quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Anarquia pulsante

Zero de Conduta (Zéro de Conduite: Jeunes Diables au Collège, França, 1933) 
Dir: Jean Vigo


Assistir a Zero de Conduta à sombra de sua obra mais festejada, O Atalante, é uma experiência interessante de descortinamento de um talento. Existe algo pulsante ali, um cineasta louco para experimentar com a linguagem do cinema. Fez isso em pouquíssimos filmes, já que teve uma vida curta e saúde debilitada. Filmando no que hoje chamaríamos de cinema de guerrilha, Jean Vigo batalhava para levantar suas obras e colher um olhar original sobre o mundo, algo que pode ser sentido em cada um de seus filmes.

O espírito anarquizante dos meninos de um internato, tema desse média-metragem, parece ter atingido o Vigo cineasta, fazendo sua escola de cinema no próprio exercício de realização fílmica. Com Zero de Conduta, o diretor tateia um meio de expressão cinematográfica da mesma forma anárquica por não querer se enquadrar em um estilo único e facilmente reconhecido.

Vivia-se, à época, o período das muitas vanguardas artísticas que floresciam na Europa, e Vigo parecia deslumbrado com toda aquela efervescência. Por isso que há em Zero de Conduta algo das pantomimas imortalizadas nos personagens de Charles Chaplin, a montagem rápida e inteligente (ainda que algumas cenas pareçam terminar abruptamente), o registro lúdico que remete à proposta surrealista, enfim, uma série de referências que perfazem este filme atípico.

O que poderia ser tomado como uma desordem fílmica, um atirar para muitos lados, pode ser visto como a mais pura busca pelo estilo, testando as possibilidades da encenação. Também assim o era A Propósito de Nice, seu primeiro curta-metragem, uma sinfonia urbana movida pelo prazer de filmar a cidade e seus tipos. O refinamento maior ganha forma no seu último filme, único longa, o maravilhoso O Atalante.



O mais curioso é que dessa colcha de retalhos, brota em Zero de Conduta uma narrativa muito direta. As situações e pequenos incidentes somam-se como fatos do cotidiano daquele lugar. Porém os estudantes engajam-se numa espécie de sublevação da ordem imposta pelos dirigentes de um ambiente repressor. As brincadeiras que desfiam a moral, as regras e os desmandos instituídos vão crescendo em destemor, até culminar numa espécie de tomada de poder.

É certo que o espírito libertário das crianças possui um engajamento de caráter “político”, mas sem a consciência de tal ato. A escola (ainda mais um internato), como instituição responsável por educar o cidadão, assume a posição rígida com que dita suas regras e impõem a ausência de diálogo. O que aquelas crianças mais querem é verem-se livres de amarras, essas mesmas que dão vazão a suas pirraças endiabradas. A busca não é pelo controle do poder em si, mas pela quebra de uma barreira imposta que não permite a vasão dos instintos infantis (simbolizados aqui pela brincadeira). 

Curiosamente, há um personagem que parece deslocado: o novo inspetor que chega para tomar conta dos meninos, mas que parece simpatizar com suas brincadeiras e algazarra, embora devesse representar o lado da instituição escolar. Talvez com isso Vigo queira nos dizer que não só as crianças podem (e devem) guardar esse espírito libertário – embora ali esteja em sua forma mais pura. A anarquia com que se confronta a severidade da ordem do mundo pode estar em cada um de nós.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

O peso da eternidade

Amantes Eternos (Only Lovers Left Alive, Reino Unido/Alemanha/Grécia, 2013)
Dir: Jim Jarmusch



Esqueçam os filmes de horror em que os sugadores de sangue aparecem como seres das trevas assustadores, atacando humanos. Os vampiros de Jim Jarmusch vivem outros embates, o mais duro deles: com o próprio tempo. Seres imortais, estão relegados à eternidade e chegam ao mundo contemporâneo como que tomados de apatia e torpor, cansados, sentindo o arrastar dos dias.

