quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Mostra SP – Ranking geral



Pronto, acabou. Pouco mais de 15 dias de cinema e o saldo são 66 filmes vistos com suas múltiplas emoções, uma leva de textos apressados sobre as obras, encontros com gente boa e a certeza de que eu preciso de costas novas. Abaixo, um ranking com todos os filmes vistos, em ordem de preferência. Já tô querendo mais.


Tabu (Miguel Gomes, Portugal/Brasil/França) ****½
Um Alguém Apaixonado (Abbas Kiarostami, Japão/França) ****
Elena (Petra Costa, Brasil) ****
Postcards from the Zoo (Edwin, Indonésia/Alemanha/Hong Kong) ****
O Som ao Redor (Kleber Mendonça Filho, Brasil) ****
Na Neblina (Sergei Loznitsa, Rússia/Alemanha/Letônia/Holanda/Bielorússia) ****
Os Selvagens (Alejandro Fadel, Argentina) ****
Reality (Mateo Garrone, Itália/França) ****
A Feiticeira da Guerra (Kim Nguyen, Canadá) ****
A Caça (Thomas Vinterberg, Dinamarca) ****


O Gebo e a Sombra (Manoel de Oliveira, Manoel de Oliveira) ***½
A Cara que Mereces (Miguel Gomes, Portugal) ***½
Perder a Razão (Joachim Lafosse, Bélgica/Luxemburgo/França/Suíça) ***½
A Bela que Dorme (Marco Bellocchio, Itália/França) ***½
No (Pablo Larraín, Chile/França/EUA) ***½
Aqui e Ali (Antonio Méndez Esparza, Espanha/EUA/México) ***½
Invasion (Dito Tsintsadze, Alemanha/Áustria) ***½
Linhas de Wellington (Valeria Sarmiento, Portugal/França) ***
Après Mai (Olivier Assayas, França) ***
Super Nada (Rubens Rewald, Brasil) ***


Salsipuedes (Mariano Luque, Argentina) ***
Jards (Eryk Rocha, Brasil) ***
Bloqueio (Sergei Loznitsa, Rússia) ***
A Parte dos Anjos (Ken Loach, Reino Unido/França/Bélgica/Itália) ***
O Lago Balaton (Péter Forgács, Hungria) ***
Melhor Não Falar de Certas Coisas (Javier Andrade, Equador) ***
O Sorriso do Chefe (Marco Bechis, Itália ***
Como Um Homem (Safy Nebbou, França) ***
Eu, Anna (Barnaby Southcombe, Reino Unido/Alemanha/França) ***
Ladrão (Matt Rusking, EUA) ***


Estrada de Palha (Rodrigo Areias, Portugal/Finlândia) ***
Além das Montanhas (Cristian Mungiu, Romênia/França/Bélgica) **½
Era Uma Vez Eu, Verônica (Marcelo Gomes, Brasil) **½
Mistery (Lou Ye, China/França) **½
O Cordeiro (John McIlduf, Reino Unido) **½
Chamada a Cobrar (Anna Muylaert, Brasil) **½
Alois Nebel (Tomás Lunák, República Tcheca) **½
Eu Não Faço a Menor Ideia do que Eu Tô Fazendo com a Minha Vida (Matheus Souza, Brasil) **
You and Me (Kaspar Munk, Dinamarca) **½
Indignados (Tony Gatlif, França) **½


Paraíso (Panagiotis Fafoutis, Grécia) **½
Imperdoável (André Téchiné, França) **
La Noche de Enfrente (Raúl Ruiz, Chile/França) **
Antiviral (Brandon Cronenberg, EUA/Canadá) **
Keyhole (Guy Maddin, Canadá) **
Satyrianas, 78 Horas em 78 Minutos (Daniel Gaggini, Fausto Noro e Otávio Pacheco, Brasil) **
Amanhã? (Christine Laurent, França/Portugal) **
Meus 13 Anos (Christian Klandt, Alemanha) **
Ballet Aquatique (Raúl Ruiz, França) **
Herança (Hiam Abbass, França/Israel/Turquia/Palestina) **


O Quase Homem (Martin Lund, Noruega) **
Speed – Em Busca do Tempo Perdido (Florian Opitz, Alemanha) **
Brutal (Markus Busch, Alemanha) **
A Riqueza do Lobo (Damien Odoul, França) **
Tiro na Cabeça (Pen-Ek Ratanaruang, Tailândia/França) **
Hot Hot Hot (Beryl Koltz, Luxemburgo) **
A Memória que Me Contam (Lúcia Murat, Brasil/Itália/França) *½
25/11 – O Dia em que Mishima Escolheu o Seu Destino (Kôji Wakamatsu, Japão) *
L (Babis Makridis, Grécia) *
Cine Holliúdy (Halder Gomes, Brasil) *
O Frágil Som do Meu Motor (Leonardo António, Portugal) *


Hors Concours:

