sábado, 28 de março de 2009

Esperança ao nascer do sol

Aurora (Sunrise: A Song of Two Humans, EUA, 1927)
Dir: Friedrich W. Murnau


Pode parecer um grande exagero ou então conversa para promover a obra, mas Aurora é um dos filmes de minha vida, obra-prima do cinema mudo e espetáculo fascinante em preto-e-branco. Da simples e universal história de amor, o filme alcança a grandeza das melhores obras do cinema mundial.

Um homem (George O’Brien) e sua bela esposa (Janet Gaynor) vivem numa fazenda, quando ele se vê perdidamente apaixonado por uma mulher da cidade (Margaret Livingston) que passa uns dias no campo. Malignamente, ela tenta convencê-lo a matar a mulher e fugir com ela para a cidade, onde teriam uma vida melhor.

Num primeiro momento, o homem vive num dilema, pois ao mesmo tempo que ama a esposa, parece estar fatigado daquela vida comum. A cidade representa a tentativa de mudança, de crescimento, embora a paixão repentina pela estranha seja um fator de extrema relevância para essa crença cega.

Nesses momentos, o filme ganha um tom de crescente suspense, nos transmitindo um sentimento de apreensão pela disposição dele em cometer o crime. No momento em que o coração falar mais alto, a narrativa ganhará ares amorosos e cativantes, acompanhando a paixão entre dois personagens da forma mais despretensiosa possível. Aqui, o filme se eleva a um estágio de pura leveza e graça, parecendo estampar em cada fotograma a palavra A-M-O-R (quase escrita na testa dos personagens). Ao fim, mais uma vez, o suspense surge através de um incidente que coloca em risco a atmosfera de felicidade; e nos coloca em total estado de inquietação.

É evidente o domínio técnico que Murnau possui no filme, seja na utilização de longos planos ou nos movimentos de câmera rebuscados, como na cena do encontro entre o homem e a amante em que, num mesmo plano, a câmera o segue, se torna subjetiva (ou seja, toma o lugar do personagem) para depois revelar sua figura no quadro novamente.

Esse é o primeiro filme dirigido por Murnau nos EUA, egresso do Expressionismo alemão. Logo de início dá para notar o clima de suspense, característico do cinema noir (introduzido no cinema americano justamente por cineastas alemães que lá irão fazer carreira), muito reforçado também pelo cinema mudo que exigia atuações viscerais do elenco. E se a expressão dura de George O’Brien vai do desespero ao arrependimento, a doce face de Janet Gaynor transita do descrédito à paixão plena.

O filme ainda é hábil em pregar peças no espectador. A cidade, local que marcaria a vida próspera do homem com a amante, acaba se tornando o local em que ele e a esposa aprenderão a se reapaixonar. A morte por afogamento, premeditada, acaba se tornando morte por acidente, desesperadora. A pilha de junco que seria a salvação de um, acaba sendo a salvação de outro. Tudo encaixado num roteiro que amarra todos os detalhes da trama.

Há também no contexto da obra um interessante conflito entre a vida no campo e na cidade. O primeiro é o lugar da calmaria, da simplicidade; a segunda representa oportunidades de prosperidade (sem esquecer que na década de 20 os centros urbanos dos EUA estão em crescente ascensão). Mas ao longo da obra, ambos os lugares poderão ser vistos como propícios à realização.

Num único filme, Aurora consegue ser, ao mesmo tempo, uma narrativa sobre amor, traição, culpa e redenção. É o filme sobre amor, traição, culpa e redenção mais lindo que eu já vi.

terça-feira, 24 de março de 2009

Chegadas e partidas

O Visitante (The Visitor, EUA, 2008)
Dir: Thomas McCarthy


O Visitante é o tipo de filme indie que ameaça desabar a qualquer momento, mas por conta de um roteiro seguro e uma direção correta, procurar se esquivar dos clichês possíveis e da facilidade de parecer condescendente com seus personagens. Um trabalho seguro do diretor-roteirista Thomas McCarthy em seu segundo filme (possui também uma carreira como ator de TV).

Walter (Richard Jenkins) é um professor universitário de 62 anos que encontra dois imigrantes ilegais morando em seu apartamento na cidade de Nova Iorque da qual esteve longe há muito tempo: o sírio Tarek (Haaz Sleiman) e sua namorada senegalesa Zainab (Danai Jekesai Gurira). Como eles não têm outro lugar para morar, Walter os deixa ficar no apartamento.

