamos com ela, com sua eficácia. Becca e seu irmão, enquanto responsáveis pela feitura da maioria dessas imagens, ainda que a garota esteja imbuída de certo ímpeto narrativo e discurso racional sobre a forma do filme, trata a imagem de modo quase primário – sua função primordial é mostrar – e, talvez por isso consiga fazê-la tão potente e reveladora – das angústias, dos medos, da verdade escondida, enfim, da forma das coisas.

Parece um ponto de virada no próprio projeto de cinema de Shyamalan, quando pensamos que grande parte das ameaças de seus filmes estão calcadas numa imagem ausente. Era preciso, urgentemente, crer naquilo que não se via – a crença surge também como um dos pilares de seu cinema. Crer naquilo cuja existência, a priori, era incerta e imperceptível: a ameaça invisível em Fim dos Tempos, a necessidade de crer na narrativa fabular como salvadora do mundo em A Dama na Água, o temor de um perigo oculto na floresta que não deveria ser atravessada em A Vila, os mortos em O Sexto Sentido.

Mas em A Visita esse estatuto muda de lugar – talvez porque quem “empunha” a câmera não é mais o diretor ou a instância narrativa do realizador, mesmo que saibamos que a ordem do filme venha dali. Agora, tudo está posto em cena do jeito que é, a ameaça é palpável e se concretiza cada vez mais na tela, é ela que Becca persegue a todo custo, captada de modo frontal pela câmera, sem nada a esconder. Não há nenhuma explicação sobrenatural, nenhum subterfúgio fantasioso que vai tomar a história de assalto, dar conta dela. O mistério que esconde os acontecimentos bizarros tem explicação clara e cruel no mundo concreto - que é também o mundo da tela. Com isso, o cineasta ganha condições de investir no mais puro senso de terror, só manipulando essa imagem subjetiva. 

E não é de se espantar – talvez o maior susto que se tenha aqui – que ao final o diretor retorna à questão familiar e acaba nos entregando um surpreendente filme sobre o perdão, no sentido mais puro e sincero do termo. O arco dramático da narrativa fecha-se com a fala da mãe, apontando para a necessidade de abandonar o rancor e alcançar o perdão, de forma verdadeiramente emocionante e que se resolve, cinematograficamente, pela escolha da filha em como terminar essa passagem, nas imagens do pai que ela insere ali como reparação. Parece que todo o filme, todo o horror, existe para se chegar naquele ponto. Shyamalan continua acreditando na fabulação como meio para a sublimação. A Visita é um belo e aterrorizante retorno à pureza dessa crença.

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Panorama Coisa de Cinema – parte IV


Mate-me Por Favor (Idem, Brasil/Argentina, 2015)
Dir: Anita Rocha da Silveira


Dos retratos de juventude muito comuns nas narrativas do cinema, em especial no filme de formação, de rito de passagem, Mate-me Por Favor vem a se somar não só como uma representação muito particular de certa juventude, mas que também não se limita a reproduzir lugares-comuns desse tipo de gênero, o filme teen. Anita Rocha da Silveira mira em outro tipo de abordagem que faz pulsar essa juventude, ao mesmo tempo em que a faz encontrar uma morbidez incomum nessa idade.

Essa representação juvenil chega com uma carga muito feminina, mesmo porque a própria cineasta já revelou o quanto o filme guarda muitos de seus anseios de uma época de experiências e descobertas, certamente sem querer aprisionar suas personagens em reproduções já gastas – e mesmo em seus curtas anteriores, como Os Mortos-Vivos e Handebol, já é possível reconhecer essas escolhas. Curioso notar também como os adultos são figuras invisíveis para esses jovens.

Bia (Valentina Herszage) e suas melhores amigas vivem a ebulição da adolescência, e a câmera de Anita sabe muito bem inscrever seus corpos nessa narrativa de desejos pulsantes. Mas a esse universo das turbulências hormonais é acrescido um fator inusual: a pulsão da morte. Há uma morbidez que invade a vida de Bia a partir do momento em que garotas de programas começam a aparecer assassinadas, vítimas de um desconhecido serial killer. Bia se vê atraída por esse universo fúnebre, uma espécie de encantamento pelas coisas da morte, como um ímã que ela não consegue controlar, levando o filme para um lugar território muito curioso de observação e construção narrativa.