 
Nosferatu
(F. W. Murnau, Alemanha, 1922) *****
O Sacrifício (Andrei Tarkovski, Suécia/França) ****½
Tubarão (Steven Spielberg, EUA, 1975) ****½
Lawrence da Arábia (David Lean, Reino Unido, 1962) ****
Nostalgia (Andrei Tarkóvski, Itália/União Soviética) ****


Mensões honrosas (filmes já vistos antes, mas que merecem destaque):


O Que Se Move (Caetano Gotardo, Brasil) ****
Boa Sorte, Meu Amor (Daniel Aragão, Brasil) ****
Minha Felicidade (Sergei Loznitsa, Rússia/Ucrânia/Alemanha) ***½
Aquele Querido Mês de Agosto (Miguel Gomes, Portugal) ***½


terça-feira, 20 de novembro de 2012

Mostra SP – Encerramento




Nosferatu (Nosferatu: Eine Symphonie des Grauens, Alemanha, 1922) 
Dir: F. W. Murnau



O céu permaneceu nublado durante todo o dia e noite no feriado de Finados e mesmo assim não choveu durante a exibição ao ar livre do clássico alemão Nosferatu, no Parque do Ibirapuera. O encerramento da 36ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo foi um misto de beleza, pela admirável sessão que tivemos, e também de horror pelo que Nosferatu representa, como encarnação de um Drácula maldito.  

Não bastasse a experiência do filme ao ar livre, na noite frienta de São Paulo, com cópia restaurada, o maior atrativo mesmo foi a orquestração ao vivo que acompanhou a exibição do filme, comandada pelo maestro alemão Pierre Oser que regeu a Orquestra Petrobras Sinfônica e de Coral. Apesar de alguns pequenos incômodos (pessoas caminhando, vendedores ambulantes pirracentos, vizinhos de chão fazendo piquenique), a coisa toda teve ar majestoso, imponente, depois de dias intensos de cinema.  

Nosferatu é a primeira versão da conhecida história do Conde Drácula para as telonas, adaptação livre e não autorizada da obra de Bram Stoker. O corretor de imóveis Hutter (Gustav von Wangenheim) é convocado a visitar o conde Orlok (Max Schreck) nos Montes Cárpatos para vender-lhe uma propriedade na cidade de Bremen, mas irá se surpreender com o assustador anfitrião, na verdade um milenar vampiro disposto a alastrar uma grande peste na cidade. Através de Hutter, Orlok irá se encantar por sua esposa, a doce Ellen (Greta Schröder).

O cinema de horror deve muito a esse filme como uma das grandes inspirações para o gênero, muito também por sua adesão aos dogmas do Expressionismo Alemão. A cópia zero bala nos dá uma maior clareza do jogo de sombras, o forte contraste do claro-escuro, a composição dos cenários, a expressão exagerada dos atores, tudo em prol do efeito dramático. Isso é o que faz as imagens soarem tão consistentes na sua intenção de criar atmosfera de suspense constante, ao mesmo tempo que nos transporta para uma fábula de horror que não encontra mais lugar no cinema atual. É um filme que pertence a um tempo seu, mas que ainda hoje encanta pela forma como inspira medo e calafrios.

É o tipo de experiência que se intensifica pelo próprio lugar no encerramento de um evento desse porte, cuja marca principal é a celebração da cinefilia. Em seu aniversário de 90 anos, Nosferatu é exibido como filme ainda de interesse para um público imenso e bastante heterogêneo. É dessas sessões marcantes que a gente nunca cansa de buscar. E é preciso agradecer por poder ver isso, do jeito que foi.
 

domingo, 18 de novembro de 2012

Mostra SP – Parte 11





Antiviral (Idem, Canadá/EUA, 2012)
Dir: Brandon Cronenberg


Ao contrário do que possa parecer em primeira vista, Antiviral não é um filme de epidemias. Ou melhor, não se insere nas narrativas clássicas da infecção viral que sai contaminando pessoas, distribuindo caos, muito embora algumas marcas clássicas desse subgênero marcam presença aqui no filme de estreia de Brandon. Filho do mestre David Cronenberg, o diretor novato resolveu se aventurar por um caminho que lembra em muito os trabalhos do pai (especialmente em sua primeira fase), especialmente no fator gore e grotesco da situação.

E esse pode ser um dado contra seu próprio trabalho já que o filme é bem mais conceitual do que necessariamente gráfico ou algo eletrizante. E aí reside outro problema, porque depois da apresentação do conflito, o enredo cai numa morosidade que só. Antiviral está muito mais interessado em montar uma crítica feroz contra o mundo das celebridades e da bajulação dos fãs que chegam a se contaminar pelas doenças de seus ídolos, sendo o comércio desses vírus um novo e lucrativo mercado, fonte de vício e lucro, retrato de uma sociedade doentia.

