quarta-feira, 28 de outubro de 2015

XI Panorama Internacional Coisa de Cinema


Hoje é dada a largada para mais uma edição do Panorama Internacional Coisa de Cinema, a décima primeira, evento já tradicional que acontece em Salvador e Cachoeira, com aquele olhar aguçado para o que se tem produzido de vigoroso e vital na produção brasileira, além de filmes internacionais, clássicos, mais mesas-redondas, debates, oficinas, encontro com realizadores, festas.

É uma celebração mais do que bem-vinda da cinefilia numa Bahia que tanto carece de espaços dessa natureza, e que encontra tanta gente ávida para compartilhar filmes e sensações, reflexões e desejos, diante do cinema, diante do mundo.

Mais uma vez (a quarta), tive a oportunidade de fazer parte da equipe de curadoria das mostras competitivas nacionais e internacionais, mais focado nos curtas-metragens dessa vez. Também é a segunda oportunidade que me dão de ministrar a Oficina de Escrita Crítica para Cinema, uma felicidade imensa de poder debater e mostrar a crítica como atitude diante das imagens em movimento, diante das coisas da vida, para um público interessado, quem sabem inspirá-los a continuar nesse caminho, árduo.

Sobre isso, é muito bom ver o Panorama homenageando o centenário do grande crítico, ensaísta, cineclubista e agitador cultural Walter da Silveira, com direito a seminário sobre ele e exibição especial de O Garoto, de Charles Chaplin, um dos mimos de Dr. Walter. Também componho, com prazer, umas dessas mesas junto com tanta gente boa e competente.

E este ano, envolto em tantas atividades, vou me esforçar para escrever, aqui neste espaço, sobre os filmes que eu for vendo, na medida do possível da competição nacional após a passagem do furacão. 

O site com a programação completa pode ser acessado aqui. A abertura, hoje à noite, conta a exibição gratuita de Tudo que Aprendemos Juntos, do baiano Sérgio Machado. Que seja mais um Panorama de riquezas.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Festival do Rio 2015 – Ranking geral


Termino aqui a cobertura do Festival do Rio 2015. Entre mortos e feridos, o evento foi bem mais organizado do que eu imaginava, menos sufocante, embora em termos de seleção tive a impressão de ter visto muitos filmes médios e poucos de ótimos a excelentes.

Mas a experiência é sempre válida. 42 filmes em 12 dias, nada mal. Além dos filmes e discussões, teve uma série de ótimos encontros com tanta gente boa, que vive a doença louca pelo cinema. Foi ótimo retornar ao Festival. Abaixo deixo meu ranking com todos os filmes vistos em ordem de preferência. Até a próxima.


Right Now, Wrong Then (Hong Sang-soo, Coreia do Sul, 2015) ****
Paulina (Santiago Mitre, Argentina/Brasil/França, 2015) ****
Academia das Musas (José Luís Gerín, Espanha, 2015) ****
Anomalisa (Charlie Kaufman e Duke Johnson, EUA, 2015) ****
Sangue do Meu Sangue (Marco Bellocchio, Itália/França/Suíça, 2015) ***½
Francofonia (Aleksandr Sokurov, França/Alemanha/Holanda, 2015) ***½
À Sombra de uma Mulher (L’Ombre de Femme, França/Suíça, 2015)   ***½
Green Room (Jeremy Saulnier, EUA, 2015) ***½
Mia Madre (Nanni Moretti, Itália/França, 2015) ***½
Montanha da Liberdade (Hong Sang-soo, Coreia do Sul, 2014) ***½
Grandma (Paul Weitz, EUA, 2015) ***½
In Jackson Heights (Frederick Wiseman, EUA, 2015) ***½
Apocalipse Yakuza (Takashi Miike, Japão, 2015) ***½
Transtorno (Alice Winocour, França, 2015) ***½
O Clã (Pablo Trapero, Argentina/Espanha, 2015) ***½
Ned Rifle (Hal Hartley, EUA, 2015) ***½
Os Irmãos Lobo (Crystal Moselle, EUA, 2015) ***
Não é um Filme Caseiro (Chantal Akerman, Bélgica/França, 2015) ***
Mate-me Por Favor (Anita Rocha da Silveira, Brasil, 2015) ***½   
Os Exilados Românticos (Jonás Trueba, Espanha, 2015) ***
Maravilhoso Boccaccio (Paolo Taviani e Vittorio Taviani, Itália/ França) ***
A Bela Estação (Catherine Corsini, França, 2015) ***
Escritório (Johnnie To, Hong Kong/China, 2015) ***
Tudo que Aprendemos Juntos (Sérgio Machado, Brasil, 2015) ***
Mediterrânea (Jonas Carpignano, Itália/França /EUA/Alemanha/Qatar, 2015) ***
Olmo e a Gaivota (Petra Costa e Lea Glob, Brasil/Dinamarca/França/ Portugal/Suécia, 2015) **½
Mon Roi (Maïwenn, França, 2015) **½
Paraíso Fétido (Stinking Heaven, EUA, 2015) **
Les Chevaliers Blancs (Joaquim Lafosse, França/Bélgica, 2015) **
Mundo Cão (Marcos Jorge, Brasil, 2015) **
Rainha do Mundo (Alex Ross Perry, EUA, 2015) **½
Sicario: Terra de Ninguém (Denis Villeneuve, EUA, 2015) **
The Lobster (Yorgos Lanthimos, Irlanda/Reino Unido/França/Grécia/ Holanda, 2015) **
O Conto dos Contos (Mateo Garrone, Itália/França/Reino Unido, 2015) **
Os 33 (Patricia Riggen, EUA/Chile, 2015) **
Longe Deste Insensato Mundo (Thomas Vinterberg, EUA/Reino Unido, 2014) **
Der Nachtmahr (Akiz, Alemanha, 2015) **
11 Minutos (Jerzy Skolimowski, Polônia/Irlanda, 2015) *½
Per Amor Vostro (Giuseppe M. Gaudino, Itália/França, 2015) *½  
O Pesadelo – Paralisia do Sono (Rodney Ascher, EUA, 2015) *
Endorfina (Andre Turpin, Canadá, 2015) *

