domingo, 29 de dezembro de 2013

Últimas curtinhas do ano

Obsessão (The Paperboy, EUA, 2012)
Dir: Lee Daniels 


Não foi à toa que Lee Daniels viu seu penúltimo filme ser lançado no Brasil somente este ano, momento em que seu novo trabalho, o moroso O Mordomo da Casa Branca, também chegou aos cinemas comerciais. Isso porque Obsessão é fraco em todos os sentidos e parece só ganhar espaço pelo gás que o diretor tenta dar a seus projetos. Mas se o trabalho recente é quase nulo na sua articulação clássica com tons de crítica social, o recente é um atropelo cinematográfico. Um filme arriscadíssimo por conta da história suja que tem pra contar e pelo desequilíbrio que ronda os personagens (até aqueles de que menos esperamos).

Por isso mesmo, o projeto pede um diretor de fibra, que saiba dar contornos interessantes a desdobramentos insólitos, que saiba delinear situações complexas de gente cheia de vícios, que defenda sua história com coragem. É tudo que Lee Daniels não tem e não é. É difícil até mesmo entender quem é o verdadeiro protagonista aqui e aonde o filme quer chegar com sua trajetória de imundices. A famosa cena em que Nicole Kidman mija em cima de Zac Efron, por exemplo, não é ruim pelo seu teor, mas porque é mal orquestrada, dirigida, montada. Todo o filme é assim, cheio de opções estranhas, estética e narrativamente, sem foco, mal pensadas, sem paixão.


Spring Breakers – Garotas Perigosas (Spring Breakers, EUA, 2013)
Dir: Harmony Korine 


Pois coragem é tudo que Harmony Korine tem e demonstra nesse seu Spring Breakers, um retrato cru, crítico e escroto sobre o "ser jovem americano" de hoje. Mas longe de fazer somente um mero comentário social, o cineasta faz escolhas narrativas muito certeiras. Primeiro porque Korine cria um universo muito particular ali, desde as cenas inicias numa praia em que uma série de adolescentes dançam impudentemente e fazem gestos obscenos para a câmera. É um mundo porra-louca, ignóbil, visto como uma grande curtição despudorada. É tudo que as protagonistas (Selena Gomez, Vanessa Hudgens, Ashley Benson, Rachel Korine) desejam, é àquele universo que elas querem pertencer, por onde circular.

Depois porque, ao incorporá-las àquele ambiente, o diretor-roteirista nunca as ridiculariza; e vai além: deixa que elas se tornem senhoras daquela narrativa. Se de início o filme acompanha as meninas naquela aventura, torna o sonho em pesadelo, faz surgir um benfeitor (também um oportunista bon vivant escroto, vivido insanamente por James Franco), o filme vai saber também se curvar a elas na sua ignomínia, mais uma vez sem julgá-las. A cena em que eles invadem a casa do gângster é exemplar nesse sentido, tudo ali serve ao propósito delas, seja real ou não. É quando todo o estilo hype da fotografia multicor e a câmera lenta deixam de ser um mero modismo estético moderninho e passa a comentar, melancolicamente, aquela trajetória torta. É uma grande aventura para elas, mas do outro lado da tela só temos a lamentar.


The Bling Ring – A Gangue de Hollywood (The Bling Ring, EUA, 2013)
Dir: Sofia Coppola 


Sofia Coppola faz aqui algo parecido a Spring Breakers: tece um olha por dentro de um universo bem específico, dominado pela vontade de jovens em serem e conquistarem certas coisas; ela não os julga, mas coloca na mira toda uma sociedade baseada no consumo e no exibir. Os garotos californianos que conseguiam invadir as casas das celebridades de Hollywood com a maior facilidade, roubar e exibir-se com seus pertences caríssimos, tão abundantemente espalhados pelos cômodos das casas, tanto que muitos dos donos nem notavam a falta quando algo era subtraído, são jovens que foram criados num mundo de sonho glamouroso. Coppola é pessoa ideal para esse tipo de registro, pois parece conhecer muito bem aquele ambiente, está apta para abordar esse tipo de comportamento que lhe é tão próximo, vinda de tradicional família da indústria hollywoodiana.