Daí que a composição visual do filme é bastante interessante ao apresentar ambientes sempre muito limpos, assépticos, em contraste com o grotesco da doença e infecções que as pessoas passam a desejar para si. Mas o filme vai se perdendo na desinteressante história de Syd March (Caleb Landry), funcionário de uma dessas clínicas virais que se infecta com o vírus da nova doença de uma famosa super modelo prestes a morrer. Mas sua história passa por tantas reviravoltas, acrescentando desdobramentos tão desinteressantes, que pouco contribuem para o todo. É assim que Antiviral desperdiça um grande ponto de partida num enredo insosso demais.


Perder a Razão (À Perdre la Raison, Bélgica/Luxemburgo/França/Suíça, 2012)
Dir: Joachim Lafosse 


Não fosse a cena inicial desse filme uma antecipação de uma tragédia anunciada, sendo o filme composto pelo recurso do flashbabck, pouca coisa nos daria a noção do futuro trágico de seus personagens. Porque logo de início conhecemos o jovem casal Mounir e Mourielle (Tahar Rahim e Émilie Dequenne, ela numa das atuações femininas mais intensas vistas aqui nessa Mostra), alegres por estarem juntos. Nem o fato dele ser um imigrante ilegal, que vive na França há tempos aos cuidados do médico e seu protetor Pinget (Niels Arestrup) parece atrapalhar o casal enquanto impedimento de vida a dois.

Na verdade, para ele é um ótimo negócio porque assim consegue nacionalidade francesa. De qualquer forma fica claro que eles se amam. Daí que Perder a Razão parte desse amor jovem e avança na vida de casados, fazendo surgir os problemas do matrimônio. Eles continuam vivendo na mesma casa que Pinget, sob os cuidados financeiros dele, já que possuem empregos não muito rentáveis, à medida também que vão nascendo os filhos do casal (três ao todo). As relações entre o provedor e essa família vão se tornando cada vez mais difíceis, apesar da adoração que existe ali de todos entre si.

Numa história que se equilibra tão bem em expor o drama e as dificuldades desse trio de personagens, é muito interessante como a narrativa vai se afunilando e dando destaque a Murielle e seus problemas psicológicos e de comportamento. Trabalhando o tempo todo com o registro da câmera na mão, sempre muito colocada a seus atores, Lafosse sabe intensificar o uso desse recurso, que ganha ares de desestabilização emocional, mas sem nunca forçar a mão. Os minutos finais, de uma sutileza incrível, são também o desenlace trágico de uma história que teve sua origem no mais puro sentimento entre homem e mulher. Um filme intenso que põe em xeque a própria razão humana.


Na Neblina (V Tumane, Rússia/Alemanha/Letônia/Holanda/Bielorússia, 2012)
Dir: Sergei Loznitsa 


Na Neblina é desses filmes que nos deixam assim sem saída, sem esperança, uma das sessões que mais funcionaram para mim durante a Mostra no sentido de nos deixar levar (ou aprisionar) por sua atmosfera. Aqui, tem-se um sentimento de acuamento que reflete a própria situação de seu protagonista, o ferroviário Sushenya (Vladimir Svirskiy, numa grande interpretação) acusado de colaborar com as tropas inimigas alemãs que ocupavam a Bielorrússia durante a Segunda Guerra Mundial.

É mais um filme pujante desse cineasta nascido na Bielorrússia, passando a morar na Ucrânia desde pequeno, mas que se interessa em expor os atos de opressão que a União Soviética sempre infligiu a seu povo. Aqui, como o protagonista que desconhece as razões de sua própria perseguição, o espectador é posto como um refém do estado de brutalidade que o dia-a-dia da guerra e os laços de partidarismo impõem.  

Assim como no ótimo Minha Felicidade, Loznitsa busca um registro rigoroso, valorizando os planos longos e a câmera na mão, nunca como modismo, mas antes como representação visual de um estado de coisas impiedoso com o ser humano, fazendo pesar o sofrimento sobre os menos favorecidos. Mas diferente desse seu primeiro longa de ficção, Na Neblina é um pouco mais linear, menos intricado na forma, mas ainda assim persiste como um estudo complexo de atitudes, quase como se questionasse o quanto a guerra pode modificar (e endurecer) o homem.

Ao mesmo tempo, o filme não deixa de pontuar um senso de amizade e de amor à família que ainda persiste no coração humanos, mesmo que o entorno aponte para direções mais endurecidas. Em sua proposta sem concessões, para espectador e personagens, o filme se eleva como produto brutal sobre os abalos que a guerra provoca. Uma curiosa sensação que equilibra filme tão bonito de se reconhecer como arte, e obra tão forte que nos faz se perder dentro da névoa mais densa da estupidez humana.


Minha Felicidade (Schastye Moye, Rússia/Ucrânia/Alemanha, 2011)
Dir: Sergei Loznitsa 



Aproveitando a retrospectiva de Sergei Loznitsa na Mostra, dá pra acessar aqui texto que fiz sobre Minha Felicidade, primeiro longa de ficção do cineasta. O filme precisava de revisão, o que não pude fazer durante o evento, mas ficam essas primeiras impressões de um trabalho também potente.


