sábado, 25 de abril de 2009

Mito revisitado

Che – O Argentino (Che: Part One, EUA/Espanha/França, 2008)
Dir: Steven Soderbergh


O mais interessante em Steven Soderbergh é sua capacidade de passear entre o cinema comercial e o alternativo e a liberdade de fazer o filme que quiser. Da série cômica iniciada por Onze Homens e Um Segredo, ao contundente Traffic que aborda os meandros do tráfico de drogas, ou mesmo o alternativo Sexo, Mentiras e Videotape (filme de estreia com o qual ganhou a Palma de Ouro em Cannes!), sua filmografia é bem inusitada. A partir daí não deve ser surpresa que seu novo projeto narre a trajetória do líder comunista Ernesto “Che” Guevara, filmada com tanto respeito (em espanhol) e sem estardalhaços que se configura como um dos melhores filmes do ano desde já.

Essa é na verdade a primeira parte de um projeto composto por mais um filme. O Argentino se concentra nos esforços dos primeiros anos de luta armada e tentativa de destituir o governo despótico de Fugêncio Batista em Cuba, depois de Che ter conhecido Fidel Castro no México. Inicialmente responsável pelos cuidados médicos da tropa, Che vai aos poucos se configurando como líder da Revolução Cubana.

Um dos maiores alívios do filme, e o que acaba se tornando um grande trunfo do projeto, é o tom sóbrio que é dado à figura mítica do Che, sem exaltá-lo. Até porque não é preciso pois suas atitudes são tão ricas de austeridade e teor de moral e justiça que exagerar essas questões seria um grave equívoco.

Isso se reflete especificamente na atuação de um Benicio Del Toro (melhor ator em Cannes) totalmente consciente da grandeza de seu personagem, mas nunca o transformando em um ser destemido e valoroso ao extremo. O filme ainda não deixa de explorar a debilidade física do personagem por conta dos graves problemas de asma que ele enfrentou por toda sua vida. Com sobriedade narrativa, o filme se preocupa em contar sua história da forma mais sensata possível. Daí surge uma direção milimétrica de Soderbergh que filma com classicismo e sem querer chamar tanta atenção para si.

A narrativa é baseada nas memórias deixadas pelo próprio Ernesto e possui o tom de confissão aliado às reflexões do personagem. Numa cena exemplar durante um ataque dos revolucionários às forças de Batista, o filme subtrai o áudio para que, em off, Che cite Guerra e Paz de Tostoi quando o autor russo valoriza uma tropa não pela quantidade de homens ou de armas, mas por acreditar naquilo por que se está lutando, algo comprovado pelas imagens dos combatentes cubanos. Não é um filme para explorar a batalha, mas para refletir sobre os caminhos que moviam aqueles revolucionários.

Além de contar com sobriedade narrativa, a produção técnica do filme é bem caprichada, a começar pela excelente fotografia digital que tem a mesma resolução de uma película (graças à utilização da câmera de ultima geração Red One). O colorido intenso que acompanha Che durante os sucessivos confrontos na selva cubana se contrapõe ao preto-e-branco granulado presente durante sua visita ao congresso dos EUA, poucos anos depois de tomado o poder em Cuba, e uma entrevista concedida a uma jornalista norte-americana. A montagem intercala esses momentos de forma bem balanceada.

O Argentino parece ser uma prévia para um segundo filme mais denso e duro. Como foram filmados juntos, espera-se que mantenha a mesma carga de sobriedade que esse aqui. Soderbergh soube como poucos transformar em um filme exemplar a conhecida trajetória de uma figura mítica, sem precisar elevá-lo a essa categoria, mas mantendo o devido respeito que ele merece.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Seleção de Cannes 2009

Foi divulgada hoje a lista de filmes que compõem a seleção oficial do maior festival de cinema do mundo, que tem lugar de 13 a 24 de maio. Os filmes da competição são:



