Fragmentado
(Split, EUA, 2017)
Dir: M. Night Shyamalan
Não é de se surpreender que, mais uma vez, Shyamalan faça
render o suspense a partir de uma premissa tão objetiva, explorando ao máximo
poucos espaços e personagens. É quase um contrassenso dizer isso porque seu protagonista
expande-se psicologicamente entre 23 personas distintas, algo que o torna tão
perigoso quanto fascinante.
Fragmentado acompanha
os planos inicialmente incertos desse homem desdobrado em tantos ao sequestrar três
adolescentes. Há muitas pessoas vivendo no corpo de Kevin (James McAvoy), como
diz a Dr. Fletcher (Betty Buckley), psiquiatra que cuida do caso do rapaz. Ele,
aliás, tem consciência de seu próprio transtorno de personalidades. Em muitas
conversas, ele fala em “nós”, como se estivesse incluído num grupo maior de
pessoas em que cada um reconhece as particularidades do outro; e eles estão começando
a entrar em conflito.
A maturidade de Shyamalan como encenador está ali, intacta, neste belo exercício de tensão que é Fragmentado. Há um domínio exato da atmosfera de suspense, tanto a partir das tentativas de fuga
das garotas, quanto na onda crescente de perigo que aponta para o possível
surgimento de uma 24ª personalidade em Kevin, mais bestial e violenta, e que
justificaria o sequestro das jovens.
O roteiro do filme confere especial atenção
para uma das meninas, Casey (Anya Taylor-Joy). Ela é o patinho feio da turma, retraída
e de poucos amigos; é sequestrada por acaso por estar junto com as outras duas
garotas no momento. O filme intercala flashbacks
dela quando menina, indo acampar com o pai e o tio. Os desdobramentos de
situações vividas na infância vão revelar muito sobre os traços de comportamento
na adolescência. É um momento também que Shyamalan discute a natureza animal do
ser humano, como atitude diante do mundo e também no seu instinto de sobrevivência.
E tudo isso vai convergir, espertamente, para o desfecho do filme, revelando um
cuidado preciso na construção do roteiro.
E por se tratar de um filme de Shyamalan, não poderia deixar
de haver ali um sentido maior que ronda a história (Sinais, por exemplo, é um filme sobre a necessidade da crença; O Sexto Sentido, sobre um garoto que
precisa de atenção; A Vila versa
sobre os dilemas da sociedade frente ao estado de violência). Curioso que, em
geral na obras do cineasta, esse sentido vem escondido e ascende no final.
Porém, em Fragmentado, Shyamalan
prefere ser mais explícito: está na tese da psiquiatra, didaticamente defendida pela própria personagem no primeiro terço do filme, a ideia de que as pessoas com esse tipo de transtorno dissociativo de personalidade conseguem
acessar habilidades sobre-humanas escondidas na mente, uma vez que cada uma das
personalidades é capaz de modificar os componentes psicológicos e mesmo
fisiológicos do corpo.
Essa opção em “frontalizar” as disputas travadas no cerne do
filme já estava presente no longa anterior, A
Visita, em que o cineasta preferia mostrar do que esconder – escrevi melhor sobre isso aqui). Decerto que havia uma
reviravolta no final, mas agora o cineasta parece menos refém dos plot twists e mais focado em envolver
suas histórias e personagens em questões maiores.
Agora em oposição a A Visita, por quase toda a projeção de Fragmentado, Shyamalan vai deixando claro que nada ali estaria no
reino do fabular. Porém, nos momentos finais oferece interessantes indícios sobre as
possibilidades sobrenaturais que pode haver na capacidade mental, agora sim
fazendo links possíveis com o terreno do fantástico.
A partir daqui a
crítica contém SPOILERS. Continue a leitura por sua conta e risco.
Esses momentos finais do longa são fundamentais para se pensar
a maneira como as coisas estão interligadas. O gancho que ele estabelece na
exata cena final com o universo de Corpo
Fechado é mais do que uma grande curiosidade a aplacar a ânsia dos fãs por
uma continuação. Ela ajuda a completar os sentidos que estão implícitos em Fragmentado.
O mais fundamental é a relação a se estabelecer entre as
personalidades de Kevin, capitaneadas pela Fera, com Casey. Já estava lá em Corpo Fechado a ideia de formação da
figura do herói e, em menor medida, do vilão. E além isso, de como eles podem
ser similares, mas também polos opostos que justificam um a existência do
outro. São as metades que se complementam. É justamente quando a Fera reconhece
a “alma despedaçada” de Casey, ele se recusa a matá-la. Entendemos, então, toda
a construção do passado da menina e suas tragédias subentendidas como modo de
fortalecer a personagem enquanto pária, tão problemática e incomum como o próprio
Kevin, e que a Fera identifica como um igual, apesar de intenções distintas.
Ele e suas múltiplas peles passam a ser chamados agora
de O Horda, o que remete a um outro “sujeito esquisito” visto no filme anterior,
o Sr. Vidro. São ambos vilões que surgem por força das circunstâncias
biológicas e psicológicas com que vieram ao mundo e os tornaram seres atípicos. Está dada a largada para a
ampliação do universo mitológico em torno de tais figuras arquetípicas e também
dilaceradas.