As criaturas não saem à luz do sol e precisam de sangue para se alimentar, como ditam as regras clássicas do universo dos vampiros. Mas não estamos no terreno genérico dos filmes de horror. O que está em jogo aqui é a forma como o tempo pesa sobre esses personagens e promete continuar pesando, a eternidade como fardo num mundo não mais agradável para eles.

Na cena inicial, um movimento circular de câmera pega os personagens do alto, focando sua atenção no casal Eve (a multifacetada Tilda Swinton) e Adam (Tom Hiddleston), como se prenunciando um tempo que não para de girar, vagarosamente. Ele tem toda pinta de rockstar decadente, com tendências suicidas; ela é superculta, atenciosa e amorosa com o velho vampiro Marlowe (John Hurt) – o antigo dramaturgo? –, e atende ao chamado de Adam quando este, entediado de tudo, quer revê-la – são um casal, na verdade.

Amantes Eternos consegue manter, do início ao fim, um tom aguçado de nostalgia e morbidez sem nunca se tornar enfadonho. Cria de tal forma uma atmosfera soturna, que embala o espectador na vida não mais idílica daqueles vampiros. Como algo de expressionista, a narrativa tem lugar numa Detroit a mais realista possível, decadente e decrépita, abandonada em bancarrota, o que encontra um paralelo direto na rotina daqueles vampiros de cabelos desgrenhados e olhar cansado, tais quais hippies largados e desgastados, consumidos pelo tempo.

O filme só se permite uma quebra nesse tom com a entrada em cena de Ava (Mia Wasikowska), irmã de Eve, “jovem” e inconsequente, destilando impertinência para o desespero de Adam. É uma nova geração, vista com olhar de suspeita, aberta aos prazeres da vida moderna, ainda que continuem buscando o sangue mais fresco para beber. A presença inoportuna de Ava só reforça o contraste com aqueles adultos que parecem estancados no tempo.

Adam e Eve sempre evocam um passado mais idealizado, buscando referências que vão de Mary Shelley a Lord Byron. São personalidades artísticas com quem os personagens parecem ter convivido séculos atrás, compartilhando seu apreço pela atmosfera gótica e um romantismo mórbido, imortalizados nas artes. A sofisticação cultural que eles demonstram também funcionam como retrato de uma postura aristocrática que parecem já ter gozado. 

Mas se essas referências, inicialmente, revelariam certo ar de boçalidade erudita, no fundo, dizem muito sobre aqueles personagens agora deambulantes, rememorando um tempo de sofisticação e prazeres idos. O rock melódico da bela trilha sonora é só mais um elemento a reforçar um romantismo de tempos passados. Resta aos vampiros de Jarmusch vagarem pelo mundo, amparando-se um no outro.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Rigor do horror

O Iluminado (The Shining, EUA/Reino Unido, 1980)
Dir: Stanley Kubrick


É incrível o poder de uma sessão de cinema. Mesmo já tendo visto O Iluminado algumas vezes antes, só agora, durante a exibição no Cineclube Glauber Rocha, projeção potente para filme grandioso, é possível entender, de fato, que esse se trata de um filme de terror. Não o mais básico porque Kubrick nunca foi muito clássico, mas há algo de pavoroso numa história que se abre a muitas visões possíveis.

O filme surge com uma força imensa desde a cena inicial com aquela música onipresente e câmera aérea que acompanha um carro na estrada. Antevê, de cara, um destino tenebroso para seus personagens. E logo apresenta um hotel que, aos poucos, vai formatando-se como personagem macabro, com seus corredores extensos, salões imensos, silêncio sepulcral, mistérios à espreita.

É o majestoso Hotel Overlook onde se passa quase toda a ação do filme, com a família de Jack Torrance (Jack Nicholson) tendo aceitado passar o inverno no lugar quando não há hóspedes e o hotel precisa de vigilância. Seria o lugar ideal para que Jack se dedique ao seu propósito de escrever um romance, aproveitando-se de toda uma quietude ao redor.