A partir daí, ao mesmo tempo em que o filme aborda a situação dos imigrantes ilegais no país, faz um estudo da vida de seu protagonista, esse senhor carrancudo e fechado, ainda marcado pela perda da esposa. Seu apego à música parece ser a coisa mais afetiva que traz consigo, a despeito do distanciamento para com os colegas e antigos conhecidos.

Mas a relação com Tarak, músico que toca uma espécie de tambor africano, vai fazê-lo entrar em contato com um mundo novo em sons e sensações, inclusive quando ele próprio aprender a tocar o instrumento. É no mínimo inusitado ver esse professor de terno e gravata batucando um tambor; ou mesmo quando prefere tocar percussão junto com outros imigrantes, ao invés de estar cumprindo sua função burocrática de palestrante universitário.

O filme constrói essa relação aos poucos, bruscamente interrompida pela prisão de Tarak, agora sob o risco de ser deportado. Aqui, o filme toma outro rumo pois surge em cena Mouna (Hiam Abbas), mãe de Tarak, surpreendida pela situação do filho. Os dois tentarão livrar Tarek já que Zainab pouco pode fazer por seu namorado. Começa aí outra relação, desta vez com nuances amorosas, mas que tem os pés no chão e nunca descamba para o melodrama (infelizmente, a trilha instrumental é o único elemento que insiste nesse caminho). Não buscando saídas fáceis, o filme ganha em sinceridade.

Acompanhado por um ótimo elenco ao redor, é do minimalismo que Richard Jenkins extrai grande parte de sua excelente performance, marcada por forte expressividade. Seus olhares calmos e diretos dizem muito do que seu personagem pensa e sente. Todos os outros atores são naturais e calorosos, em especial Hiam Abbas em sua dor materna.

Quando um sopro de vida bate na porta de Walter, ele experimenta uma sensação de renovação, muito embora as coisas não se apresentem de forma fácil, tendo ele plena noção disso. A narrativa sabe ser dura e sem concessões a seus personagens. Mas sabe também fazê-los seguir adiante.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Curtinhas

Climas (Iklimler, Turquia/França, 2008)
Dir: Nuri Bilge Ceylan


Esse é meu primeiro contato com o cinema de Nuri Bilge Ceylan, diretor turco cultuado em festivais, principalmente Cannes. E é uma ótima surpresa. Climas é a simples história da desintegração do casamento de Isa (Nuri Bilge Ceylan – sim, o próprio diretor) e Bahar (Ebru Ceylan – esposa do diretor na vida real), ele um professor universitário, ela uma produtora de TV. Através de longos planos e câmera estática, o cineasta confere ao filme uma atmosfera estanque, como a própria vida de seus protagonistas os quais não conseguem mais o mínimo de contato entre si. O filme é seco como a relação dos dois, mas ao mesmo tempo existe uma dor na quebra do relacionamento, algo que os personagens se esforçam para nunca demonstrar, alimentada também por decepções do passado. Tudo isso é bem sugerido por um filme que consegue tocar o espectador pela simples presença dos atores em tela, marcados pela persistência da solidão e do sofrimento em suas expressões (o filme não possui um acorde de trilha sonora). Mais do que diálogos, a narrativa se comunica através da força física dos protagonistas, principalmente da bela esposa do diretor. O final, bastante sóbrio e sem concessões, sabe deixar a situação em aberto, algo sempre agradável.


