segunda-feira, 24 de junho de 2013

Horror-conceito

Mártires (Martyrs, França/Canadá, 2008)
Dir: Pascal Laugier


O filme de terror/horror/suspense está entre aqueles gêneros que mais carecem de bons exemplares recentes (pode-se incluir nesse grupo também a comédia romântica e o filme de ação), para além da adoração dos próprios fãs. Isso porque o mercado de entretenimento entope os cinemas com muita coisa mal escrita, mal dirigida, repleta de lugares-comuns; são filmes fáceis, o que acaba por se distanciar de um certo público. Daí que esse Mártires salta aos olhos pelo apelo de um filme de horror com conceito, peça rara nesse mercado de coisas rápidas e que se querem rentáveis.

Se a história começa como um filme de horror com tons de alucinação, é interessante notar os caminhos pelos quais as protagonistas vão passando, cheios de reviravoltas, todas muito bem inseridas no enredo. Da menina que foge assustada de um cativeiro, múltiplas feridas pelo corpo, queremos saber, assim como ela, quem e por que faziam aquilo. Num orfanato, passa a ter alucinações, mas faz amizade com outra garota, a única que parece se afeiçoar a ela. São ambas que, já adultas, procuram os responsáveis pelas torturas, com sede de vingança.

É junto com elas que vamos montando as peças, tudo parte de um quebra-cabeças mais amplo e complexo. É surpreendente como o filme nos apresentará algo muito maior e mais impactante em termos de história, momento em que a ideia de “mártir”, aqui quase um conceito filosófico-religioso, ganha força enquanto justificativa para um fim arrebatador. Tudo isso permeado pelo horror da degradação do corpo e da mente humana.


O filme não deixa de ter sua cota de ultraviolência e sina sanguinária, dialogando com o gore e a história de vingança levada às últimas consequências, num filme de imagens muito fortes e brutais. E essa parece uma constante interessante no cinema de horror francês, em exemplares como o ótimo e simples A Invasora ou em Alta Tensão, esse com tons mais psicológicos (curiosamente, todos eles centrados em figuras femininas fortes). 

A ideia de um filme de horror com tons conceituais parece ser algo muito próprio do diretor Pascal Laugier, coisa que ele também fez no seu filme seguinte, O Homem das Sombras. Há neles a imprevisibilidade dos rumos da história e o suspense ou terror como um caminho para se chegar num patamar distinto de causas e efeitos. Ganha o espectador com um filme que satisfaz o gênero e ainda se preocupa em dar um passo além.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Jogo de cena

Anna Karenina (Idem, Reino Unido, 2012)
Dir: Joe Wright


Num filme em que cinema e teatro se cruzam como uma narrativa assumida enquanto linguagem pretendida, é bastante pertinente que se comece com uma cortina se abrindo para o púbico. É o que acontece nesse Anna Karenina, mas com uma diferença: essa cortina é um desenho numa placa que sobe e revela ao público o palco do espetáculo. Eis aí um belo artifício de introdução a esse peculiar jogo de cena a ser utilizado durante todo o filme.

E que belos riscos esse filme apresenta. Joe Wright, do ótimo Orgulho e Preconceito (para ficar num bom exemplo de romance de costumes antigos), assume muito bem um misto de encenação teatral e cinematográfica, para além da beleza que uma história de época carrega no todo. Enquanto aquele era muito mais clássico na sua roupagem melodramática, a Anna Karenina de Leon Tolstói ganha aqui a mão e visão inquieta de Wright, que se arvora em abusar dos recursos cenográficos em evidência, alcançando um tom teatral quase farsesco, para levar adiante sua história.

Mas mais do que um capricho de querer fazer diferente, ainda mais por se tratar da adaptação de um clássico da literatura universal que já foi levado tantas vezes para o cinema, o diretor consegue fazer comentários muito interessantes sobre os personagens, seus dramas e as situações que eles enfrentam através dessas suas brincadeiras de cenografia.

Porque a história da mulher casada e aristocrática (Keira Knightley) que se apaixona perdidamente por um jovem (Aaron Taylor-Johnson) já comprometido com outra moça não é das mais originais. É aí que entra a desfaçatez da narrativa, tendo o palco como espaço de transmutação de ambientes, mais do que o plano que corta e nos coloca em outro espaço. A protagonista se movimenta e vê um cômodo transformar-se em outro, encurtando as distâncias. Com um simples rolar de trilhos, o ambiente das ruas de Moscou dá lugar a uma região campestre gélida no interior do país.

Daí que o filme nos presenteia com um punhado de ótimas cenas, as melhores delas quando abandona de vez a naturalidade da encenação e se abraça o artifício mais visível. Numa delas, depois de brigar com o marido dentro de uma carruagem, Karenina sai para a rua, encontra um labirinto de sebes, vai sacando as roupas que a sufocam e, surpreendentemente, encontra o jovem amado e o abraça. É desse atrevimento que o filme se alimenta e ultrapassa a simples história do amor verdadeiro que luta contra as convenções sociais para se concretizar. 

Mas ainda assim, enquanto tece suas brincadeiras narrativas, o filme dá a dimensão exata dos enfrentamentos contra os quais essa mulher luta para ficar junto de seu amado. Flertando com o melodrama mais rasgado e bem conduzido, Anna Karenina é um esforço de realização e encenação bonito de se ver, transformando a história batida de amor em algo bonito de se sentir.