A Caça (Jagten, Dinamarca, 2012)
Dir: Thomas Vinterberg 


Preciso dizer, eu não gosto dos filmes do Thomas Vinterberg. Daí que não fossem as boas recomendações para ver este seu novo filme, não sei se teria me arvorado. E não é que desta vez o cineasta dinamarquês fez uma obra madura? Intensa, sobre tema sério e espinhoso, consegue montar uma história que, sob o ensejo de discutir a questão da pedofilia, é na verdade um estudo complexo sobre a mentira.

Porque sabemos desde o início que o professor de uma escola infantil, Lucas (Madds Mikkelsen), não cometeu nenhum tipo de ato indecente contra a pequena Klara (Annika Wedderkopp) que, por se sentir “rejeitada” por ele, passa a sustentar o fato dele ter se mostrado nu para ela. Por sua vez, a posição de homem divorciado e de pouco trato com as mulheres, representada bem demais por Mikkelsen, ajuda a compor a fragilidade desse homem diante de acusações tão fortes, ainda mais vindas de uma criança tomada por inocente, e que encontram na pequena cidade em que vive repercussões das mais negativas e arrasadoras para ele.

A vida de Lucas então se torna um inferno, e o filme acompanha seu esforço para manter a dignidade e lutar por inocência. É mais um filme duro, que sabe dar a dimensão exata de humanidade e consideração por todos os personagens, seja por Lucas e sua família que também sofre com as acusações, seja por seus amigos e colegas de trabalho que passam a enxergar o professor de forma mais cruel. Sem julgar nenhum deles, o filme monta uma situação que afunda em sua própria natureza corrosiva da fidelidade humana.

Filmado com a tensão que a história exige, mas sem abusar tanto da câmera trêmula, Vinterberg acertou bem a mão para lidar com o tempo do filme, pausado na medida certa a fim de valorizar a experiência emocional que é acompanhar esse homem acuado em sua própria comunidade. Nesse ponto, a única ressalva é um epílogo um tanto desnecessário que arrasta o final do filme por minutos a mais, mastigando um pouco a resolução da história. Mesmo assim, faz questão de pontuar que, uma vez tido como caça por seus próprios pares, depois de permanecido na mira da vigilância social, um homem leva por muito tempo dentro de si o estigma da perseguição.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Mostra SP – Parte 10



Tubarão (Jaws, EUA, 1975)
Dir: Steven Spielberg


Era uma das sessões mais aguardadas dessa edição da Mostra SP. Tubarão, um sucesso de público na sua época, restaurado, de volta à telona de cinema, era por demais tentador. A expectativa foi tanta que a primeira sessão não ocorreu por erro na projeção digital. Mas como celebração do cinema, é interessante notar como projeto tão comercial, dirigido com competência ímpar para esse tipo de produto família numa década que descobriu o filme espetáculo, resistiu tão bem ao tempo.

Tubarão continua um filme tenso, construído com o mais apurado senso do classicismo, quando Spielberg ainda era uma promessa para o cinema (depois de uma longa carreira na TV), tateando seu lugar ao sol, mas já demonstrando ser o diretor com mão precisa para compor aventuras eletrizantes. Spielberg sabia como ninguém criar o clima de suspense (à luz do dia!) ideal para a história da fera do mar que atacava os mais desavisados por sob a água da praia de uma cidade interiorana dos EUA, ao mesmo tempo em que valorizava o lugar na família em meio à tragédia.

Revendo o filme agora, mais do que as imagens do tubarão atacando as pessoas, ficam marcadas as cenas em que uma mãe estapeia o novo chefe de polícia Martin Brody (Roy Scheider) depois de ter seu filho morto por negligência dele que não interditou a praia após um primeiro ataque; ou a cena em que o mesmo homem pede a seu filho um beijo simplesmente porque naquele momento difícil ele está precisando de carinho.

É a marca inconfundível de um Spielberg emotivo que não deixa de se fazer presente. E de fato, é muito interessante acompanhar os esforços de Brody para livrar sua comunidade das ameaças do animal faminto, uma luta por seu povo, o empenho de um herói daquela comunidade em prol do fim das tragédias. Essas, ligadas ao senso de aventura, são um outro prato cheio de boas cenas que recheiam o filme de temor, muito embora não deixa de ficar evidente hoje a precariedade técnica do filme, apesar do impacto que isso teve nos espectadores de meados dos anos 70. Mas é aí que entra o talento dos envolvidos ao construir cenas em que não é preciso mostrar muita coisa para revelar uma situação de choque e abalo mortal, um dos grandes trunfos desse filme.

Se a música do grande John Williams é um dos traços que vêm logo à mente daqueles que viram o filme há tanto tempo, é interessante notar como a obra se constrói também por períodos de silêncio que reforçam a tensão, antecipam o pavor, muito embora a música tema seja uma das grandes marcas da obra. Tubarão é assim um marco daquele cinema que se encontra com o grande público e passou a transformar a maquinaria hollywoodiana em fonte de entretenimento, com investimento pesado. Como se vê, teve seus bons momentos (e continua tendo, apesar da garimpagem que é preciso realizar para se encontrar algo digno de nota). Se a indústria do cinema comercial valorizasse somente filmes como esse, com esse apuro, as coisas estariam bem melhores.