Tudo isso tem lugar na Barra da Tijuca, bairro de classe alta do Rio de Janeiro, retratado de forma não necessariamente caricata, apesar da propensão do filme em exceder o tom muitas vezes. Mas não na maneira de enquadrar esse espaço urbano, antes como forma do filme alcançar outro lugar de fabulação de sua própria história, inclusive inscrito em certos personagens, como é o caso da pastora teen, uma barbie-patricinha frou-frou que embala cânticos de louvação a Jesus com batida pop na igreja local.

Há um jogo de plasticidade visual muito forte no filme que acompanha essa escolhas narrativas. Está presente nos coloridos dos cenários e também nas cenas em que o exagero prevalece e a atenção se volta para detalhes curiosos: Bia vomitando sangue diante do espelho do banheiro, a coreografia do passinho, as pregações da pastora.

Mate-me Por Favor resvala no gênero de horror, no subgênero do filme de serial killer, é também um filme teen de coming of age, mas não parece caber nessas caixinhas classificatórias. A obsessão de sua protagonista por um universo novo, seja o das sensações e descobertas amorosas/sexuais, seja o da morte, é o que move a história, sendo menos um filme de causas e consequências óbvias e muito mais atmosférico. Daí que esse tom de excessos pinta o filme de cores muito vivas e particulares. 

Não é tarefa fácil criar esse tipo de ambientação, ainda mais quando não está calcado em um tipo assimilável de narrativa, ou antes faz um cruzamento criativo entre eles. Anita Rocha da Silveira sai-se muito bem nesse que é seu primeiro longa-metragem, muito segura do tipo de construção de sensações que quer promover. Ainda assim, sobram alguns excessos e momentos que parecem deslocados e que não fazem muita diferença no filme – a boate que pega fogo, a disputa gritada entre os estudantes na cantina da escola. Mas a força de sua encenação bate forte, o suficiente para colocar Mate-me Por Favor num lugar de evidência na produção nacional recente.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

O dilema oculto da superação

Depois da Terra (After Earth, EUA, 2013)
Dir: M. Night Shyamalan



M. Night Shyamalan é o tipo de diretor que criou cisões: há os que adoram amar e os que amam odiar. Faço parte da turma que não gosta de certos filmes mais recentes dele e que percebe como sua carreira entrou em declínio a partir de A Vila. Para aqueles que se acostumaram a apedrejar o diretor, esperando dele um novo Sexto Sentido a cada projeto, acredito que o caminho da apreciação de seus filmes deve exigir expectativas menores.

E, mais ainda, exige a percepção de que a obra do diretor vincula-se muito a um senso de encenação do que a meros entretenimentos e histórias facilmente aceitáveis. Seus filmes têm camadas muito mais arriscadas, com apostas perigosas em gestos e acontecimentos discutíveis, mas que escondem por trás deles outras questões mais vitais. Nem sempre isso funciona muito bem, como em A Dama na Água ou Fim dos Tempos, enquanto há exemplos muito mais fortes disso em Sinais, A Vila e O Sexto Sentido.

Daí que Depois da Terra, trabalho anterior lançado nos cinemas (seu mais novo filme, A Visita, está prestes a chegar no Brasil) pode ser visto como um dos filmes menos pretensiosos do diretor, em que certos “dilemas ocultos” são, no fundo, muito simples e funcionam como mero pretexto para se “falar” sobre algo maior. Talvez por conta dessa contenção, e sem a necessidade de criar uma obra cheia de nuances escondidas ou comentários maiores sobre a condição humana, o resultado tenha saído melhor que em seus três filmes anteriores. Também por se tratar de um projeto de encomenda, ainda que nesse processo consiga imprimir uma marca própria.

Aqui, a dica óbvia está plantada já na introdução do filme, quando se explica que os monstros alienígenas soltos para atacar e dizimar os humanos detectam sua presença através do feromônio que liberamos quando sentimos medo. A provação maior de Kitai (Jaden Smith) é de se espelhar em seu pai, capitão das Forças Unidas, capaz de inibir totalmente seu medo e se tornar um verdadeiro “fantasma” para seus temidos algozes. Depois da Terra pode ser visto, então, desde o começo, como um filme sobre o superar o medo, eis a chave evidente do "mistério".