Los Abrazos Rotos, Pedro Almodóvar (Espanha)
Fish Tank, Andrea Arnold (Reino Unido)
Un Prophète, Jacques Audiard (França)
Vincere, Marco Bellocchio (Itália)
Bright Star, Jane Campion (Reino Unido)
Map of The Sounds of Tokyo, Isabel Coixet (Espanha)
A L’origine, Xavier Giannoli (França)
Das Weisse Band (The White Ribbon), Michael Haneke (Áustria)
Taking Woodstock, Ang Lee (EUA)
Looking For Eric, Ken Loach (Reino Unido)
Chun Feng Chen Zui De Ye Wan (Spring Fever), Lou Ye (China)
Kinatay, Brillante Mendoza (Filipinas)
Enter The Void, Gaspar Noé (França)
Bak-Jwi (Thirst), Park Chan-wook (Coreia do Sul)
Les Herbes Folles, Alain Resnais (França)
The Time That Remains, Elia Suleiman (Palestina)
Inglórios Bastardos, Quentin Tarantino (EUA)
Vengeance, Johnnie To (França/Hong Kong)
Visage (Face), Tsai Ming-Liang (França/Taiwan)
Anticristo, Lars Von Trier (Dinamarca)


Interessante seleção com algumas figurinhas carimbadas como Lars Von Trier e seu filme de terror, Quentin Tarantino e seu pop de guerra, Pedro Almodóvar e a promessa de mais um belo melodrama, a inquietude de um Michael Haneke, o policial coreografado de Johnnie To, a comédia zen de Ang Lee, o chocante e incômodo (no bom sentido) Gaspar Noé. Das antigas vem o incansável e renovador Alain Resnais e o politizado Marco Bellocchio. Mas nada me deixa mais intrigado e curioso do que o filme de vampiros de Park Chan-wook.

Para nós brasileiros vale comemorar a inclusão de À Deriva, novo de Heitor Dhalia selecionado para a mostra paralela “Um Certo Olhar”. Up – Altas Aventuras, a mais nova animação da Pixar dirigida por Peter Docter, é o filme de abertura enquanto que Coco Chanel & Igor Stravinsky, de Jan Kounen, encerra o evento, ambos fora de competição. Os novos trabalhos de Alejandro Amenábar, Sam Raimi, Terry Gilliam e Michel Gondry passam fora de competição. A excepcional atriz francesa Isabelle Huppert (dois prêmios de interpretação conquistados no festival) é a presidente do júri. Agora é só esperar um ano para que o vencedor da Palma de Ouro chegue aqui.

Meme Literário

Recebi do Diego Rodrigues, do blog Cinemania, um Meme Literário interessante que já tinha visto aí rolando pela net. As regras são:

1) Agarrar o livro mais próximo;
2) Abrir na página 161;
3) Procurar a quinta frase completa;
4) Colocar a frase no blog;
5) Repassar para cinco blogs.

Já quase no final da leitura de A Casa dos Espíritos, da Isabel Allende, era o livro mais perto. Na página 161, lê-se:

“Padre Antônio cumprimentou uma velha que, junto da bica, esperava que o jorro miserável enchesse seu balde”.

Aos blogueiros que se sentirem à vontade os convido para postar o Meme.

sábado, 18 de abril de 2009

Curtinhas

Simplesmente Feliz (Happy-Go-Lucky, Inglaterra, 2008)
Dir: Mike Leigh


Vindo de Mike Leigh, cineasta inglês com gosto por dramas (como o excelente O Segredo de Vera Drake), Simplesmente Feliz já seria um corpo estranho em sua filmografia por ter a comédia como gênero. Mas é mais estranho ainda por conta de sua protagonista, a supra-alegre professora de escola primária Poppy (Sally Hawkins) que parece carregar a palavra “felicidade” na testa. Nada consegue abalar seu jeito feliz de viver. Fácil assim. Durante suas aulas de direção, ela vai conhecer o impaciente instrutor Scott (Eddie Marsan), seu extremo oposto. Surge daí o confronto máximo do filme: a animação irresponsável de Poppy versus o nervosismo moralista de Scott. Com essa narrativa, Leigh nos fala da felicidade como forma de encarar o mundo, de lidar com os problemas, como filosofia de vida. Chega a ser contagiante. O texto, ao mesmo tempo que nos apresenta essa ideia, também é bastante leve e possui tiradas bem engraçadas. E não só Sally Hawkins merece destaque por sua incrível atuação, como também Eddie Marsan pela construção de um personagem prestes a explodir (o que acontece numa seqüência excelente perto do fim). Vale lembrar que música, direção de arte e figurinos também ajudam a compor o mundo animado e aparentemente inabalável de Poppy. Simples como a felicidade.