Hors Concours:

Meu Amigo Totoro (Hayao Miyazaki, Japão, 1988) *****
Pânico (Wes Craven, EUA, 1996) ****½

Festival do Rio – parte VIII


Truman (Idem, Espanha/Argentina, 2015) 
Dir: Cesc Gay


Truman é o tipo de comédia dramática que tem tudo para ser aquele filminho agridoce de fazer chorar e celebrar a vida, enquanto durar. Ora, tem Ricardo Darín morrendo de câncer sem querer continuar o tratamento por já se encontrar em estágio avançado da doença reincidente.

Poderia ser uma chuva de apelações, mas o roteiro do filme tem o cuidado de dimensionar muito bem os conflitos que surgem, todos muito críveis, traz personagens carismáticos, diálogos afiados e situações inusitadas. Dúvida crucial que ele tem de resolver é com quem deixar seu fiel amigo, o cão Truman. Impossível não gostar de um personagem nesse estado de saúde se preocupando com um cachorro.

O diretor é o catalão Cesc Gay que já havia demonstrado saber lidar bem com esse tipo de história de apelo popular e tratamento narrativo cuidadoso, vide o bom O que os Homens Falam, espécie de comédia romântica de viés masculino. O aclamado Darín, sucesso por onde passa, divide a cena com outro grande ator, o espanhol Javier Cámara (de filmes almodovarianos como Fale com Ela e Os Amantes Passageiros). É o encontro entre os dois, velhos amigos, que trazem à tona o momento de despedida do protagonista.

O filme está na linha tênue entre abusar do melodrama para emocionar diretamente o espectador com os encontros, despedidas e rememorações, e a sobriedade de tratar de tema tão duro. Escapa do desastre muitas vezes pelo carisma e pela sinceridade do texto. É um filme que angaria muito facilmente a simpatia do espectador, sem abusar de sua boa vontade, o que já é grande coisa.


Sangue do Meu Sangue (Sangue del Mio Sangue, Itália/França/Suíça, 2015) 
Dir: Marco Bellocchio


Existe algo de muito vigoroso nas narrativas que o mestre italiano Marco Bellocchio constrói e isso já vem de há muito. Sangue do Meu Sangue tem a mesma força criativa com uma história que promete alguns abalos, mirando na hipocrisia da Igreja Católica em relação aos desejos carnais e a noção de pecado. A trama se passa lá nos idos do século XVII quando um monge comete suicídio e, por conta disso, não pode ser enterrado com as bênçãos da Igreja, a menos que sua amante, a freira Benedetta, confesse seus pecados.

O filme acompanha os meandros do jogo religioso que abafa seus escândalos, observados de longe pelo irmão do monge que tenta tirar de Benedettta a confissão. Mas isso parece muito pouco para o cineasta. Ou antes, a denúncia das luxúrias na rotina religiosa pode soar, de alguma forma, já ultrapassada.