Sendo assim tão explícito o “dilema oculto” que atravessa a trajetória de Kitai, mas também sem martelar tal objetivo na narrativa, o filme consegue se concentrar em outras duas frentes mais palatáveis ao grande público e que fogem à pretensão: a formatação da relação pai e filho, além da investida aventuresca que o protagonista enfrenta nesse lugar inóspito, que calha de ser um planeta Terra mil anos à frente, não mais receptivo à vida humana.

Ora, a narrativa aqui tem uma pegada futurista apocalíptica, embora seja a trajetória particular desse garoto que interessa. Quando a nave comandando pelo seu pai cai na Terra por acidente, e os dois são os únicos sobreviventes, Kitai precisa provar sua coragem e resgatar um sinalizador que se separou da nave. É assim que ele adentra os perigos de um planeta agora inóspito que rejeita os seres humanos que outrora a destruíram. Gravemente ferido, o pai só pode acompanhar à distância a perigosa empreitada do filho.


Está posta à prova aí não só o senso de sobrevivência do garoto, mas a oportunidade de provar a seu pai que é um verdadeiro ranger, um soldado digno de seguir os passos do progenitor. Nesse sentido, o filme também se inclina para certa pieguice familiar, com direito a rememorações constantes sobre a irmã de Kitai, morta tempos antes por conta do ataque de um desses monstros – tipo de tratamento que não acontecia em Sinais, para ficar num exemplo, dentre muitos, em que a família é algo central.

O roteiro também peca em deixar passar pequenos deslizes e furos, vestígio do desapego, muitas vezes nocivo, do cineasta e seus roteiristas pela verossimilhança – mas que faz mais sentido quando o algo maior de seus filmes são mais relevantes, o que não é o caso aqui –, para além das questões fabulares de suas histórias. São problemas que revelam também a propensão do filme a criar certos climas de tensão, forçando a barra, para isso, embora não chega a estragar a fruição do todo como acontece, especialmente, em Fim dos Tempos.

Se Will Smith segura muito bem seu papel, entre o pai durão e o que entende o momento de transição do filho, também em posição de impotência, pondo a vida do filho em risco, o mesmo não acontece com Jaden Smith. Sua expressão constante de “tenha pena de mim” enfraquece sua veia dramática, apesar de sua fragilidade ser bem-vinda por se tratar justamente de um garoto vulnerável tendo de “crescer” à força naquela situação limite. 

Depois da Terra funciona como o blockbuster que vende adrenalinas, ainda que nem sempre bem articuladas, mas passeia pela obsessão de Shyamalan em ser um tipo de filme com mais camadas, mesmo que moderadas e explícitas. Funciona melhor porque se entrega à aventura e, no campo das pretensões, deixa de lado grandes passos. Há algum mal em ser assim?

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Panorama Coisa de Cinema – parte III


Seca (Idem, Brasil, 2015)
Dir: Maria Augusta Ramos


Não sei até que ponto a cineasta brasiliense Maria Augusta Ramos tem consciência do risco que é fazer um filme como Seca, mais um documentário de observação do qual ela tem se especializado em sua carreira. Há dois motivos para esse lance de risco: não parece muito novo o tipo de realidade que ela documenta – pelo menos não aqui no contexto nordestino –, e depois, mais grave agora, é a falta de uma discussão maior a partir do tipo de realidade que a cineasta resolve observar, mesmo que esse tipo de problematização seja realizada através da própria fixação do olhar da câmera.

Certamente, há mais operações de encenação aqui – não nos esqueçamos deles só por estarmos diante de obra que se filia à tradição do cinema direto. As próprias escolhas de montagem e a aproximação com os indivíduos e o ambiente retratados são fatores que formatam a narrativa e dizem muito sobre certas intenções da cineasta. De qualquer forma, Seca parece avançar pouco na construção que desenvolve sobre a condição de muitas famílias do interior nordestino que vivem a falta d’água. O filme acompanha um personagem inusitado: o caminhão-pipa enviado por forças governamentais que circula quilômetros nesse trabalho de abastecimento das residências.