Operação Valquíria (Valkyrie, EUA/Alemanha, 2008)
Dir: Brian Singer


O início de Operação Valquíria me incomoda muito ao apresentar um personagem totalmente caricatural, que se utiliza da figura de um heroi pomposo, justo e destemido, ganhando no rosto de Tom Cruise uma expressão de dureza inabalável. Ele interpreta o coronel Claus von Stauffenberg que se alia a um grupo de conspiradores do regime nazista, descontentes com a política autoritária e desumana do partido governante. No entanto, esse incômodo inicial foi dando lugar ao desenvolvimento da história que se detém em narrar os planos arquitetados para assassinar o füher, de forma correta e sem complexidades na trama. Tudo parece estar em seu lugar, menos a cara de bravura que Cruise carrega durante todo o filme, sem nada mais a oferecer. O elenco de apoio ajuda bastante, como a vitalidade de Tom Wilkinson, a expressividade de Bill Nighy e o empenho de Kenneth Branagh. Por mais que a sequência do atentado seja repleta de suspense, e os acontecimentos posteriores também, uma cena marcante no filme é aquela que mostra Stauffenberg, que nunca durante a narrativa fez a saudação pública a Hitler, é obrigado a executá-la. Mas como ele não possui a mão direita, perdida durante uma missão no norte da África, a saudação é imperfeita, incompleta, como uma bela maneira de demonstrar toda sua desaprovação pelos atos de seu governo.


Fôlego (Soom, Coreia da Sul, 2007)
Dir: Kim Ki-duk


O último filme de Kim Ki-duk possui muito do que já se viu em seus filmes anteriores: personagens perdidos e em busca de sentido para suas vidas, narrativas silenciosas, dramas interiorizados, perfeição estética e poesia visual. Aqui, conhecemos Yeon (Park Ji-a), uma mulher que vive um casamento amargurado e, numa atitude sem explicações, passa a visitar Jin (Chen Chang), um presidiário suicida preste a ser executado. O que em muitos dos filmes anteriores do diretor soa bastante poético, como em Casa Vazia e O Arco, aqui adquire momentos de pura estranheza, como quando Yeon passa a visitar Jin na cadeia, e, decorando a cela de visitas com temas referentes às estações do ano, canta esganiçadamente canções que simbolizem cada estação. O filme caminha para um final que prevê desde o início a desagregação familiar, mas com o qual o diretor sabe fugir do clichê e surpreender da forma mais madura possível, sendo bastante justo com seus personagens.

terça-feira, 14 de abril de 2009

A França numa sala de aula

Entre os Muros da Escola (Entre les Murs, França, 2008)
Dir: Laurent Cantet

Entre os Muros da Escola, Palma de Ouro do último Festival de Cannes, funciona não só como demonstração das deficiências e dificuldades do sistema educacional como também ao apresentar um microcosmo da França atual e seus conflito étnicos e sociais. Mas o melhor é que ele não se apoia no clichê do professor disposto a modificar a vida de seus alunos. O filme tem os dois pés no chão e a consciência de não ter que encontrar uma solução para o problema.

Numa escola de Ensino Fundamental localizada num bairro periférico de Paris, acompanhamos o retorno de François, professor de Francês, para o próximo ano letivo. O ator interpreta ele mesmo pois o filme é adaptado do livro escrito pelo próprio professor baseado em suas experiências na sala de aula. Logo de início, chama a atenção na turma o caráter multiétnico dos alunos da 8º série com quem ele terá maiores problemas.

Dos asiáticos aos de origem árabe e pele negra, a sala de aula acaba se tornando um reflexo da atual sociedade francesa e seu conflito com povos imigrantes. Os alunos pertencem a uma classe social menos privilegiada, criando assim um conflito contra o professor branco que tenta impor seus conceitos e autoridade aos alunos.

Numa cena emblemática, uma estudante negra chamada Khoumba questiona o professor do porquê dele só utilizar nomes “esquisitos” de pessoas para exemplificar as frases (no caso em questão, “Bill”), e não nomes como “Ahmed” ou “Rachid” (claramente árabes). Nota-se aí a pouca valorização do aluno que possui suas características culturais próprias, mas precisa sempre absorver o conhecimento que é selecionado pelo mais “importante”, herança clara do imperialismo francês.