Keyhole (Idem, Canadá, 2011)
Dir: Guy Maddin


Para quem já viu (e gosta, como eu) de filmes anteriores do Guy Maddin como A Música Mais Triste do Mundo e do maravilhoso My Winnipeg, essa nova investida surreal do diretor canadense parecia mais um prato cheio de esquisitices deliciosas. Mas não, apesar das estripulias narrativas e das viagens alucinógenas que fazem parte tão intrinsecamente do universo cinematográfico do cineasta, Keyhole aparece como um quase genérico das obras anteriores, cansando mais do que satisfazendo o olhar para suas bizarrices.

Dialogando com as marcas do filme policial noir, Keyhole se insere num universo muito particular em que um grupo de gângsteres se esconde em uma casa cercada pela polícia. É nesse espaço que se escondem mistérios e perversidades, como um labirinto onírico em que cada nova porta aberta, cada fechadura, parece encerrar surpresas que se amontoam no filme sem a menor carência de fazer sentido.

Não que seja esse o propósito, mas o problema é que, mesmo nesses casos, falta um fio narrativo que possa guiar de certa forma os descaminhos dos personagens, fazendo valer a pena todas as estranhezas da história. Essa é a maior falta de Keyhole, embora haja uma tentativa. O protagonista, Ullysses Pick (Jason Patrick), o chefe do bando, ao chegar à casa, passa a percorrer todos os cômodos, até se encontrar com a esposa Hyacinth (Isabella Rossellini) no quarto do casal. Mas não demora muito para que esse mote se perca pelos desencontros da história.

Como luz e som o filme é uma beleza, o tipo de plasticidade que segura muito bem um certo interesse pela narrativa enquanto produto estético com ótima composição de cenas. Mas não é o suficiente para sustentar a experiência, nem para se criar uma atmosfera sensorial, como tão bem faz David Lynch (mesmo quando não fazemos a menor ideia de para onde seus filmes estão indo). Maddin faz aqui o que bem sabe fazer, cria personagens curiosos e os coloca em situações adversas, por vezes grotescas, mas como resultado final forma um corpo estranho demais para se levar a sério.


Après Mai (Après Mai, França, 2012)
Dir: Olivier Assayas


Dos discursos talvez já saturados sobre o Maio de 68 e sobre a efervescência das lutas revolucionárias da época, Olivier Assayas decidiu fazer um filme posterior, como um complemento de toda aquela atmosfera, embora se alimentando dela mesma, pensando o decurso da própria História como força motriz de seu novo trabalho. Isso porque Après Mai nos situa no pós-68 para tentar entender como as noções de revolução e engajamento político, sobretudo nos jovens, encontrou continuidade nos anos seguintes.

Ou mesmo podemos falar em década seguinte, já que toda a composição visual do filme nos remete ao colorido e à atmosfera libertária da década de 70, através de uma geração que recebeu o legado do sexo, drogas e rock ’n’ roll, mas também o destemor para protestar. É logo em 1971 que a história do filme começa e acompanha os caminhos de um grupo de jovens envolvidos com movimentos de manifestação política e protestos de cunho socialista numa cidade do interior de Paris. Ou seja, Assayas nos tira do epicentro, deslocando a história no tempo e espaço, para lançar um olhar sobre a continuidade dessas ações que tiveram seus gérmens anos antes.

Com uma recomposição de época belíssima, principalmente no cuidado com o figurino e na valorização de uma fotografia ensolarada, o filme consegue ser muito fiel a essa contexto histórico. E sem nenhum tipo de panfletarismo, nem apego aos discursos políticos inflamados, Assayas se preocupa em observar os descaminhos daqueles jovens que fazem da luta política um modo de vida bem particular. Seu olhar sensível recai sobre como a vida cotidiana deles se remodela para dar lugar ao engajamento, à medida em que suas crenças e valores também são colocadas em xeque. Não há pesar nem confronto, mas um carinho muito grande pelo traçado de destinos tão combativos, cheios de vigor, mas fadado às crises da própria juventude.


A Cara que Mereces (Idem, Portugal, 2004)
Dir: Miguel Gomes


O primeiro longa-metragem do português Miguel Gomes, que nos deu o ótimo Aquele Querido Mês de Agosto e o sensacional Tabu, revela já um cineasta inteligente, inclinada à comédia, mas já muito inventivo. Porque seus filmes têm muito de perspicazes, e é muito interessante ver que esta sempre lhe foi uma marca. Pois veja, A Cara que Mereces começa com um letreiro no mínimo curioso: “Até os 30 anos, tens a cara que Deus te deu; depois disso, tens a cara que mereces”.