Há de se ver O Iluminado tanto pela perspectiva da fantasia macabra quanto da perturbação psicológica. Jack, em processo de piração paulatina, toma-se de ódio e descontrole quando se vê frustrado em seu trabalho solitário. Curioso notar que desde o início, durante a visita ao gerente do hotel para fechar o emprego, ele já parece carregar um sorrisinho cínico no rosto, algo de sarcástico, ou antes é só a cara canastrona de Nicholson. Mas é nesse personagem que reside a carga de loucura insana que o faz perseguir a própria família, entre visões e encontros enigmáticos com gente de outros tempos pelos corredores.
Mas há também o filho Danny (Danny Lloyd), garotinho com potencial de acesso a um mundo sobrenatural, visitado várias vezes por imagens e espectros de gente morta, capaz ainda de prever tragédias futuras. Esse tom fantasioso só acrescenta mais mistério a uma trama longe de mostrar clareza (a cena final, por exemplo, faz entender que desde muito tempo aquele lugar tem algo de macabro, insondável). É a chegada desses personagens, com propensão à loucura ou à “clarividência”, que desperta forças não humanas naquele ambiente. 


Por fim, Wendy (Shelley Duvall), mãe e esposa que se dedica às tarefas de cuidar do hotel, é quem mais sofre com os horrores que ali se desdobram. Não chega a ser uma grande atuação, mas Duvall, incontestavelmente, confere uma fragilidade quase patética àquela mulher confrontada com o desequilíbrio mortal do marido.

Kubrick trabalha no seu habitual rigor formal, perceptível na rigidez de construção dos planos, no texto bem formatado, no tom crescente de mistério e medo. Mas aqui ele apresenta um novo tipo de abordagem, pois subverte os elementos do terror clássico. Primeiro porque nos apresenta tudo às claras, literalmente. Não há vultos atrás de portas, sombras fugidias ou fantasmas sussurrantes. Todas as aparições ou o que quer que sejam confrontam os personagens de frente, subitamente, por vezes demorando a revelar sua natureza perturbadora – toda a conversa de Jack com o garçom na festa é exemplar nesse sentido.

Depois porque o cineasta vai mais fundo ao explorar o efeito do pavor em coisas não características. Cenas como a que Wendy descobre o que Jack tem escrito todo esse tempo de solidão é assustadora pela tomada de consciência que ela tem do estado mental do marido. E mesmo quando Danny encontra as gêmeas, de repente, num virar de corredor, a cena tem mais força pela composição de imagem e som do que pela busca de um mero susto. 

Nem mesmo a música, comumente utilizada para reforçar um espanto aqui e ali em filmes do gênero, ganha agora contornos fáceis porque ela pesa sobre os acontecimentos que vão crescendo em estranheza e delírio. O Iluminado perfaz-se, portanto, como obra de classe inigualável, gradualmente revelando horrores ou implementando novos mistérios. É daí que tira sua força como filme assombroso, em muitos sentidos.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Menos seriedade

As Tartarugas Ninja (Teenage Mutant Ninja Turtles, EUA, 2014)
Dir: Jonathan Liebesman


Sempre houve nas histórias das Tartarugas Ninja um tom cômico muito aguçado, quase abobalhado mesmo na forma como conduzia sua história absurda – tartarugas mutantes que cresceram no bueiro, sob vigilância e ensinamentos de uma ratazana mais velha e sábia, lutando contra o crime e a opressão numa grande metrópole.

Há no próprio título original do filme, reforçado em mais de uma das falas dos personagens, a referência ao fato dos protagonistas serem adolescentes, aderindo a esse mundo teen de agradabilidade e diversão (uma maneira também de mirar nesse público atual mais jovem que fareja esse tipo de produto nos cinemas).

Daí que o fator adrenalina do filme, ainda que bem trabalhado nas cenas de maior ação, e a rigidez de uma trama com planos mirabolantes, apostando na insistência em soar gravemente importante, parecem o ponto fraco do projeto. Mesmo a formatação do antagonista clássico, o Destruidor, ganha peso, tanto na caracterização física como na malvadeza. O maior entrave do filme, portanto, é se levar a sério demais.