Além disso, há a intransigência e desrespeito por parte dos alunos que teimam em tratar a escola como um sacrifício a que são submetidos. Por outro lado, os professores não estão isentos de culpa pois parecem inferiorizar seus alunos; não estão preparados e motivados para lidar com a questão (no filme, isso aparece de forma bem sutil). Não há então um culpado, mas uma série de deficiências provenientes de vários pontos distintos que problematizam o real valor da educação.

Por tudo isso, a direção de Laurent Cantet é exemplar em seu interesse por levantar essas discussões tão habilmente. A narrativa do filme é tão orgânica que a câmera na mão parece uma intrusa no registrar do cotidiano da sala de aula. O filme não possui grandes requintes estéticos, apenas documenta toda aquela situação. Um tema aparentemente batido, passa a soar urgente, realista e mesmo pessimista.

O texto riquíssimo e cheio de sutilezas expõe as fragilidades do sistema educacional perante as dificuldades de se lidar com uma turma tão complexa. O elenco, todos de amadores, é um grande achado pois transmite verdade em cada fotograma, com evidente destaque para François Bégaudeau como o professor de Francês.

Ao fim, o filme não quer impor nenhum tipo de lição moral. É apenas um retrato naturalista do tema proposto, deixando para o espectador as prováveis conclusões. Até porque é difícil sair do filme indiferente. As semelhanças com o sistema educacional brasileiro não são, com certeza, mera coincidência.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Gente como a gente

Watchmen – O Filme (Watchmen, EUA/Inglaterra/Canadá, 2009)
Dir: Zack Snyder


Watchmen não é um filme de super-herois comum. De certa forma, é mais um filme político do que necessariamente um trabalho de aventura, graças à excelente HQ escrita por Alan Moore em 1985 da qual o filme é adaptado. Com esse rico material em mãos, Zack Snyder não perde a oportunidade de incluir ação e aventura, respeitando uma lógica de mercado hollywoodiana, mas a essência do texto prevalece e esse é o grande trunfo da obra.

A narrativa gira em torno dos Vigilantes, grupo de mascarados anônimos vestidos de super-herois que saiam às ruas para lutar contra o crime numa metrópole supraviolenta. Porém esses justiceiros foram proibidos de manter suas atividades, mas o misterioso assassinato de um antigo companheiro, o Comediante, desperta a atenção para um possível extermínio dos Vigilantes.

O filme alcança uma década de 80 conturbada não só nos Estados Unidos, que vive um momento de desilusão política e econômica (imagine Richard Nixon reeleito várias vezes), como também mundial pois o país e a União Soviética permanecem em tenso conflito de ameaça nuclear, próprio da Guerra Fria.

Uma das grandes sacadas do filme é mostrar os justiceiros como pessoas normais que se mobilizaram contra o crime em apoio à justiça. Mas o clima é de total desânimo diante dos rumos políticos do momento. Os personagens fazem do passado um arsenal de lembranças positivas de uma esperança próspera, mas que se mostra uma total ilusão no presente. Aqui, a narrativa aproveita para injetar doses de reflexão não só à ordem capitalista enquanto sistema questionável pela crueza a que acaba submetendo a população, como também em reflexões sobre os rumos errôneos da natureza humana. Há espaço até para discussões filosóficas no que diz respeito à existência de Deus e a validade da vida.

O filme tem vários acertos e erros, os últimos mais em decorrência de uma direção disposta a incluir ação e efeitos especiais na trama, sem falar que Snyder é um fetichista da câmera lenta. Não que esses aspectos sejam de todo ruins, mas por vezes irritam. O excesso de músicas da década de 80 me soou um tanto gratuita porque poucas delas contribuem para a narrativa, como The Times They Are A-Changing, do Bob Dylan, tocada nos créditos iniciais mais longos que eu já vi num filme. Longo também é a duração do filme todo, mas que se beneficia de uma narrativa altamente gráfica, bem amarrada e repleta de violência e caos.