Conhecemos o ranzinza Francisco (José Airosa), um animador de festas infantis super amargurado com a vida, que, no dia do seu aniversário de trinta anos, briga com tudo e todos, fazendo ver a crise existencial que lhe bate à porta em idade tão decisiva. Refugia-se então numa casa de campo sob os “cuidados” de sete amigos atrapalhados. Pronto, está montada a fábula. Sim, porque todo o filme se inscreve sob a marca da ludicidade, da fantasia. Primeiro, porque está imerso no universo infantil, seja na profissão do homem (ele passa a primeira parte vestido de caubói), como nas próprias referências às brincadeiras e histórias para crianças (no início há até alguns números musicais, deliciosos), inclusive pela própria forma em capítulos de livro infantil que a narrativa é contada.

Depois porque a segunda parte, do repouso do doente no campo, ganha ares de fabulação com o jogo de gracejos e pegadinhas que se observa entre os sete amigos que cuidam do convalescente. É aí que o filme abandona as situações anteriores e seus personagens (Francisco passa a ser somente uma presença no quarto onde ninguém pode entrar) para avançar em outro terreno da narrativa, mais subjetivo e lúdico ainda (e aqueles sete amigos podem muito bem ser vistos como vertentes de uma mesma personalidade, recortada em sete partes, como possíveis “caras” a serem assumidas pelo antes protagonista).

Decerto que a proposta do longa nesse momento pode se tornar um tanto cansativa (essa segunda parte ocupa bem mais que a metade do filme), enquanto acompanhamos as trapalhadas daquele grupo esquisito de homens feito crianças (chega-se até a sentir saudade de todo aquele mau humor de Francisco e suas peripécias). Mas A Cara que Mereces já é por sua audácia e desfaçatez, num filme sobre uma crise identitária, um trabalho exemplar e singular. Miguel Gomes merece todo o louvor da jovem promessa que era.


Postcards from The Zoo (Kebun Binatang, Indonésia/Alemanha/Hong Kong, 2012)
Dir: Edwin


Dessas coisas estranhas que atravessam o caminho da gente numa Mostra tão grande, Postacrds from the Zoo é desses filmes que primeiro nos deixam curiosos, depois encantam pela simplicidade de suas ideias e acabam crescendo cada vez mais conosco. É um dos melhores filmes vistos nessa edição do evento, vindo lá da Indonésia, feito pelas mãos de um cineasta sobre o qual eu nunca ouvi falar, em somente seu segundo longa-metragem.

Se a história pode parecer “difícil” demais pela imprecisão da narrativa, essa sensação pode logo ser descartada porque o fio narrativo que guia a história acaba sendo mais simples do que esperamos. Basta aceitar a ingenuidade daquele conto. Uma garotinha é abandonada num zoológico onde passa a morar e, já crescida, começa a trabalhar no local cuidado dos animais. Mas ela vai se apaixonar por um misterioso mágico vestido de caubói que não demora a levá-la embora dali. Todo o ritmo do filme é bastante contemplativo e é de uma delicadeza absurda como ele filma essa jovem, sua relação com os animais do zoo (em especial com uma girafa) e aquele espaço de acolhida.

No fundo, trata-se de um filme sobre o habitat. As telas com informações sobre as pessoas que moram ao redor do zoológico, além dos animais, os movimentos de levar de volta os bichos para a mata de origem, as noções de (in)adequação no espaço “recriado” do zoo, tudo isso diz respeito, na verdade, a essa jovem, seu novo lugar no mundo e os deslocamentos que ela acaba realizando em seu percurso de vida.

Interessante também como o filme flerta com o cinema fantástico (com a aparição desse mágico que encanta a garota com seus truques, sempre muito reais), pontua uma crítica social (o destino das garotas sem perspectivas que, na cidade, acabam se caindo no ramo da prostituição), mas volta para o mundo de encantamentos que a protagonista conhece tão bem. Porque, no fim das contas, não importa de onde nós viemos, por onde nós passamos, o nosso verdadeiro lugar, aquele a que pertencemos, é justo onde escolhemos para fincarmos raízes. Postcards from the Zoo faz todo esse percurso para chegar no mesmo ponto, mas nunca seremos os mesmos quando voltamos. Esse é sem dúvidas um filme especial sobre o estar e ficar no mundo.

domingo, 11 de novembro de 2012

Mostra SP – Parte 9



Alois Nebel (Idem, República Tcheca, 2012)
Dir: Tomás Lunák


“Parece que uma neblina me cobre às vezes”. Essa é a sensação do protagonista que dá nome a essa animação tcheca, observando a vida e lembrando o passado a partir da estação de trem em que trabalha. Numa cidade entre a Polônia e Tchecoslováquia, no fim da década de 80, o som agudo da chegada do trem, junto com suas luzes e fumaças, são o estopim da viagem no tempo e nos delírios do protagonista, tornando Alois Nebel um filme memorialístico e onírico.

É também um filme cheio de dor. Emana dali uma melancolia que toma toda a projeção, não há quase nenhuma graça durante o filme, tudo é muito pesaroso. É aí que a narrativa se arrasta por uma história que precisa ter muito de condescendente para fazer tudo soar emotivo e triste, principalmente quando o passado da Segunda Guerra Mundial faz o protagonista rememorar traumas familiares daquele tempo.