O filme também tenta se sustentar com um roteiro fraco em diálogos e se apega a coincidências frágeis para ligar os personagens. Quem mais sofre com isso é a jornalista April (Megan Fox) quando se revela sua participação na própria salvação dos experimentos que deram origem àqueles seres geneticamente modificados.

Leonardo, Raphael, Donatello e Michelangelo funcionam muito bem como grupo de jovens que tomam para si uma grande responsabilidade, ainda que mantenham o tempo todo o espírito de chacota. A cena do rap no elevador é bem característica nesse aspecto, e engraçada também. Já os personagens humanos são mais rasos, encontrando em April a personagem que descobre a existência surreal daquelas criaturas e todo um universo mirabolante em torno deles (por mais que as explicações estejam calcadas nas ciências.

Almejando um espacinho ali entre as franquias de super-heróis que têm dado certo no cinema recente – e talvez já estejam saturando o universo dos blockbusters –, As Tartarugas Ninja poderiam ser um produto diferenciado, pegando carona no efeito Guardiões da Galáxia – que entende muito bem o seu lugar nessa seara, diferenciando-se pelo seu teor de autoparodização. Mas pelo menos não é a bomba pela qual tantos esperavam.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Aspereza do mundo

The Rover – A Caçada (The Rover, Austrália/EUA, 2014)
Dir: David Michôd


Com Reino Animal, David Michôd, estreando no longa de ficção, filmou uma família sem escrúpulos, ligada à máfia, recheada de gente vil, ainda que à primeira vista não parecesse assim. Agora, o diretor amplia o sentimento de sordidez porque, em The Rover – A Caçada, toda uma sociedade já deixou para trás a dignidade, o senso de moral e nada é mais mascarado. Não há mocinhos ou bandidos e alguns poucos tentam sobreviver com seus princípios, escondidos dos demais.

Os personagens que povoam esse mundo distópico – num registro bem realista e endurecido que ganha corpo na paisagem desértica da Austrália – vivem como numa terra sem lei, depois que um colapso econômico abalou o mundo. É aí que encontramos Eric (Guy Pearce), o rosto marcado pelo tempo e pela brutalidade, solitário e destemido. Quando tem seu carro roubado por um grupo de pequenos ladrões durante uma fuga complicada, ele parte ao encontro cego dessa gangue a fim de reaver seu bem.

Nesse cenário westerniano, no entremeio entre o filme policial com toques de história apocalíptica, o que Michôd faz de melhor é construir uma atmosfera infame, suja, onde a violência é palavra de ordem. Trilha sonora pontual e evocativa ajuda muito nessa construção de algo fora do lugar. Mas apesar de um filme de perseguição, há algo de anticlimático na forma vagarosa como o tempo passa, no fluxo lento de ritmo, reflexo próprio do paradeiro que se tornou o mundo depois da crise.

Não deixa de ser um registro um tanto incomum para esse tipo de história, e ainda que se sustente bem como atmosfera, o filme se arrasta um tanto e perde força quando tenta dimensionar os personagens. O discurso de Eric na cadeia, por exemplo, é expositivo, maneira de revelar a brutalidade de um homem que, pelos seus atos agressivos e atitude dura, já se revela por si só uma pessoa que perdeu a fé na humanidade – perdendo a própria humanidade (e há um subtexto muito interessante revelado na exata cena final que torna essa atitude diante do mundo mais triste – e trágica – ainda).

E mesmo o encontro do protagonista com Rey (Robert Pattinson) surge como uma facilidade que o roteiro nem sempre dá conta de sustentar. Irmão de um dos integrantes do grupo de foragidos, abandonado em meio à fuga alucinada, Rey passa a ser a isca de Eric para encontrar os demais. Revela-se um personagem infantilizado, o caçula renegado pela “família” de criminosos, único amparo num universo hostil. 