Daí que Bellocchio sai de certa zona de conforto e joga seu filme num outro tempo, numa outra história. Trata-se de uma mudança brusca não só por encontrar personagens nos dias atuais, ambientado no mesmo casarão que outrora foi o mosteiro palco dos acontecimentos anteriores, mas também pelo tom. Há agora um clima um tanto sombrio, via personagem que se revela um velho vampiro que vive na casa, fora o tom jocoso do homem que quer comprar a propriedade.

Por vezes fica a impressão de que essa mudança é um mero capricho, truque de roteiro para “brincar” com as possibilidades narrativas daquela história, um desvio de atenção. Isso porque aquilo que está no cerne da questão para o filme é resgatado justo nos momentos finais. Ali Bellocchio acredita no desejo como força de vida (divina?) para o ser humano, para a vitalidade do corpo e da alma. O desejo salva.


O Clã (El Clan, Argentina/Espanha, 2015) 
Dir: Pablo Trapero


O aclamado cineasta argentino Pablo Trapero toca agora numa ferida da história política argentina através do caso real da família Puccio, tradicional na high society daquele país. Todos os membros são impassíveis diante do segredo brutal que eles escondem: praticam sequestros de gente rica para ganhar resgate. Guillermo Francella interpreta, com uma força gélida de olhar e postura, o patriarca e cabeça das operações, tendo de lidar com os questionamentos dos filhos, em especial de Alejandro (Peter Lanzani).

O filme está o tempo todo do lado de dentro desse núcleo familiar, observando como se estrutura aquela rotina sádica (os raptados ficam presas em cômodos escondidos na própria casa da família), enquanto a vida de cada um segue. Não se trata de vilanizá-los, nem de compreendê-los, mas de não transformar o filme num mero denuncismo ou maniqueísmo uma vez que aqueles atos já são hediondos por si sós.

Ainda assim, Trapero consegue ironizar aquela situação, muito por conta de uma trilha sonora que remete a certa jovialidade rocker, que demarca uma época, mas também contrapõe certo bem estar social a práticas criminosas. O diretor continua seu belo trabalho de encenação, com câmera elegante e cada vez mais sutil, o que lhe valeu um merecido prêmio de melhor diretor no último Festival de Veneza. Talvez o porém fique por conta de uma montagem que antecipa certas situações e tira a força do clímax do filme.

O Clã ainda faz lembrar da grande qualidade do cinema argentino atual em remexer e olhar para sua História recente, para as mazelas sociais e políticas de há relativamente pouco tempo, de maneira corajosa, crítica, revisional. Vale lembrar que a então Argentina acabava de sair de um regime ditatorial. Talvez por isso, o filme seja tão caro aos próprios argentinos, o que justifica o imenso sucesso de público que tem feito por lá. E merecido.


À Sombra de uma Mulher (L'Ombre des Femmes, França/Suíça, 2015)
Dir: Philippe Garrel


Philippe Garrel continua fazendo filmes como quem vive numa França de outrora, romantizada, dos anos 1950 ou 60, também melancólica, revisitada em preto-e-branco granulado. O filme parece uma continuação de O Ciúme, último trabalho do diretor, com o mesmo tom, ritmo amansado, mas colocando seus personagens em certos turbilhões amorosos.

Aqui, Paris é o palco das dores de amor de um casal que vive bem um relacionamento de proximidade, trabalham em união nos documentários que ele dirige, ainda que precisem de outros subempregos. A história ganha cores dramáticas quando ele começa a ter um caso extraconjulgal que lhe agrada muito, ainda que continue a adorar a vida com a esposa. 

O filme segue a estrutura das reviravoltas, com direto a descobertas e trocas de farpas, ainda que a questão pareça ser outra. No início do filme, a mulher chega a revelar como lhe agrada uma vida de entrega ao marido, à sombra dele. Mas o título do filme sugere o contrário, e veremos como, aos poucos, esse homem sucumbe, exige muito da outra parte sem querer ceder e lida mal com as atitudes dessa mulher, sem conseguir acompanhar sua maturidade emocional. No fundo, a mensagem é muito clara aqui: mulher é maior que homem, apesar do amor ser maior que ambos.

domingo, 25 de outubro de 2015

Festival do Rio – parte VII



O Pesadelo – Paralisia do Sono (The Nightmare, EUA, 2015) 
Dir: Rodney Ascher

É incrível como ainda hoje se fazem documentários tão antiquados que insistem em ficcionalizar o depoimento de alguém, como forma de ilustrar o que está sendo dito, como se o espectador não pudesse imaginá-lo por si só (privando-o, inclusive, desse exercício). No caso de O Pesadelo – Paralisia do Sono, como em muitos documentários desse tipo, há uma história muito boa por trás de uma execução decepcionante – e o mesmo já acontecia no filme anterior do cineasta, O Labirinto de Kubrick.