Muito dessa atmosfera vem do uso intenso de uma fotografia em preto-e-branco, muito bem explorada no contraste de luz e sombras. No fundo, o filme é muito mais um deslumbre visual do que narrativo, cercado por essa tristeza imanente à história. Como primeiro filme de uma trilogia baseada numa história em quadrinhos, Alois Nebel poderia ser um começo melhor, mas abre brechas para uma evolução nos próximos capítulos.


Era uma Vez Eu, Verônica (Idem, Brasil, 2012)
Dir: Marcelo Gomes  


Verônica está em crise. Médica psiquiatra recém-formada, não sabe exatamente se aquela profissão lhe realiza; não é de se apaixonar por ninguém, preferindo a liberdade amorosa e sexual, sem amarras; a idade pesa cada vez mais e ela ainda sem um rumo na vida; o pai, a única família que tem, já sente os últimos dias. É o tipo de história sensível e muito particular que Marcelo Gomes consegue conduzir tão bem, como visto no ótimo Viajo Porque Preciso Volto Porque Te Amo. Mas aqui, não se tem a mesma mão acertada.

Era Uma Vez Eu, Verônica possui todo esse clima melancólico de indefinição de vida, reforçando o conflito interior da protagonista. O maior entrave, no entanto, é que gira ao redor dessa mesma ideia, tentando reprocessá-la a todo instante, sem algo mais a se deter. Daí que o diário que a protagonista mantém, registrando sua própria fala num gravador (como uma médica agora tomando o lugar da paciente em “análise”), soa como um artificio pobre e redundante, pois expressa interiormente o que já percebemos e o que ela mesma já expôs em alguns momentos da história.

É como se ela entregasse de bandeja para o espectador as tensões emocionais com os quais o filme se beneficiaria se deixasse mais subtendido. Na verdade, não é muito difícil olhar para essa personagem, para os descaminhos de sua existência, e não perceber de cara que ela não se cabe mais ali naquela vida, daquele jeito, que algo precisa ser diferente, nela ou no entorno.

Interpretada por uma supercompetente Hermila Guedes, nunca há dúvidas sobre as incertezas da protagonista. Mas o filme pouco tem a fazer com essa personagem, deixando para o final seus melhores momentos. É quando os caminhos da moça, que pareciam embaralhados, começam a tomar forma, surpreendem pela simplicidade com que buscam se resolver, sem se entregar a artifícios forçados, nem chegar a respostas definitivas. É quando percebemos que as coisas podem ainda se acertar, e que um filme quase perdido ainda tem algo de salvação.


Reality (Idem, Itália/França, 2012)
Dir: Mateo Garrone 


Depois de bater na máfia italiana no seu trabalho anterior, Gomorra, o cineasta Mateo Garrone lança seu olhar ácido desta vez para a sociedade do espetáculo e do culto às celebridades frívolas e instantâneas, alimentadas pela TV e pelo consumo de massa. Esse é Reality, filme surpreendentemente bem-humorado e satírico, depois do tenso trabalho anterior do italiano.  

Mas ao invés de somente criticar os reality shows, tomando como base os Big Brothers, Garrone vai ainda mais fundo. Ele tenta analisar como uma pessoa pode ser levada a se jogar nesse sonho de celebração de sua própria figura, como uma obsessão voraz por sucesso e atenção, uma forma de realização pessoal (mais até que financeira). Por isso o filme se apega a Luciano (Aniello Arena), esse pai de família carinhoso e trabalhador simples (mas também informal) que se vê mordido pela possibilidade de ser um dos participantes da versão italiana do referido programa.

Nesse percurso, o filme acompanha o processo de fascinação de Luciano, primeiro com curiosidade, depois ganhando ares de piração, sem se incomodar com as atitudes sem noção que o homem vai tomando, distanciando-o da família e amigos, em busca de uma nova realidade. Garrone filma o encantamento com uma leveza exemplar, com praticamente todos os takes do filme sendo compostos por longos planos-sequências que seguem os personagens nas cenas. Tudo evolui (ou parece declinar) para o incerto, mas o filme nunca se abala, assim como o personagem persiste, esperançoso, na sua fantasia.

E quando o título do filme surge na cena final, luminoso e imponente, depois de uma sequência de deslumbre total do personagem pelo mundo que ele passou a almejar, fica clara toda a dimensão trágica de Luciano, e toda a força de acidez crítica que Reality carrega. Pois é quando a realidade passa a ser aquilo que se almeja como possível e alcançável, e não o que está sob nossos pés, concretamente. Eis o perigo do sonho.



Além das Montanhas (Dupã Dealuri, Romênia/França/Bélgica, 2012)Dir: Cristian Mungiu   


Mesmo com presença fraca nessa edição da Mostra, o cinema romeno continua sua leva cinematográfica com vigor. Cristian Mungiu, cinco anos depois de ganhar sua Palma de Ouro pelo duríssimo 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, volta seu olhar agora para a intolerância religiosa através daquela mesma estética de desconforto e tensão. Além das Montanhas é um retrato de uma paixão entre duas jovens que esbarra no amor de Deus.