Aliás, os dois atores carregam seus personagens com muita vibração, Pattinson surpreendendo na forma como nos faz crer na vulnerabilidade – física e psicológica – daquele garoto no meio de homens duros. Pearce, ainda que permaneça no mesmo tom, estabelece de cara a força de seu personagem. No fim das contas, The Rover está, ele mesmo, sempre no mesmo tom, apostando na aspereza das relações humanas e nessa apatia sangrenta, inescrupulosa, que tomou conta do mundo.

domingo, 3 de agosto de 2014

6º Paulínia Film Festival: Ranking Geral


O Paulínia Film Festival renasceu este ano com uma edição caprichada. O pernambucano A História da Eternidade saiu premiadíssimo. Não era meu favorito (alô Casa Grande!), mas não deixa de ser uma ótima escolha do júri. Aliás, júri afiado e com personalidade. Conheça todos os vencedores aqui.

Seleção fraca de curtas-metragens. Ganhou o melhor: O Clube. Pena que Jessy não tenha levado nada, era tão bom quanto (e original da sua forma).

E que beleza participar do retorno dessa festival. Projeção sensacional, seleção diversificada de longas nacionais, lugar incrível que sabe da importância em investir em cinema (em vários âmbitos), bonito ver o Polo Cinematográfico logo ali ao lado, pronto pra suprir demanda de produção.

Abaixo, o ranking de filmes vistos, em ordem de preferência.


Longas-metragens

Bem-Vindo a Nova York (Abel Ferrara, EUA/França) ****
Casa Grande (Fellipe Barbosa, Brasil) ****
Sinfonia da Necrópole (Juliana Rojas, Brasil) ****
A Imigrante (James Gray, EUA) ***½
A História da Eternidade (Camilo Cavalcante, Brasil) ***½ 
Aprendi a Jogar com Você (Murilo Salles, Brasil) ***½
Castanha (David Pretto, Brasil) ***
O Samba (Georges Gachot, Suíça/Alemanha) ***
Sangue Azul (Lírio Ferreira, Brasil) ***
Infância (Domingos Oliveira, Brasil) ***
Boa Sorte (Carolina Jabor, Brasil) **½ 
As Férias do Pequeno Nicolau (Laurent Tirard, França) **½
A Pedra da Paciência (Atiq Rahimi, Afeganistão/França/Alemanha) **
Não Pare na Pista: A Melhor História de Paulo Coelho (Daniel Augusto, Brasil/ Espanha) *
Neblina (Fernanda Machado e Daniel Pátaro, Brasil) *


Curtas-metragens

O Clube (Allan Ribeiro) ****
Jessy (Paula Lice, Rodrigo Luna e Ronei Jorge) ****
O Bom Comportamento (Eva Randolph) ***
Edifício Tatuapé Mahal (Carolina Markowicz e Fernanda Salloum) **½ 
O Menino Que Sabia Voar (Douglas Alves Ferreira) **
De Bom Tamanho (Alex Vidigal) *½ 
190 (Germano Pereira) *
Recordação (Marcelo Galvão) * 

6º Paulínia Film Festival: Parte VI



Bem-Vindo a Nova York (Welcome to New York, EUA/França, 2014)
Dir: Abel Ferrara 



Poderia ser somente a alegoria de um escândalo sexual ultramidiatizado, mas Abel Ferrara preferiu fazer um filme de combate, para além do denuncismo. O caso do então diretor-geral do Fundo Monetário Internacional, o francês Dominique Strauss-Kahn, que assediou sexualmente a camareira de um hotel em Nova York, é reapresentado aqui, sob o olhar ferrenho de Ferrara, uma espécie de filho maldito do cinema independente norte-americano.

Os nomes dos personagens estão mudados, mas os indícios são explícitos. O filme não mascara o soco que dá na pessoa de Strauss-Kahn, naquilo que ele representa de grotesco, machista e prepotente. Ao mesmo tempo, ele personifica também o universo do dinheiro que movimenta o mundo, apontando para as sujidades que há no mundo monetário.

Gerard Depardieu é quem dá corpo a esse homem inescrupuloso, bicho ogro de apetite sexual voraz e incontrolável. É um desenho que faz questão de explicitar um instinto animalesco que ele, do alto de seu posto, não quer ter o trabalho de esconder. É uma entrega sem pudores do grande ator francês, desnudado, literalmente, para desmascarar uma personalidade oblíqua, de princípios tortos (ironicamente, estava prestes a lançar sua candidatura à presidência da França).