Maria Augusta não faz um cinema de didatismos. Seus documentários não tentam dar conta de contextualizar, explicar e modular reflexões sociais, embora, por muitas vezes, naquilo em que se fixa a atenção de sua câmera, geralmente em casos muitos particulares e microscópicos diante de uma situação maior (seja o sistema judiciário em Justiça e Juízo, seja a política de pacificação das favelas em Morro dos Prazeres, todos ótimos filmes), é possível se chegar a dimensão muito fortes e balizadas de complexidades que nos levam a repensar muita coisa. Isso tudo sem nunca querer dar conta de esgotar esses temas.

Em Seca, essa mesma vontade existe, formatada através do mesmo tipo de formalismo rígido e rigor de construção narrativa de seus trabalhos, mas parece pulverizada diante de tantas questões que se fazem presentes ali. O filme acaba consolidando uma estrutura dura demais que por vezes salta do caminhão para algumas pessoas, mesmo o motorista do caminho na sua rotina familiar, para depois encontrar outros sujeitos que lidam com aquela situação e volta depois para o caminhão. Se essa escolha (ou construção possível) é capaz de nos oferecer um panorama amplo de vidas e rotinas atingidas por essa realidade que se percebe atualmente, ela também deixa de lado certas profundidades que poderiam ampliar muitas outras questões que ganhariam melhor tratamento. 

Muitos foram os filmes que já se concentraram nessa região do Brasil, tendo a seca, a pobreza e a precariedade da vida dessas pessoas como pontos centrais e comuns. Mas muita coisa tem mudado de uns tempos para cá, social e politicamente. Daí que o desafio de se fazer esse tipo de filme hoje confere seus riscos de antemão, ou antes exige uma atenção maior, para além da pura observação de uma realidade – ainda que através dela seja possível alcançar níveis ampliados de reflexão.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Panorama Coisa de Cinema – parte II


TROPYKAOS (Idem, Brasil, 2015) 
Dir: Daniel Lisboa


TROPYKAOS, escrito assim mesmo em caixa alta e com caracteres que remetem a uma proposta cinemanovista-tropicalista, antes mesmo de indicar uma maior predileção por certa marginalidade do cinema brasileiro, mais no espírito do que no resultado final em tela, o filme parece guardar um grito na garganta. Quem o solta é o diretor baiano Daniel Lisboa, nesse seu primeiro longa-metragem, com direito a excessos, para o bem e para o mal.

É como se o título traduzisse uma atitude de ímpeto diante de certos desconfortos do mundo atual, muito pertinente também à força bruta que o filme quer transmitir, embora nem sempre seja feliz nesse sentido. Mesmo assim, trata-se de um trabalho de realização realmente pulsante, com muita vontade de se jogar em questões muito particulares, ainda que para isso sacrifique certa cadência narrativa em prol de uma atmosfera de inquietação constante.

Trata-se de um conto com algo de fabular, ainda que calcado na realidade de uma Salvador presente como urbes caótica, lugar capaz de provocar inquietações e anseios – o centro histórico da cidade funcionando como espaço quase underground num universo de paranoias que ali se instala. TROPYKAOS tenta dar conta da dimensão mental e física de Guima (Gabriel Pardal), um homem atormentado pelo sol causticante da soterópolis baiana. Fotossensibilidade e calor intenso perseguem o personagem que, numa tentativa de fuga, quase se enclausura em casa e nas próprias experiências com drogas.

Porém, a vontade impetuosa de registrar e construir esse universo no qual Guima está inserido, ou antes aprisionado, acaba limitando o filmes às próprias cercanias que cria para si mesmo. O início contém umas das melhores cenas do longa: Guima, andando angustiado pela rua, não suporta o calor e enfia a cabeça na caixa de isopor com gelo e água de um vendedor ambulante. É nesse início também que, conversando com uma médica, ele a explica sua condição de impossibilidade diante da superpotência solar. É certo que o filme entrega de bandeja, desde já, uma constatação que esse personagem já tem sobre si mesmo.