3 Macacos (Üç Maymum, Turquia/França/Itália, 2008)
Dir: Nuri Bilge Ceylan


Depois do ótimo Climas, é uma decepção que Ceylan em seu mais novo filme se importe tão menos com o desenvolvimento de seus personagens em prol de uma estética que parece querer afirmar como ele é um ótimo cineasta. A tática deu certo pois o filme saiu de Cannes o ano passado laureado com o prêmio de Melhor Diretor. Talvez seja o prêmio certo para o filme errado porque Ceylan é um cineasta com personalidade, mas aqui toda sua direção está mais voltada para o exercício de estilo; beira o exibicionismo. Eyüp (Yavuz Bingol) assume a culpa de um acidente causado por seu chefe em troca de uma bela quantia em dinheiro, deixando só em casa a esposa Hacer (Astice Aslan) e o filho Ismail (Rifat Sungar). Depois de apresentada essa situação, o filme se acomoda em acompanhar os erros posteriores dos personagens sem o mínimo de aprofundamento sobre a vida de cada um. Existe também um fator surreal na aparição do fantasma do filho mais novo da família (provavelmente morto por afogamento) que surge como se quisesse lembrar a todos da tragédia do passado. Mas o recurso se mostra totalmente desperdiçado pois nunca passamos a conhecer essa história, nem muita coisa pertinente àquela família. Mas se há algo impecável no filme é uma fotografia que sabe ser representativa a partir dos dilemas morais dos personagens. Mãe e filho conversam na mesa do café da manhã, local propício à interação familiar, mas é tomado por uma escuridão tal, que só reforça o quanto de obscuridade existe naquela relação. Ou mesmo na constante presença de um céu carregado de nuvens negras (retocadas em computador, é verdade) que parece prestes a desabar sobre os personagens. É uma pena que essa estética não esteja aí para reafirmar uma história mais aprofundada como merecia.


Frost/Nixon (Idem, EUA/Inglaterra/França, 2008)
Dir: Ron Howard


Esse filme tem duas ótimas qualidades e uma surpresa: baseado numa peça de teatro, o filme é tão dinâmico que nunca lembra os palcos; parece soar cansativamente político (por se tratar de uma entrevista), mas é sobre a realização dessa entrevista, alcançando seu discurso político no momento certo. A surpresa é que a direção ficou por conta de Ron Howard, cujos últimos filmes foram os péssimos O Código Da Vinci e A Luta pela Esperança. Mas há de se fazer jus ao roteiro adaptado de Peter Morgan (o mesmo de A Rainha) a partir de seu próprio texto para o teatro e um elenco que ajuda bastante. O apresentador meia-boca de talkshows David Frost (Michael Sheen) resolve tentar a primeira entrevista com o ex-presidente Richard Nixon (Frank Langella) depois de sua renúncia por conta do escândalo Watergate, três anos antes. O que parecia um embate simples vai se mostrando bem mais interessante, e duro também. Ao mesmo tempo em que Frost é mostrado como esse apresentador mais interessado no sucesso do que na importância daquela entrevista, o Nixon do filme ainda é um homem marcado pelo caso Watergate, ranzinza e preocupado com a imagem. O embate final entre os dois é sensacional, com direito a momento emblemático de um Nixon sem resposta. Frank Langella sustenta o personagem com talento e vigor, dono completo do personagem; Michael Sheen não faz feio e consegue muitas vezes alcançar o nível de atuação de Langella, batendo de igual para igual. De todos os concorrentes ao Oscar da categoria principal, Frost/Nixon era meu favorito.


Sicko – $.O.$. Saúde (Sicko, EUA, 2007)
Dir: Michael Moore


Michael Moore se glorifica como o “americano perspicaz que sabe criticar seu próprio país”, se idolatra bastante, sabe fazer teatrinho, se utiliza do maniqueísmo para compor seus filmes e criar identificação com o público, principalmente fora dos EUA, e utiliza sempre uma abordagem parcial. Muita gente vê nisso uma rica propensão ao humor irônico, à necessidade de incomodar para mostrar a verdade. O método não deixa de ser manipulador, mas é com ele que consegue desmascarar muita coisa. E por si só já é válido. Dessa vez, Moore aponta sua mira para o sistema de saúde norte-americano, com especial preocupação em cutucar os planos de saúde caríssimos do País e sua arbitrariedade em socorrer as pessoas que precisam de tratamentos caros, mas, simplesmente, são recusados (!?!). Chama atenção na abordagem feita por Moore em não comparar o sistema de saúde norte-americano com o de algum país do terceiro mundo ou mesmo um país intermediário, mas sim com nações bem desenvolvidas como o vizinho Canadá e a Inglaterra. E aí as diferenças da qualidade dos serviços saltam aos olhos, revelando grandes dicotomias. Um pouco mais de imparcialidade não faria falta alguma ao documentarista, mas seus filmes são assim, discutíveis, porém pertinentes.

sábado, 14 de março de 2009

Cinema em transe

Se vivo fosse, o ilustre conterrâneo Glauber Rocha faria hoje 70 anos de idade. Se aos 20 já era ranzinza, imagine aos 70! Mas o que tinha de personalidade forte, de temperamento explosivo, também tinha de talento e vontade de revolucionar o cinema brasileiro. Não à-toa, foi o principal responsável pelo Cinema Novo, movimento que trazia novas propostas estéticas para nossos filmes, algo muito próximo ao neo-realismo italiano. Ganhou notoriedade no mundo e admiradores importantes (Martin Scorsese que o diga). Deus e o Diabo na Terra do Sol, seu segundo longa-metragem, é um dos ápices do movimento. E é sobre ele que tentarei escrever algo de valor em comemoração à data.