Jacqueline Bisset surge inicialmente serena como a esposa do homem agora acuado pela justiça, mas faz crescer sua ira sobre ele, sobre sua bestialidade, quando a rotina dos dois vira de ponta cabeça. As discussões entre ambos são cruas e cruéis. Ferrara parece operar na base do improviso, o que seus atores entendem muito bem, perfazendo quase um trabalho de estudo sobre embates falíveis, do humano, mais sobre a condição vulgar do personagem do que sobre o assédio em si.

É um filme muito claro nos seus propósitos, tudo está posto com muita precisão, desde as orgias e momentos de prazer sexual dos quais o personagem não abdica por nada, até sua acusação, julgamento e autoexílio, derrotado, ainda que mantenha postura altiva.

Bem-Vindo a Nova York é sincero no seu conceito de petardo contra uma figura odiosa. Mas é capaz, ainda assim, de olhá-lo com cuidado, especialmente quando subverte as expectativas na cena final (ou quando deixa o personagem se divertir assistindo a Domicílio Conjugal, de François Truffaut, na TV). Strauss-Kahn ainda olha para a câmera (nos olha), desafiando julgamento. E é isso que fazemos.


Agora, algumas poucas palavras sobre os curtas vistos na competição do festival:

Jessy (Idem, Brasil, 2013)
Dir: Paula Lice, Rodrigo Luna e Ronei Jorge 


Uma mulher em processo de transformismo por uma noite. Uma ideia atípica que, por si só, já vale o filme. Mas tem mais: Jessy está mais preocupado com o processo de aprendizagem e preparação do que com a apresentação em si. Os bastidores de uma casa noturna ganham outros contornos quando Paula Lice, uma das diretoras aqui, sujeita-se aos desmandos e direcionamentos dos profissionais da noite em prol do sonho em se ver transformista.

É nessa doação consentida que o filme e a personagem apreendem os trejeitos, posturas e atitudes que aquela posição exige, marcas tão características de um universo particular. É engraçado também. Há dor no processo de entrega (Lice é bombardeada com instruções exigentes, montar fisicamente a personagem é custoso), mas ao mesmo tempo existe uma sensação de agradabilidade, uma noite de aventura.

Daí que Jessy surge quase como um filme sem conflitos. Todos os personagens estão confortáveis ali, participando do jogo de encenar e aprender a encenar, descobrir um cotidiano. A questão de gênero que o filme coloca é outra: qualquer um pode aprender a ser trans? E mais: o que significa se tornar uma delas? Por isso trata-se de um filme-processo que se abre para essas questões, sem pesar a mão.


O Clube (Idem, Brasil, 2014)
Dir: Allan Ribeiro 


Ainda no universo dos transformistas, Allan Ribeiro adentra o mesmo espaço já explorado, mas também com olhar original. O Clube Ok, no Rio de Janeiro, é o lugar mais antigo no mundo voltado para os shows de transformismo, comemora 53 anos de atividade. Esse poderia, portanto, ser um mero filme homenagem, apresentando um ambiente e seus tipos, mas Ribeiro vai além.

Em meio às preparações da festa celebrativa, que nos apresenta aquele lugar, o filme faz surgir um pequeno conflito entre integrantes, uma briga na iminência de explodir pela causa banal da ordem das apresentações, ainda que se note um tom farsesco nisso tudo. Ou seja, a ficção invade a observação do “real”, ou vice-versa. O filme aproxima-se de Castanha, não só pela temática, mas pelo hibridismo explorado na alternância dos dois registros.

Espertamente, o filme planta uma expectativa no início que, subvertida no final, ganha um força dramática inesperada e converge, justamente, para a celebração. É uma forma de festejar um grupo, um encontro, um lugar de reunião (antevisto lá na cena inicial durante a missa), ainda que não estejam livres dos desentendimentos. O Clube é um lugar crível, palpável, vivo, feliz.