É então que TROPYKAOS passa a girar em torno de um mesmo eixo que consiste em martelar a mesma incapacidade de Guima em conviver com o calor insuportável e suas tentativas de se refrescar sempre que pode. O apreço especial pelo sonhado ar condicionado é mais do que compreensível. É aqui também que o filme soa muito confortável e descolado, e mesmo orgulhoso, em poder falar de “raios ultraviolentos”, de "ar condicionado craniano" ou de não estar “geneticamente preparado para viver nessa cidade”. A frase nem é feliz pela conotação de perigos racistas que possa carregar, mas tudo isso funciona mais como efeito de discurso do que como problemática trabalhada no filme.

No entanto, é também essa entrega de cabeça que acaba revelando momentos de pulsão que fazem a história soltar aos olhos. A cena do bar, caricata na postura mesmo de seus personagens, termina de forma reveladora – a poesia como outra ferramenta, ou arma, de compreensão de um estado de espírito atribulado –, assim como também termina de modo surpreendente certa cena de sexo. Situações como a da explosão do caixa eletrônico e mesmo as cenas surreais na igreja-seita, capitaneada por figuras tão esdrúxulas, parecem demonstrar ali a sobreposição de uma letargia narrativa, apesar de carecerem de uma continuidade que nem sempre tem a mesma força de tom. Ainda assim, é aí que o filme revela suas maiores forças de imagem e atmosfera, de cinema.

Não é com uma textura de imagem mais suja e uma verve mais porralouca que Lisboa se aproxima de um teor marginal enquanto estética. Isso por conta mesmo da presença de uma fotografia mais que solar de Pedro Urano, além do nível caprichado de produção como um todo. Mas é na aproximação com certo espírito da geração superoitista baiana, explicitamente referenciada nas presenças de Edgard Navarro e Bertrand Duarte, que o filme alcança essas alusões e tornam-nas como parte integrante dessa história de inquietações e intrigas interiores – ainda que uma dimensão social não seja relegada a segundo plano, pois ela também não ajuda a limitar e combater essas aflições.

TROPYKAOS se sai melhor como realização quando se permite certas pirações que fazem total sentido dentro da proposta simbólica do filme. É o mal dos trópicos, que enlouquece, ilumina e aquece, ainda que mais pela força de seus atos enquanto modo de coação do que como tentativa de mudar alguma coisa no mundo concreto. Mais até para que se aceite consigo mesmo a essência do caos.

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Ligações perigosas

Aliança do Crime (Black Mass, EUA, 2015) 
Dir: Scott Cooper



De certa forma, Aliança do Crime mira num tipo de assunto pouco visto ou trabalhado sutilmente em muitas tramas policiais que envolvem gangsteres e grupos mafiosos com sua rede de contatos e informantes. Aqui o diretor Scott Cooper investiga frontalmente os meandros dos jogos de interesse entre agentes da lei e chefões, em minuciosa narrativa que tenta dar conta de como essas relações eram construídas. Pena que, enquanto filme policial, Aliança do Crime careça tanto de ritmo mais apurado.

Temos o caso real do mafioso James Whitey Bulger que, entre meados dos anos 1970 e a década seguinte, controlava negócios escusos na região sul de Boston e acaba fazendo um acordo com o FBI para servir como informante secreto. Do lado da “lei”, está o agente John Connolly, antigo amigo de James, que vê ali a chance de tê-lo como aliado, especialmente contra a máfia italiana que começa a crescer seus tentáculos naquela parte dos Estados Unidos.

A primeira terça parte do filme é bastante eficiente em apresentar esses personagens e aqueles que estão ao seu redor, importantes na deflagração daquela perigosa parceria e também na maneira como ela vai desandar até o final. Porém, muitas vezes com um texto frágil e um tanto expositivo, o filme deixa escapar com muita facilidade os desdobramentos que se seguem. Além disso, insiste demais nesse jogo de interesses que, apesar de tão interessante de ser dissecado, não precisa de tanto tempo na tela para se fazer entender.

Há uma tentativa também de humanizar o protagonista. Irmão de um famoso congressista americano, o filme pontua a vida pessoal de Bulger, também a partir de certa tragédia com seu filho pequeno, embora esses momentos parecem servir como pincelada de uma biografia mais concisa do personagem do que algo que contribui necessariamente para a história. Não deixa de lado, no entanto, as práticas violentas e cruéis com as quais Bulger agia, traço de uma personalidade também agressiva e traiçoeira.