No elenco, destaques para Jack Earle Haley como o amargo Rorscharch (e apesar do ator estar quase sempre com o rosto coberto, ele consegue conferir presença ao personagem), um melancólico Billy Crudupp vivendo o Dr. Manhattan (único com poderes especiais) ou mesmo a figura arrogante e brutal do Comediante (Jeffrey Dean Morgan). Uma pena que a bela Malin Akerman não faz muito pela Espectral, nem Patrick Wilson pelo Coruja.

O final corajoso e catastrófico do filme é mais um sinal de como uma história aparentemente fantasiosa consegue alcançar níveis elevados de reflexão e um sentimento de desajuste. Fica no ar a sensação de que algo (ou tudo) está errado e mais ainda, a necessidade latente de uma mudança drástica. Mas o filme parece perguntar: estamos dispostos a pagar por isso? Por qual preço?

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Marcas da violência

Gran Torino (Idem, EUA/Austrália, 2008)
Dir: Clint Eastwood


Espanta-me a quantidade de gente boa que vem considerando Gran Torino uma obra-prima. Não me parece um bom ano para Clint Eastwood, ao contrário do que muita gente pensa. A Troca esbarra no maniqueísmo simplista. Já Gran Torino possui uma interessante mensagem final, mas até lá vem acompanhado de um texto fraco, repleto de personagens caricaturais e fragilidade narrativa.

O filme não precisa de mais de dez minutos para apresentar a um amargo, presunçoso e preconceituoso Walt Kowalski (vivido pelo próprio diretor), ex-combatente da Guerra da Coreia, que acaba de perder a esposa. Sozinho na casa localizada em um bairro que abriga vários imigrantes, Walt passa a se aproximar de dois jovens vizinhos asiáticos, descendentes de uma etnia específica (hmong), depois que um deles tenta roubar seu carro, um Gran Torino 1972.

Vai-se criando então uma relação previsível de amizade entre Walt, sempre com pé atrás, e a família ao lado, a despeito da arrogância do protagonista. Na verdade, Walt reluta em encarar isso como uma amizade, mas vai descobrindo que possui mais afinidade com eles do que com a própria família (composta de filhos bobocas e netos mimados).

Walt pertence ao grupo de pessoas que enfrentam os problemas à base da força bruta. Quando gangues de ruas passarem a importunar os vizinhos, ele vai acabar repelindo os marginais com a espingarda e o olhar mortal. Cria-se então a oportunidade para o filme retratar a violência como estigma da sociedade contemporânea.

A personalidade antiquada do personagem, aliada à idade avançada, o faz repudiar o novo, como as roupas dos netos ou a propagação de imigrantes pelo país ao qual foi fiel e defendeu no campo de batalha. Mas Clint Eastwood vai saber emular um de seus personagens mais marcantes, Dirty Harry (o justiceiro acima da lei), para um propósito de redenção e redefinição de valores de um homem no fim da vida.

Tudo para chegar a uma conclusão: chega de lutar contra a violência usando a mesma arma. A mensagem talvez soe ingênua, mas esse não é o maior problema. O filme vem cercado de personagens caricaturais e rasos como o próprio Walt (rangendo os dentes a fim de mostrar sua fúria), ou mesmo os imigrantes fragilizados e indefesos do bairro diante das gangues aterrorizantes, ou então os filhos bobocas e desajeitados. Os atores não ajudam muito porque poucos trazem veracidade aos personagens. Eastwood até tenta evitar, mas cai no exagero. Além disso, me parece difícil aceitar a aproximação tão repentina de Walt pelos vizinhos, já que demonstra tanto despreza por eles. O texto não possui muito cuidado em parecer sólido.

Seria errôneo afirmar que o grande autor representado por Eastwood envelheceu porque o mais interessante do filme provém justamente de sua visão de mundo tão ampla e experiente. O melhor fica para um final que traz uma mensagem importante, sem soar como liçãozinha de moral. A história faz uma bela reflexão sobre a violência e a necessidade de se despir dela própria para enfrentá-la. Não se pode negar que esse é um filme de Clint Eastwood, esse grande touro sempre na intenção de nos inquietar. Uma pena que o todo não seja tão cuidadoso assim.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Curtinhas