Mas o maior entrave do filme é que ele pouco consegue dar maiores dimensões àqueles personagens. Conhecemos suas fraquezas, entendemos como sua mente juvenil (e delinquente-burguesa, de marca) funciona. Mas o filme pouco avança nos propósitos, conflitos, rotinas e vida familiar que eles levam, com um pouco de exceção para a personagem de Emma Watson. Por outro lado, o fascínio que Marc (Israel Broussard) nutre pelo estilo de vida da colega de furto Rebecca (Katie Chang) frustra pelo desprezo que o roteiro tem por essa relação que parece tão interessante. O filme acaba se tornando redundante nesse show de invasões domiciliares e curtição (e o filme já começa com uma). Brincando de ser Paris Hilton, aqueles jovens são mais um reflexo da monstruosidade alimentada por um certo convívio social.


Doce Amianto (Idem, Brasil, 2013)
Dir: Guto Parente e Uirá dos Rei 


Doce Amianto não tem vergonha nenhuma em ser fake. Esse é o seu trunfo, é ali que ele quer se estabelecer. Se logo no início vemos a protagonista correndo contra um fundo colorido, num evidente uso de chroma-key que já dá o tom aberrante que rege todo o filme, já deixando o espectador de sobreaviso pelo que se encontrará pela frente. Para interpretar a protagonista Amianto, o ator Deynne Augusto travestiu-se, coisa que nunca tinha feito antes. O excesso dos figurinos e maquiagem e os constantes experimentos visuais usados pelos diretores cearenses funcionam como uma carta de princípios para estabelecer o lugar deslocado em que a narrativa se encontra, ainda que o filme opere no registro do melodrama, usando e desvirtuando algumas de suas marcas.

Depois que a protagonista é abandonada, literalmente na sarjeta, pelo homem que ama, ela vai refugiar-se num mundo onírico de fantasias, tendo como única companheira a aparição de sua amiga morta, Blanche (vivida pelo próprio Uirá dos Reis). Pareceria tudo muito estranho nesse filme, caso não houvesse tanta segurança na condução de um universo tão particular. É certo que o ritmo da narrativa cai bastante quando o roteiro insere uma história paralela que em nada parece ter relação com o drama de Amianto. Não é, portanto, um filme de caminhos fáceis, mas faz muito bem ao se propor uma criação de cores tão intensas quanto pessoais.


Crazy Horse (Idem, EUA/França, 2011) 
Dir: Frederick Wiseman 


Mais um documentário de observação, dessa vez com foco nas apresentações do famoso cabaré francês de nu artístico Crazy Horse. Wiseman, mestre do cinema direto, filma uma bela sinfonia de corpos que dançam e se despem, sem pudores, com tesão. Seu maior acerto está em se interessar mais pelos bastidores e pela preparação do que pelo espetáculo em si, sendo esse bastidor já um espetáculo de luzes e curvas sinuosas em si. Mas também de reuniões da cúpula produtora dos shows, dos testes de audição e conversas de camarim e corredores que fazem parte da rotina diária da casa, também com seus problemas e conflitos internos.

O filme só perde um pouco quando se esforça por ouvir os responsáveis pelo show, mesmo que se aproveitando de entrevistas dadas a outras pessoas, como se isso não servisse ao próprio filme como respostas diretas a certos questionamentos. Busca no explicativo algumas relações e processos que se estabelecem ali naquele ambiente e por isso enfraquece a veia direta do cinema que o diretor tão bem persegue. De qualquer forma, esse olhar sobre o lado de dentro daquele lugar resplandece de beleza, excitação e apuro estético como não podia ser diferente, vindo desse cabaré e desse cineasta.


terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Memória ativa

Vocês Ainda Não Viram Nada! (Vous N’Avez Encore Rien Vu, França/Alemanha, 2012)
Dir: Alain Resnais


Alain Resnais, 90 anos, cineasta vigoroso. É o que não cansa de comprovar esse seu mais novo filme, algo que nem precisava ser atestado, vide exemplos recentes de maturidade e vivacidade fílmica, como em Ervas Daninhas e Beijo na Boca, Não!. Vocês Ainda Não Viram Nada é como um prolongamento evidente de um trato elegante com o fazer cinema, mais um trabalho de encenação caprichado, num filme cheio de camadas e conduzido com uma leveza incrível. Resnais parece dirigir brincando.

O diretor reúne ainda um time de atores sensacionais para criar um verdadeiro jogo de cena criativo em que seus personagens passam a dominar a narrativa pelo simples ato de lembrar. Poucas vezes o ser ator foi celebrado com tanto carinho como é aqui nesse filme perpassado pela memória.