O Bom Comportamento (Idem, Brasil, 2013)
Dir: Eva Randolph 


No mesmo sentido de reverter expectativas, O Bom Comportamento parece apontar para a história de uma garota em meio a um grupo de outros adolescentes numa espécie de acampamento de férias. É o universo dos jovens com seus hormônios ativados, ainda que exista um tom quase fabular aqui.

O Bom Comportamento consegue driblar questões clichês na abordagem do mundo jovem, desde a questão da garota solitária vista sob olhar desconfiado das demais, passando também pelo interesse sexual/amoroso por um garoto. São pontos que estão no filme, mas nunca ocupam a centralidade da trama. Mas cabe perguntar: o quê, de fato, ganha essa importância principal?

Talvez o curta se exceda ao não optar por um caminho óbvio, claro demais. É o tipo de filme que interpela o espectador a todo instante. No entanto, perde-se em suas próprias pretensões, apontando para muitos caminhos (Eva já foi muito mais feliz, usando esse mesmo tipo de abordagem, com o curta Dez Elefantes – sobretudo porque há a sensação de uma atmosfera mais coesa ali, ainda que flertando com o lúdico). Ainda assim, cenas como a final, na cachoeira, forte enquanto imagem simbólica e som potente, revelam uma forte marca de encenação.


Edifício Tatuapé Mahal (Idem, Brasil, 2014)
Dir: Carolina Markowicz e Fernanda Salloum 


Esse é o tipo de filme cuja proposta escorrega à medida que a história transcorre, apesar das boas intenções. Há um trabalho de animação não só bem executado, mas também conceitual: o filme se passa no universo paralelo dos bonecos de maquete onde é possível e espera-se que a própria figura dos bonecos tome formas variadas. Isso para atender a uma curiosa “demanda” de mão-de-obra naquele ambiente, que não á toa é a cidade de São Paulo e seu crescimento imobiliário frenético.

O roteiro, por si só absurdo, faz embarcar nessa ideia, apostando num texto divertido, bem sacado e bem escrito. Na história, Javier Juarez Garcia (interpretado vocalmente pelo ator uruguaio Daniel Hendler) é essa figura-manequim que se desencanta da vida depois de pegar sua mulher na cama com outro boneco, mais próspero. Desencantado da vida, parte numa jornada de transfiguração. É aí que o filme acaba abandonando o tom sutilmente sarcástico e ácido do início para investir em momentos mais bobos. 


PS: Causa certa admiração que uma seleção com curtas tão interessantes como esses comentados acima tenham sido acompanhados por outros constrangedores. 190, de Germano Pereira, tem o ranço do mal filme universitário, enchendo o peito para estampar referências “cinéfilas”, com história mal contada e abordagem simplista. Recordação, de Marcelo Galvão (diretor do péssimo longa-metragem Colegas), é mal escrito, mal atuado, forçosamente piegas, com merchandising horrível na cena final. A preocupação dos personagens de De Bom Tamanho, dirigido por Alex Vidigal, é a extensão do pênis, tira pouca graça dessa situação. E O Menino que Sabia Voar, de Douglas Alves Ferreira, não passa de uma proposta lúdica, mas sem inventividade, infantil mesmo. Filmes fracos, pouco estimulantes.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

6º Paulínia Film Festival: Parte V



A História da Eternidade (Idem, Brasil, 2014)
Dir: Camilo Cavalcante



A poesia bruta do sertão explorada mais uma vez. Camilo Cavalcante passeia pelos tipos que já foram largamente utilizados nesse tipo de ambiência: garota de família patriarcal tem sonho pulsante em conhecer o mar; o tio, um artista incompreendido, o pai, um bruto; em outros núcleos, há ainda o neto que retorna à terra natal, para alegria da avó, e o sanfoneiro cego que clama o amor de uma mulher em luto pela morte do filho pequeno.