Deus e o Diabo na Terra do Sol (Idem, Brasil, 1964)
Dir: Glauber Rocha


Comecei a entender o cinema de Glauber Rocha quando me disseram que seus filmes não eram realistas, mas barrocos. Aquilo me inquietava demais porque a tentativa do cineasta em denunciar mazelas da nossa sociedade, em especial nesse filme as agruras da situação agrária do País e os elementos que a compõem, me pareciam propostas realistas. Mas o que importava era a forma como Glauber filmava: através da alegoria.

Acompanhamos a trajetória de Manuel (Geraldo Del Rey), vaqueiro que se encanta pelas promessas do líder messiânico Sebastião (Lídio Silva), a pregar a salvação da alma através da penitência e do sofrimento. Manuel, revoltado com a exploração intransigente do patrão, acaba por matá-lo e fugindo com a mulher Rosa (Yoná Magalhães) para seguir Sebastião. Depois, Manuel vai se juntar ao cangaceiro Corisco (Othon Bastos), que por sua vez vê como solução para o sertão o ato da violência. Além disso, há o matador de cangaceiros Antônio das Mortes (Maurício do Valle), contratado pela igreja e pelos coronéis, para eliminar Sebastião e Corisco.

Esses personagens são representativos de uma coletividade (como acontece em vários filmes do cineasta), e não seres individuais, o que já revela a intenção do filme: discutir a formação do sistema agrário brasileiro.

A exploração do povo sertanejo feita pelas elites agrárias e a concentração de terras (questões persistentes até hoje) são os principais fatores da pobreza e miséria das pessoas. Na tentativa de combater essa mazela, surge o messianismo religioso cego (representado por Sebastião) e a intransigência do cangaço (representado por Corisco), ambos tortos e equivocados. São esses os elementos de formação do Sertão enquanto região marcada pela desigualdade.

Junta-se a isso a grande influência da literatura popular de cordel (por vezes, narrador do próprio filme), expressa não só nos diálogos dos personagens como também na trilha sonora folclórica. Nesse sentido, há a figura do cego Júlio, símbolo dos cantadores de cordel, responsável por absorver e preservar as histórias do povo nordestino através da tradição oral.

Esteticamente, Glauber (e o Cinema Novo) põe a câmera na mão e privilegia uma narrativa documental, por vezes contemplativa, com longos planos, fotografia estourada, trilha sonora pomposa (além dos cordeis, há a música grandiosa de Villa-Lobos) e filmagens em ambientes externos. O texto apresenta algo de literal, não naturalista. A edição coroa uma proposta de renovação.

Para tanto, as influências de Glauber vão desde a literatura de Euclides da Cunha, os filmes iniciais de Nelson Pereira dos Santos, a singularidade e riqueza da cultura popular nordestina e até mesmo os westerns de John Ford, os quais Glauber admirava desde a infância.

Por tudo isso, Glauber nos apresenta um filme barroco no sentido de que, a fim de confluir todos esses elementos, se utiliza da simbologia, da alegoria e do exagero para expor a situação do Sertão. É também o surgimento de uma estética, um estilo. Isso faz Ivana Bentes, talvez a maior estudiosa da obra de Glauber no Brasil, classificar o filme como “Ópera-Cordel”, ou se dizer tratar de “Brecht no sertão”. Sem dúvida, é uma grande honra para uma grande obra de nosso Cinema.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Pobreza de espírito

Quem Quer Ser um Milionário? (Slumdog Millionaire, EUA/Inglaterra, 2008)
Dir: Danny Boyle

Não é difícil entender porque Quem Quer Ser um Milionário? tenha ganhado tanto a simpatia da crítica e do público norte-americano e inglês, traduzidos na enxurrada de prêmios vencidos na temporada e na bilheteria gorda. Quem não gostou do filme reclamou dos vários Oscars que conquistou, mas, pensando bem, esse é o tipo de trabalho premiado. Em tempos de crise, nada melhor do que uma mensagem para cima e positiva a fim de satisfazer o público médio, embora se olharmos de perto a situação não seja tão positiva assim.