Quando o diretor de teatro Antoine d’Anthac (Denis Podalydès) morre repentinamente, um grupo de atores de sua confiança recebe uma mensagem sua preparada previamente para que eles compareçam a sua casa a fim de assistir a uma projeção de sua peça Eurídice, encenada por um grupo teatral formado por jovens. Eles terão que aprovar ali se aquela nova versão ficou realmente boa. Está montado o palco de um misterioso jogo que, se esconde algo de nebuloso pela forma teatral mesmo pela qual se dá, logo ganha novos ares.

É assim que Sabine Azéma, Pierre Arditi, Anne Consigny, Lambert Wilson, Michel Piccoli, Mathieu Amalric, Anny Duperey, Hippolyte Girardot e outros, interpretando a si mesmos, vão adentrando na peça, tomando para si os personagens que outrora eles mesmos encenaram para d’Anthac, ultrapassando barreiras espaciais e temporais. Todo o filme, e mesmo aqueles que se projetam na tela que eles assistem, parece se curvar a essa nova performance que ali se estabelece.

Assim como a personagem de Emmanuelle Riva em Hiroshima, Meu Amor transportava-se para outro espaço-tempo a partir do leve movimento de uma mão, os atores agora, diante das falas que eles tão bem conhecem, ativam em sua memória os tempos idos em que eles estiveram no palco. E nada disso é previamente proposto, mas antes um movimento quase que automático por parte de quem recorda, perpassando pela lembrança e pelo afeto. É mais uma bela celebração da memória, toda cheia de liberdades poéticas que ultrapassam o registro do naturalismo, como sempre foi a vocação do diretor.

Resnais domina o espaço como ninguém. Não só sua câmera passeia candidamente em busca do ângulo mais apropriado para dar conta dos reveses dessa história, como os personagens/atores se deslocam, nesse espaço-tempo de que agora são donos, a fim de resgatar e defender seus personagens/personagens. 

É interessante notar como, meras peças de um jogo que vai sendo lhes apresentado sem regras definidas, aquelas pessoas ali passam a dominar a narrativa, reconstruindo e ressignificando (mais que meramente repetindo) a trágica história de amor de Eurídice, apaixonando-se perdidamente por Orfeu, por acaso, num dia que será tão trágico. Para nós que assistimos, é um dia de deleite.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Síndrome épica

O Hobbit: A Desolação de Smaug (The Hobbit: The Desolation of Smaug, EUA, 2013)
Dir: Peter Jackson




É inegável que Peter Jackson seja o cineasta ideal para conduzir essa história. Não só pelo talento em conduzir narrativas épicas, mas a própria familiaridade com o universo da Terra Média idealizada por J. R. R. Tolkien, já devidamente atestada nos filmes anteriores que ele levou adiante. Mas isso nem sempre é uma vantagem.

Se parece muito comum que a máquina hollywoodiana de fazer dinheiro tente se aproveitar ao máximo para criar franquias longevas, capazes de levar mais gente aos cinemas (e muitos fãs), em prolongamentos dos projetos originais, a questão aqui é que a megalomania parece vir do próprio Jackson. Daí que o diretor e seus produtores resolveram dividir em três (longos) filmes uma história que se resolveria com bem menos, tudo em prol de bilheterias fartas, é evidente.

Bilbo (Martin Freeman) continua na companhia dos anões liderados por Thorin Escudo de Carvalho (Richard Armitage) e de Gandalf (Ian McKellen) na tentativa de recuperar a fortaleza de Erebor, na Montanha Solitária, antigo lar dos anões, agora dominada pelo temido dragão Smaug, que também se apoderou de toda a mina de ouro guardada pelos pequenos.

Nada contra o fato da mitologia d’O Hobbit ganhar ampliações e conexões com a saga d’O Senhor dos Aneis, uma vez que isso já estava presente no primeiro filme dessa nova etapa da série. Mas é chato quando percebemos certas correlações forçadas com a trilogia anterior. O arco dramático que envolve Thorin, por exemplo, não passa de um mero repeteco daquele em torno de Aragorn (Viggo Mortensen), uma vez que seu papel como rei herdeiro do trono dos dragões ganha destaque na narrativa como um novo propósito a alcançar; um novo retorno do Rei, portanto, espera o espectador no próximo filme.