Alina (Cristina Flutur) viaja até o convento onde sua amada Voichita (Cosmina Stratan), agora freira, entregou seu coração aos desígnios religiosos. Na tentativa de arrancar a garota do local, acaba passando por um processo de piração mal compreendida por aquela comunidade fervorosa, rígida e cega, como própria dos agrupamentos fundamentalistas. É mais um filme contundente, marcado pelo traço do incômodo.

Mas ainda assim, Além das Montanhas é um filme inchado. Suas quase três horas de duração muitas vezes soam como preciosismo, estendendo as cenas mais do que necessário, tornando uma história sem tantos desdobramentos mais arrastada do que deveria. Por isso, o ritmo irregular ajuda a tirar a força das situações que decorrem, em especial do processo de loucura que toma Alina e do irresponsável ato de exorcismo que infligem à garota.

De qualquer forma, o filme tem no plano-sequência uma preferência estética que abraça com muita segurança. Mungiu tem um olhar bastante aguçado para uma mise-en-scène cuidadosa (mas nunca meramente calculada), pois compõe o quadro com competência ímpar. Atores e objetos de cenas estão sempre bem marcados e distribuídos na tela, num trabalho caprichado de composição. E isso tudo com a câmera levemente tremulante para acentuar o clima total de desconforto que o filme carrega, até pela história em si. Mas Além das Montanhas se beneficiaria bastante se apostasse num tratamento mais enxuto.


Chamada a Cobrar (Idem, Brasil, 2012)
Dir: Anna Muylaert 


Existe um risco muito grande nesse novo trabalho de Anna Muylaert: ele não sabe se quer ser drama ou comédia. Porque se a ideia era equilibrar essas duas abordagens, Chamada a Cobrar surge como um corpo estranho que põe em cheque o limite do humor negro. Temos uma senhora (Bete Drogam) de meia idade e classe alta que cai no golpe do falso sequestro, contata por celular por um suposto traficante que teria sua filha em cativeiro.

Acompanhamos então as desventuras dessa dondoca em estado de nervos obedecendo todas as ordens do homem no outro lado da linha, dando adeus a seus cartões de crédito, senhas bancárias e montante financeiro. Da tensão inicial que coloca essa mulher em choque (o filme poderia se deter no estudo psicológico de alguém em xeque), a história encontra sempre uma brecha para injetar humor, fazer piada com o descontrole da mulher e sua estupidez em cair em toda aquela artimanha, se vendo obrigada a viajar até o Rio de Janeiro de carro a pedido do bandido, enquanto conversa com ele ao telefone.

Daí que o filme, em meio ao caos que se instala na vida da protagonista, também registra a calmaria do ambiente ao redor da personagem, das pessoas seguindo suas vidas tranquilamente, um contraponto interessante para a situação. E se existe no roteiro uma série de pontos questionáveis em termos de desenvolvimentos de ação, o filme pouco se preocupa com essas verossimilhanças, seguindo sua protagonista na ingenuidade de suas atitudes diante do temor. No fundo, há um carinho por essa personagem, mas o filme nem sempre consegue defini-lo bem, na comédia ou no drama.


Boa Sorte, Meu Amor (Idem, Brasil, 2012)
Dir: Daniel Aragão 


Do cinema pernambucano que tanto se preocupa e reflete sobre o espaço urbano em modificação enquanto lugar de convivências sociais, Boa Sorte, Meu Amor parece dar uma passo a mais nessa discussão ao incluir na equação questões histórias que remetem à tradição latifundiária e ao passado patriarcal do Nordeste brasileiro (faz isso de forma até mais contundente que em O Som ao Redor). Mas o filme é também, ou principalmente, sobre um casal de jovens (Vinicius Zinn e Christiana Ubach) que ensaiam um relacionamento, ambos tentando solidificar suas vidas, uma carreira, uma direção a tomar, agora inseridos numa urbanicidade cruel.

Se o enredo parece seguir por lugares comuns do envolvimento amoroso, logo encontra caminhos mais interessantes (e mesmo surpreendentes), brincando com algumas convenções, mas driblando-as todas. Isso porque as obstinações dos jovens, nem sempre convergentes, chocam também com esse fio de relacionamento que se estabelece. E o filme não está disposto a facilitar as coisas para seus protagonistas.

Muito bem filmado e, sobretudo, fotografado, naquele preto-e-branco intenso, Boa Sorte, Meu Amor dá chance a seus personagens, mas também os insere num contexto nem sempre favorável. O caminho de volta que eles acabam tendo de fazer, da cidade para o interior, como uma viagem na sua própria história, é uma ótima sacada do roteiro. Para além de sua pertinência no enredo, volta seu olhar para a própria herança da cultura patriarcal, latifundiária e hierárquica do Recife mais especificamente. O amor encontra no passado seu maior obstáculo.