O filme traz uma série de depoimentos de pessoas que sofrem de um sério distúrbio de sono: elas acordam no meio da noite, mas não conseguem se mover, como se o corpo físico ainda estivesse em estado de sonolência, apesar da consciência estar ativa; além disso, passam a ter alucinações, geralmente envolvendo vultos ou seres que parecem estar presentes no ambiente em que elas estão "dormindo".

Há de fato uma vontade do filme em transformar esses relatos em algo mais assustador do que eles já são através de um tipo de dramatização frouxa que busca assustar com efeitos especiais fajutos e tiques grosseiros de filmes de terror. Mas o pior mesmo é quando os depoimentos parecem repetir o mesmo tipo de experiência com diversas pessoas, o que impede que o filme avance, amplie-se e adentre aquele universo tão estranho.


Mia Madre (Idem, Itália/França, 2015)
Dir: Nanni Moretti

Bem ao estilo sutil de Nanni Moretti, Mia Madre é tudo que se poderia esperar do tratamento singelo e maduro do cineasta italiano. O filme tem o cuidado de nunca soar piegas e choroso, ainda que seja naturalmente emocional pela história que conta. 

É menos um conto sobre o luto – Moretti já fez esse filme antes, trata-se do maravilhoso O Quarto do Filho – e mais sobre a confusão mental de uma mulher que chega à razão de que sua mãe, já debilitada de saúde, está prestes a morrer. Ela é Margherita (Margherita Buy), uma cineasta renomada, mulher solteira, envolta na produção de um novo trabalho.

A personagem divide-se entre as preparações do novo filme e os encontros com a mãe, também na companhia do irmão (vivido pelo próprio Moretti). Mas o filme guarda um inesperado alívio cômico: Barry Huggins, ator americano que chega para filmar com Margherita, interpretado por um impagável John Turturro.

Ele é dono de ótimos momentos quando faz a cineasta perder a paciência diante da sua dificuldade de decorar as falas, a despeito do seu porte de ator de primeira grandeza. Essa relação só acrescenta mais desgastes emocionais para ela, ainda que surja dali uma fagulha de alegria e beleza. É uma chispa que brota inusitadamente de uma história de dor. Mia Madre celebra não a despedida, mas o caminho de quem permanece.


Paulina (La Patota, Argentina/Brasil/França, 2015) 
Dir: Santiago Mitre

Paulina começa e parece que vai enveredar pela já batida história da professora que chega a uma comunidade do interior para mudar a vida dos alunos. É importante que pouco se diga sobre o enredo do filme porque, em certo momento, a trama muda completamente de figura e a protagonista, mulher independente e de pulso firme, precisa confrontar seus próprios princípios diante de uma situação humilhante e violenta. 

Santiago Mitre conduz com muita segurança uma narrativa que vai e volta no tempo, mas situa o espectador num turbilhão emocional. Mais que isso, o filme põe a protagonista numa situação de tal complexidade, a partir das decisões que ela tem de tomar, que mesmo para ela a coisa toda é um grande desafio – e sua escolha não é a mais fácil.

O filme tem a maestria de colocar o espectador num lugar de indecisão sobre que lado tomar, o que torna Paulina um caso raro de estudo moral que não está disposto a entregar saídas simples, nem escolher caminhos confortáveis a se mirar.

Dolores Fonzi encarna maravilhosamente essa mulher em situação de vulnerabilidade, mas ainda assim dona de certas convicções. Mas a coloca diante de outro grande ator: Oscar Martinez, que interpreta o pai da protagonista. Advogado bem-sucedido, desde o início ele é contrário à ida da filha para o interior por achar que ela tem à frente uma carreira promissora como jurista. É no embate ideológico entre os dois que o filme ganha texturas mais complexas e densas, num jogo que também é emocional, familiar, sem nunca apelar para maniqueísmos.


Apocalipse Yakuza (Gokudou Daisensou, Japão, 2015) 
Dir: Takashi Miike


Melhor sessão feel-good-insana-quebra-tudo de meia-noite não poderia haver do que a de Apocalipse Yakuza, mais um petardo do prolífico cineasta japonês Takashi Miike. É um filme de vampiros e seres estranhos com poderes e habilidades não humanas, mas tudo isso numa roupagem de filme de máfia japonesa.

Não à toa, uma das questões aqui é a transferência de poderes, o pupilo que precisa assumir o lugar de seu antigo chefe, um vampirão que mantinha sua verdadeira identidade escondida. Mas Miike é feliz também por fazer surgir uma série de personagens excêntricos que entram na briga pelo comando da famosa Yakuza – o vilão fantasiado de sapo de pelúcia, exímio lutador, é dos mais engraçados e icônicos. 