Quando a história começa, encontramos Jamal Malik (Dev Patel), assistente de telefonista em Mumbai, prestes a responder à última pergunta de um programa de TV que poderá deixá-lo milionário. Paralelamente, vemos Jamal sendo brutalmente interrogado pela polícia, pois não acreditam como o rapaz conseguiu chegar tão longe no desafio. Ao mesmo tempo, ele tenta conquistar Latika (Freida Pinto), seu amor de infância reencontrado.

Embora o recurso de flashback esteja já tão desgastado, não chega a comprometer. Mas é preciso muita força de vontade para engolir a ideia de que justamente todas as perguntas feitas no programa estejam relacionadas com fatos marcantes da vida de Jamal. Toda a narrativa se utiliza da artificialidade pois, mesmo com uma vida sofrida e repleta de tragédias, os personagens não parecem se importar com isso ou mesmo guardar sequelas. No fim, tudo é festa.

Momentos muito emblemáticos surgem quando o filme se proclama auto-importante, pois julga estar fazendo crítica social ao mostrar criancinhas sendo obrigadas a pedir esmola na rua ou turistas presenciando a violência da polícia para com os próprios indianos, não percebendo o quanto essa tentativa é rasa. Pitadas de maniqueísmo, com direito a sessões de tortura ou cenas de crianças tendo seus olhos queimados, reforçam muito a identificação do espectador com o mocinho, principalmente se ele terminar vencedor.

Danny Boyle surpreende aqui com um trabalho de direção fraquíssimo e no mínimo paradoxal, pois dirige o filme como um novato que, se vendo com a câmera na mão, tenta fazer o máximo de estripulias com seus planos inclinados (e irritantes), sendo que seus primeiros filmes (Cova Rasa e Trainspotting) são tão sóbrios e bem conduzidos.

Os atores, todos cheios de vontade, mas sem bons resultados transparentes na tela (com exceção de Anil Kapoor, apresentador do programa), não ajudam muito na experiência do todo, nem mesmo quando dançam. Dev Patel, então, parece uma porta. Seu personagem é ingênuo, eu sei, mas nunca me convence. Culpa de um roteiro simplista, mais preocupado na alegoria pop-kitsch ultra-alegre. Há de se chamar atenção para uma trilha sonora gostosinha, que parece funcionar melhor longe do filme.

É pertinente lembra a Inglaterra enquanto nação imperialista colonizadora e exploradora da Índia no século passado que ainda hoje, em plena era da globalização, parece mais uma vez apta a se aproveitar do país, sugando sua cultura e estilo, massacrando qualquer tipo de seriedade e respeito à cultura indiana, a fim de fazer dinheiro, com a desculpa de homenagear Bollywood. O filme não contribui em nada para enriquecer nossa visão sobre a Índia, seus conflitos internos e disparidades. Não que seja essa a proposta do filme, mas do jeito que se configura é extremamente vazio e petulante.

terça-feira, 3 de março de 2009

Curtinhas

Milk – A Voz da Igualdade (Milk, EUA, 2008)
Dir: Gus Van Sant


Para mim, havia alguns perigos na produção desse Milk, curiosamente pela direção de Gus Van Sant: primeiro, porque parecia um retorno dele ao mainstream, depois de um período de filmes alternativos (que renderam o excelente Elefante, o difícil Gerry, o ótimo Paranoid Park e o chato Últimos Dias); quando trabalhou para a maquina hollywoodiana fez obras comerciais e nada autorais como Gênio Indomável e Encontrando Forrester. Outra preocupação era que, sendo assumidamente homossexual, Van Sant fosse conduzir seu personagem de forma panfletária, tentando fazer justiça à causa gay assim como seu protagonista. Mas Milk é bem sóbrio, trata com respeito e admiração o engajamento desse personagem que se tornou o primeiro ativista gay dos EUA a enveredar nos meandros ardilosos da vida política. Somos apresentados à efervescência do bairro de Castro na São Francisco da década de 70, bem reconstituída pela produção, ajudada por imagens de arquivo da época muito bem inseridas na edição. Se Sean Penn é o grande nome no elenco, merecidamente, os coadjuvantes não ficam atrás, e meu destaque vai para um afetado Diego Luna. Só não entendi tanto aplauso para Josh Brolin. Mesmo assim, o filme não foge do convencional, mas a narrativa é envolvente e justa com seus personagens e a (H)história.