São histórias que se entrecruzam na paisagem árida do interior nordestino, com suas regras e morais instituídas. Chega a ser um risco manipular velhos temas e tipos batidos desse ambiente já tão exposto nas artes em geral. O que sustenta o filme é a direção segura de Cavalcante, sua estreia no longa-metragem depois de um extenso trabalho com curtas.

A paisagem interiorana ganha um tratamento que segue um fluxo de tempo muito próprio, calmo, ainda que as questões que movam os personagens vão crescendo em intensidade. Nuances de viés mais proibidos (como a atração da sobrinha pelo tio) ou mesmo pondo em xeque a moral de seus personagens (o neto que volta fugindo de encrenca na cidade grande) surgem para complexificar as relações daquelas pessoas entre si, também no contexto de vida em que se encontram.

Nesses embates, o longa beneficia-se de um time de atores de primeira. Marcélia Cartaxo e Zezita Matos personificam muito bem essas mulheres fortes do interior, uma que nega o amor em prol do luto, outra com o coração balançado pela descoberta de um neto não tão pródigo assim. Mas o destaque mesmo é para um Irandhir Santos radiante, frágil pela epilepsia que lhe acomete, mas cheio de vigor por conta de sua condição de artista maldito e contestador num ambiente desfavorável.

Duas cenas suas se destacam: quando performatiza, na rua, uma canção dos Secos e Molhados; e aquela em que ele “apresenta” à sobrinha o mar. Em ambas as sequências a câmera em travelling circular parece hipnotizado pela disposição e olhar poético daquele homem.

É o respiro que o filme permite em contraponto à dureza de uma vida severina; há arte ali. É esse tipo de olhar aguçado para a poética das paixões em meio à coisa bruta que Calvalcante explora tão bem. Nota-se nele um cineasta consciente do seu poder de encenação, ainda que seus temas não sejam assim dos mais originais.


Infância (Idem, Brasil, 2014) 
Dir: Domingos Oliveira


Curioso que um filme com esse título, com foco no olhar infantil, tem como um de seus pontos mais fracos justamente o personagem mirim. Rodriguinho (Raul Guaraná) é a criança que observa o mundo e passa os dias na enorme casa da avó no bairro carioca de Botafogo dos anos 1950. É o olhar autobiográfico do velho Domingos (de) Oliveira que rememora e ficcionaliza uma ambientação. Porém, é certamente mais interessante quando observa as agruras por que passam os adultos.

As relações de Rodriguinho com o primo escroto, pirralho mal educado e de boca porca, parece ser a porta para o mundo sujo e pouco idealizado que ele vai conhecer. Em contraponto, a figura da professorinha recatada (Maria Flor) faz-se presente no desabrochar amoroso do pequeno cujo maior conflito na história é o desaparecimento de sua cachorrinha. Tudo muito insosso.

No polo adulto, há o pai (Paulo Betti), que se embaralha com as finanças da família; a mãe submissa (Priscilla Rozembaum), moralmente ao marido, amorosamente à matriarca; e o tio (Ricardo Kosovski), bêbado, dependente do dinheiro da mãe. E há Fernanda Montenegro, iluminada no filme. Não somente porque ela é Fernanda Montenegro, mas porque sua personagem é marcante, tem destaque na história, recebe ótimo texto e as melhores tiradas do filme.

D. Mocinha é a matriarca da família, controla não só o dinheiro, como também as decisões de todos na casa, filhos, genros e agregados. Lacerdista fanática, obriga a todos a ouvir o programa do anti-getulista no rádio. São os desentendimentos entre esses tipos que dão cor mais divertida a um filme muito bem produzido, com ótimos trabalhos de figurino e direção de arte. 

O habitual texto ligeiro assinado por Oliveira permanece com a verve cômica, por vezes escrachada, que lhe é tão peculiar. Trata-se, portanto, de um retrato pouco romântico de personagens tomados de defeitos e vícios, ainda que exista um ar nostálgico e carinhoso no todo – a cena da tradicional foto de família diz muito sobre isso. Importante que o próprio Oliveira surja no filme como essa figura que encontra seu mundo do passado. Um olhar de gente crescida que faz bem.