Glória ao Cineasta (Kantoku – Banzai!, Japão, 2007)
Dir: Takeshi Kitano


Glória ao Cineasta é o segundo filme de uma trilogia idealizada pelo cineasta japonês Takeshi Kitano como forma de passar a limpo sua própria filmografia (os outros filmes são Takeshis’ e Aquiles e a Tartaruga). Com foco na comédia, algo sempre presente em suas obras, o próprio Kitano interpreta ele mesmo como um cineasta em crise criativa, sem saber que gênero de filme fará em seguida; está sempre acompanhado de um boneco idêntico a ele. O filme simula filmagens de possíveis obras, indo do terror aos dramas de época à lá Yasujiro Ozu, passando pela ficção científica. O grande problema é que tudo vem acompanhado de uma comédia jocosa grosseira, ora escatológica, ora boboca, fazendo o filme soar primário na busca pelo riso fácil. Uma pena porque mesmo em trabalhos mais sérios como o excelente Zatoichi e o ótimo Hanna Bi – Fogos de Artifício, ele conseguia incluir o cômico em momentos inesperados, alcançando resultados satisfatórios. Aqui, o filme tenta vender o ridículo como graça e chacota, mas não percebe o quanto ele mesmo está sendo ridículo.


Garotas do ABC (Idem, Brasil, 2003)
Dir: Carlos Reichenbach


Esse é meu primeiro contato com o cinema do cultuado Carlos Reichenbach, cineasta brasileiro surgido em fins da década de 60 e mais próximo do cinema Boca de Lixo dos anos seguintes, com um pé na pornochanchada. Mas é um diretor que conseguiu sobreviver a essa época e surge hoje como profissional respeitado, porém ainda underground. O filme aborda o universo feminino de operárias de uma fábrica têxtil no ABC paulista, tendo como personagem guia Aurélia Schwarzenega (Michelle Valle), fã dos astros de filmes ação. As moças, cada qual com suas dificuldades e audácias, perfazem as relações de amizade e desavenças daquele universo. Elas falam palavrão, conversam sobre sexo da forma mais despudorada e ouvem música brega no rádio de pilha. A despeito desse rico material, o filme possui várias restrições: um texto mecânico e burocrático, a irritante tentativa de Carlão em filmar sempre em ângulos distintos e “descolados” (beirando o exercício de estilo) e as péssimas atuações de um elenco sofrível. Nem Selton Mello foge de uma caracterização exagerada de seu personagem, o líder de uma gangue racista meia-boca (espaço para que o filme inclua um discurso simplório sobre o sistema de dominação na sociedade). Uma boa tentativa, mas que, considerando a experiência do cineasta, podia muito bem ser melhor aproveitada.


Falsa Loura (Idem, Brasil, 2007)
Dir: Carlos Reichenbach


Se Garotas do ABC é uma decepção, a maior alegria é ver que Falsa Loura se aproveita do mesmo material e ambiente que o filme anterior, mas é melhor em todos os sentidos. O universo das operárias volta a ser abordado por Reichenbach mais uma vez num filme essencialmente feminino. Silmara (Rosanne Mulholland) é a protagonista da vez da qual tendemos a antipatizar logo de início por conta de seu jeito arrogante, cheio de si e sua atitude um tanto safadinha. Mas numa evolução da personagem, vemos o cuidado e carinho que ela nutre pelo pai e a relação de afetividade com as amigas. É uma mulher que busca a felicidade, a seu modo, naquele ambiente, com sua personalidade forte. A narrativa ainda reverte o lugar comum da garota linda com problemas na família. O envolvimento dela com Bruno (Cauã Reymond), o vocalista de uma banda brega, só demonstra o quanto aquela atmosfera é própria da personagem. Nesse sentido, Reichenbach preenche o filme de verdade e naturalismo. Além disso, o cineasta possui uma direção mais elaborada, filmando tudo com cuidado e apreço, sem nunca soar exibicionista, como acontece em Garotas do ABC. Há, por exemplo, câmera fixa ou longos planos que nunca chamam atenção para si mesmos. O texto também ficou mais natural e as atuações bem melhores, em especial de uma Rosanne Mulholland que confere personalidade a Silmara. No melhor estilo brega-chique, o filme ainda deixa uma sensação amarga ao fim, pois antes de tudo Silmara quer ser feliz, mas em sua condição ela vai precisar lutar muito para alcançar esse sonho.