É quase como se não pudéssemos mais enxergar as duas séries como projetos distintos. Mais que tudo, O Hobbit seria uma história de teor infanto-juvenil em que o fator adrenalina e o tom aventuresco estão acima de questões mais profundas. O que esse segundo filme faz é enxertar uma atmosfera épica, vista anteriormente, a fim de torná-lo mais grandioso, e lucrativo.


Mas aí a coisa se torna mais complicada quando A Desolação de Smaug passa a enfrentar quebras de ritmo por conta da insistência em conectar as duas trilogias. E isso é sentido muito mais nesse longa. É como se as expectativas fossem, a todo instante, sendo sabotadas pelo próprio filme, o que acontece em vários momentos, especialmente nos caminhos percorridos por Gandalf. Ou quando o roteiro investe em subtramas desinteressantes, como o flerte entre a elfa Tauriel (Evangeline Lilly) e o anão Kili (Aidan Turner).

Mesmo no clímax da narrativa, o filme consegue desperdiçar grande parte de sua tensão quebrando a cadência rítmica ao montar a sequência paralelamente ao que acontece em um lugar próximo dali. Há bons momentos de aventura ao longo do todo, como a sequência da fuga na correnteza, ainda que repleta de pequenos problemas de desenvolvimento. Mas são constantes na obra as pausas narrativas para dar conta dos rumos de caprichos épicos que o projeto acabou tomando. 

O espetáculo visual também permanece lá, enchendo olhos e ouvidos, ainda que o velho problema de subaproveitamento do 3D persista, não acrescentando nada à narrativa, nem rendendo bons momentos. E assim a série O Hobbit vai se alongando para mais uma trama grandiloquente, deixando de lado um tom mais aventuresco, e nem por isso menos interessante, ser esmagado pela cobiça do épico.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Marcas de afeto

Tatuagem (Idem, Brasil, 2013)
Dir: Hilton Lacerda





Vem de Pernambuco mais um belo exemplar de cinema com personalidade, no mesmo ano em que O Som ao Redor ganhou as telas comerciais do cinema brasileiro, depois de um grande sucesso mundo a fora. Hilton Lacerda, à frente de seu primeiro longa-metragem de ficção depois de um logo trabalho como roteirista nos filmes do conterrâneo Cláudio Assis, chega com um filme que faz alarde, mas cercado de afetos.

Tatuagem vem (e vence) pela marca do escracho. Logo em um dos primeiros números apresentados pela trupe de teatro Chão de Estrelas, um dos personagens diz que “nossa arma é o deboche”. É a dica para que encaremos com muito bom humor e anarquismo contestador as apresentações do grupo, cheios de um subtexto (homo)sexual e político. 

Clécio (Irandhir Santos) é o líder do grupo que batalha para continuar mantendo de pé o seu ganha-pão com os poucos recursos de que dispõe, e ainda tendo de enfrentar a censura militar em fins dos anos 1970. Um dos grandes acertos de Larceda é nunca transformar seu filme numa mera bandeira contra os ditames da Ditadura simplesmente, mas antes em dar relevância a um tipo de comportamento duramente oprimido, inclusive socialmente.

O romance que vai surgir entre o protagonista e o soldado Fininha (Jesuíta Barbosa), cunhado do melhor amigo de Clécio, o espalhafatoso Paulete (Rodrigo Garcia), já dá conta de contrapor lados que se chocam, mas ganhando nuances mais picantes aqui. É, portanto, um filme que clama por liberdade, artística e sexual, via comportamentos que desafiam a moral vigente. Lacerda conduz com muita delicadeza o que está na esfera dos sentimentos, e as pessoas que se reúnem em torno do grupo não deixam de formar uma bela e desordenada família, apesar das desavenças que surgem em certos momentos.

E conduz desprovido de todo moralismo o que se encontra no âmbito do questionamento de valores e hipocrisias sociais. A Polka do Cu, canção-desbunde cujo número é apresentado na parte final do filme (e deflagrador de consequências duras), é um desses momentos não só carregado de coragens e escracho, mas que representa muito bem uma visão de mundo que aquelas pessoas (e o filme) compartilham harmoniosamente.