Bolt – Supercão (Bolt, EUA, 2008)
Dir: Byron Howard e Chris Williams


Incrível como esse filme tem um senso de aventura aguçado e ao mesmo tempo consegue ser simples e ingênuo, bem família. Bolt é um cãozinho astro-pop protagonista de uma série de TV em que ele salva sua dona Penny dos maiores perigos, se utilizando dos poderes especiais recebidos do pai da garota. No entanto, ele é o único a não saber que tudo aquilo não passa de ficção e seus poderes são todos trucagens de estúdio. Acidentalmente, ele foge e passa a buscar sua dona. Começa então uma jornada no melhor estilo “conheça a sim mesmo e encontre um valor para sua vida”, mesmo que estejamos falando aqui de um cachorro. A favor do filme, há ótimos personagens secundários, como os pombos de jardim e seus tiques, ou o espirituoso e amalucado hamster (de longe, o mais engraçado); uma gata de rua não chega a ser tão interessante assim. Existe também um nível de qualidade bem bom de animação, o que me faz lembrar de uma cena em que a tal gata ensina nosso cãozinho a fazer cara de pidão, explorando as expressões faciais do animal. O final tem ares de lição de moral, mas as sequências de aventura e o texto inteligente garantem a diversão.


Rio Congelado (Frozen River, EUA, 2008)
Dir: Courtney Hunt


Rio Congelado é um filme que se apega a sua personagem principal seguindo-a por seus caminhos tortuosos, por mais que suas atitudes sejam validadas em prol do bem estar de sua família. Ray (Melissa Leo) é essa mãe solteira de dois garotos lutando para sustentar os filhos; o pai sumiu no mundo com o pouco dinheiro da família. Eles vivem numa região fronteiriça com o Canadá, numa paisagem congelada no meio do nada. As coisas mudam quando ela conhece Lila (Misty Upham), descendente da tribo indígena mohawk, possuidores de uma reserva no local. O encontro não é nada amigável, e Lila também tem dificuldades para se sustentar sozinha. As duas então começam um trabalho arriscado de contrabando ilegal de imigrantes para o lado norte-americano. A direção e roteiro sem novidades da estreante Courtney Hunt se sustentam nas facilidades dos filmes independentes, embora a narrativa tenha algo de história bem contada. Uma pena que o texto não explore mais a relação de Ray com os filhos, cujas cenas são bem descartáveis. Já Lila é bem amparada pelo roteiro, assim como sua dificuldade para manter a maternidade. A presença de Melissa Leo na tela é marcante, através de uma personagem forte e determinada, que mesmo assim se arrisca na atividade ilícita e que tem no rosto duro e sem maquiagem de sua protagonista a imagem perfeita do sacrifício.


Última Parada 174 (Idem, Brasil/França, 2008)
Dir: Bruno Barreto


Até agora não sei qual a necessidade de ficcionalizar a história de Sandro do Nascimento, responsável pelo episódio ultra-televisionado da tragédia do ônibus 174, caso dos mais notórios da marginalidade e violência brasileiras. O filme traça a trajetória do rapaz (vivido por Michel Gomes) desde seu nascimento e a vida trágica na favela, mas faz isso de forma tão burocrática e mesmo panfletária que só consegue soar pretensioso. Há o discurso piedoso da agente social em prol das crianças carentes ou os mementos de Sandro “denunciando” sua realidade através do rap. Assim, o filme sempre tenta vencer pelo denuncismo barato, como se já não soubéssemos dessa realidade. O pior de tudo é saber que o roteiro é assinado por Bráulio Mantovani, o mesmo que adaptou Cidade de Deus. O mais estimulante de tudo é uma trilha sonora sóbria e inspiradíssima. No fim das contas, o filme não acrescenta nada à história de Sandro, e não chega nem aos pés da complexidade e do trabalho de pesquisa feito pelo documentário de José Padilha, Ônibus 174.