Johnny Depp, aliás, aparece um tanto irreconhecível no papel principal, rosto remodelado sob competente e pesada maquiagem. Parece mesmo outro ator, longe de tiques ou trejeitos exagerados e esquisitos que compõem grande parte dos seus papeis em filmes anteriores. Seu Bulger carrega a expressão fria de um rosto duro que prenuncia o caráter violento com que ele lidava com seus negócios, de fato uma composição realmente afiada do ator americano.

Não deixa de ser curioso também que o filme seja narrado a partir do ponto de vista, especialmente, de Kevin Weeks (Jesse Plemons), principalmente capanga de Bulger, “formado” no crime através da participação nos esquemas criminosos. Uma vez preso, vai colaborar com a polícia quando a parceria entre o chefão e o FBI começar a ruir. 

Nesse momento final do filme, a história já demonstra certo cansaço e o ritmo, que poderia ganhar mais agilidade, prefere a rigidez de uma investigação mais apurada, mas nem por isso mais aprazível para o espectador. Aliança do Crime tenta ser mais “sério”, mas só alcança resultados que beiram o conformismo.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Panorama Coisa de Cinema – parte I


Olmo e a Gaivota (Olmo and the Seagull, Brasil/Dinamarca/França /Portugal/Suécia, 2015) 
Dir: Petra Costa e Lea Glob



Olmo e a Gaivota é uma espécie de peça rara na cinematografia nacional (ainda que seja uma coprodução, falada majoritariamente em francês), com uma delicadeza imensa na maneira como lida com um tema pouco explorado, mas não sob o prisma que aqui se revela. Uma pena que isso não seja suficiente para salvar o filme de certo maneirismo contemporâneo de querer estar na fronteira entre documentário e encenação (e esse tipo de colocação já está se tornando um clichê), quando sua maior força estaria naquilo que o filme põe em discussão.

A gravidez, essa dádiva da vida materna, sempre foi muito festejada, inclusive pela dimensão de uma completude da condição feminina. Olmo e a Gaivota olha para esse fenômeno, na subjetividade de uma mulher, para mostrar como a gravidez também tem algo de duro. Seja na solidão, nos anseios, dúvidas e medos da gestante, seja nas mudanças do seu corpo, é a mulher quem mais sente e lida incondicionalmente com as novas demandas desse outro ser que está sendo gerado dentro de si. É um ponto de vista corajoso, sem romantismos fofos, apesar da sensibilidade com que essa faceta nos é revelada.

Olivia vive com seu companheiro Serge. Ambos fazem parte da companhia Théâtre du Soleil, em Paris, e preparam a montagem do espetáculo A Gaivota, de Tchekov. Mas a gravidez inesperada – e de risco – de Olivia a distancia da peça. Ela passa seus dias, então, trancada em casa, com suas memórias e questionamentos. É preciso dizer que essa é a história real desse casal, encenando agora para a câmera um momento de vida dos dois. É mais uma vez nessa fronteira que o filme estabelece seu discurso.  

Apesar disso, o filme parece se firmar muito como ficção, especialmente pela intrusão de uma câmera na rotina íntima daquele casal. Nos momentos mais incômodos do longa, o filme insere trechos em que as diretoras Petra Costa e Lea Glob, fora de campo, conversam e dão instruções aos atores. É aí que Olmo e a Gaivota investe num caminho que não consegue dar conta de seguir: o do processo narrativo. Se a impressão primeira é de que o filme vai se deter na construção fílmica, nas tensões entre atores e diretoras, na formatação de um construção delicada centrada na experiência real daquelas pessoas transmutada em encenação, logo o filme abandona essa ideia e volta a dar atenção às introspecções de Olivia. Certamente estas estão muito calcadas no real, mas sem ter de chamar muita atenção para isso. 

Seria uma maneira de tornar a coisa toda muito moderna, mas acaba soando como modinha. Depois desse desvio, espera-se mesmo uma mudança de tom, mas a narrativa do filme volta a acompanhar os pensamentos da grávida no seu autoquestionamento, mantendo a mesma linha narrativa. Existe uma pureza aí, uma delicadeza muito bem-vinda no tratamento dos dramas humanos, sem soar exagerada – como acontecia no filme anterior de Petra Costa, Elena. Porém pode parecer pouco diante daquilo que o longa parece prometer.