Há de se destacar um cuidado muito conceitual na textura do filme vinda de uma fotografia em tons granulados que denunciam a época passada (quase como um registro nostálgico) e também um momento ainda opressor, apesar da alegria que aquele grupo quer propagar com seus espetáculos. A trilha sonora, uma feliz parceria com DJ Dolores, é outra marca que faz a ponte do filme com o gênero musical, mas de forma muito pessoal. 

Dos trabalhos que roteirizou para Cláudio Assis, Lacerda mantém a veia contestadora, de tons anárquicos que afrontam o mais tacanho dos moralismos. Mas Tatuagem é também dotado de um lirismo e carinho por seus personagens que o coloca bem longe daquilo que Assis já dirigiu (com exceção, talvez, do mais poético A Febre do Rato). Nesse equilíbrio de atmosferas, Larceda acrescenta mais uma peça na filmografia pernambucana recente que faz o cinema nacional pulsar, contestadora e afetuosamente.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Ondas de calor

Azul é a Cor Mais Quente (La Vie d’Adèle, França/Bélgica/Espanha, 2013)
Dir: Abdellatif Kechiche



Kechiche é um cineasta das coisas políticas. O fato de ser um tunisiano radicado na França dota seu cinema de preocupações com a condição do povo árabe num França cada vez mais xenofóbica (como visto em
A Culpa é do Voltaire), ou mesmo da própria condição daqueles que são extraídos de seu lugar de origem para servir ao fetiche exótico do europeu (Vênus Negra). Mas seria um equívoco achar que Azul é a Cor Mais Quente distancia-se desse aspecto politizado uma vez que toca em tema polêmico numa França em que a homofobia tem crescido nos últimos tempos. 

O despertar da sexualidade da jovem Adèle (Adèle Exarchopoulos) e a descoberta de um desejo que se inclina para outras mulheres são os pontos de observação desse filme altamente festejado desde que ganhou a Palma de Ouro em Cannes este ano. Interessante que justo num momento em que se discute com tanto afinco (e também ojeriza) a união de pessoas do mesmo sexo, esse filme venha somar e complexificar a questão.

Estamos longe do filme puramente panfletário, apesar de em alguns momentos isso ganhar amplitude maior, como na cena da discussão com as colegas de classe. É um deslize que pega carona em momentos nos quais o filme tenta parecer militante (como nas sequências do protesto na rua ou na estranha exibição de A Caixa de Pandora durante uma festa, com destaque para a figura sensual de Louise Brooks ao fundo, é claro!).

Mas Kechiche interessa-se muito mais pelo aspecto íntimo e pela trajetória emocionalmente conturbada dessa menina, via registro altamente naturalista com que acompanha o desabrochar de uma flor. É bastante reconhecível essa estética da câmera na mão, colada em seus atores, perscrutando olhares e gestos que dizem muito sobre os personagens, especialmente os dessa menina que tateia em busca de uma compreensão de si e de seus sentimentos.

E basta que a estranha moça de cabelos azuis (Léa Seydoux), mais do que chamar atenção por esse detalhe físico, ganhe espaço nos sonhos eróticos de Adèle. É nesse ponto que o filme aposta no sexo como potência de descobertas e consolidação de um desejo, embora nada seja definitivo na história (mais de uma vez, figuras masculinas vão tentar por à prova a vontade da protagonista). E é muito bonito ver como o filme confere tanta importância a isso não tratando o sexo como um simples ato carnal que precise constar numa ceninha rápida.

Antes que puramente voluptuoso, o sexo representa a experiência de atração e satisfação que essas duas jovens experimentam entre si. O que as longas cenas de sexo têm de cru, explícito e intenso só reforçam o tom naturalista que o filme persegue do início ao fim, para além do amor que também brota dali. Especialmente na forma como Adèle se conecta a Emma, tornando o filme o retrato de uma grande paixão pela qual vale a pena lutar.

Ainda que se alongue demais, Azul é a Cor Mais Quente mantém um ritmo muito coeso em sua estrutura. É interessante perceber como a história avança por meio de certas elipses que dão conta de algumas transformações de Adèle numa mulher, apesar da menina apaixonada e insegura ainda ser visível por entre seus os cabelos desgrenhados. 

Se aqui ou ali o roteiro precisa forçar certos conflitos (como todo o desentendimento entre as duas personagens na parte final do filme), Kechiche se esforça para filmar uma paixão que brota da vida comum, como qualquer outra. É como o azul, essa cor aparentemente fria, melancólica, mas passível de esconder mais calor e pulsão do que se imagina.