Os efeitos especiais podem não ser dos melhores, mas até isso contribui para o gosto de filme trash, mais as boas doses de pancadaria, sangue, morte e destruição elevados a potências altíssimas. Não é muito difícil deixar de lado as reviravoltas e surpresas de enredo para se concentrar na insanidade bestial que o filme serve, de bandeja. É mesmo um belo deleito sanguinário.
 

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

A virtude de um homem

Ponte dos Espiões (Bridge of Spies, EUA, 2015)
Dir: Steven Spielberg


O título do filme pode dar a impressão de uma história policial com ares aventurescos, mas Ponte de Espiões é mais uma observação sóbria de uma negociação de tratos políticos. É também um olhar singelo para os traços de virtude de alguns indivíduos em contraponto a uma noção maior de Justiça e do espírito de uma Nação. Steven Spielberg está aqui mais perto da construção minuciosa de época e atmosfera de um Munique ou Lincoln, para ficar em exemplos recentes de sua filmografia, mesmo porque a história passa a apontar para o tema do patriotismo torto.

Temos o caso real do advogado James Donovan (Tom Hanks) que é convencido a defender na Justiça o cidadão soviético Rudolf Abel (Mark Rylance), acusado de espionagem nos Estados Unidos. Estamos no universo político paranoico da Guerra Fria e seu embate ideológico que contrapõe capitalistas e socialistas. O caso vai tornar-se mais complicado do que parece e, em certo momento, Donovan terá de tratar da liberação de Abel em troca do resgate de um soldado americano das forças aéreas, feito prisioneiro pelos soviéticos.

Há aí não só o princípio de que a Justiça americana prima pela imparcialidade, dando vez para que Abel seja defendido no tribunal, como também a percepção de que uma vida americana tem grande valor para a pátria – como o era em O Resgate do Soldado Ryan, curiosamente também com um Tom Hanks em busca de salvar um compatriota. Mas Ponte dos Espiões consegue por em xeque essas duas instâncias na medida em que coloca o próprio ideário do país americano contra a parede. Tanto no julgamento de Abel, como nas ordens de negociação, a América mostra-se mais interessada na imagem política de suas atitudes do que num verdadeiro sentimento de justiça e honra.


E daí brota a força do protagonista de Ponte dos Espiões, o homem que faz a diferença. Donovan é o americano médio, pai de uma família tradicional, jurista até então de causas civis. Poderia muito bem nadar junto à maré e cumprir, estoicamente, o papel a que foi destinado. Resolve, porém, ir não contra a maré, mas aproveitar-se dela para reivindicar soluções mais justas que deveriam ser de interesse da Nação. O filme é a história de obstinação desse homem, sem que sua figura sobreponha-se à história que vai sendo contada.

Spielberg passeia como poucos pelo caminho do humanismo emotivo, conseguindo aqui não soar piegas (como acontece, por exemplo, no recente Cavalo de Guerra, ainda que o filme tenha outras qualidades). Aqui se preza pela sobriedade, sustentando-se muito bem numa narrativa clássica e enxuta.

O filme acerta na reconstrução de época, no tom investigativo, fotografado belissimamente pelo já parceiro de Spielberg, Janusz Kaminski, e na atmosfera de suspeita constante, em especial, quando a história transfere-se para a Alemanha Oriental, dividida entre os polos conflitantes naquele momento histórico. 

Mas talvez a primeira metade do filme seja a mais bem resolvida pela objetividade e fluidez com que os acontecimentos se desencadeiam, sem as muitas idas e vindas do jogo burocrático que se encena ali. Mas é bastante satisfatório chegar ao fim e encontrar um olhar muito carinhoso e respeitoso para aqueles que verdadeiramente entendem o sentido da justeza das coisas nesse mundo louco dos conflitos humanos, sejam eles bélicos, ideológicos ou de consciência.

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Festival do Rio – parte VI

 

Não é um Filme Caseiro (No Home Movie, Bélgica/França, 2015)
Dir: Chantal Akerman 


Belíssima surpresa o canto de cisne de Chantal Akerman, grande cineasta que nos deixou há poucos dias. Não é um Filme Caseiro é sobre a morte de sua mãe, judia que sobreviveu a Auschwitz, Natalia Akerman. É um belo filme de despedida, em mais de um sentido, ressignificado agora pela partida repentina da diretora belga.

Incrível como uma cineasta de encenação tão rígida tenha feito filme tão amoroso como esse, sem abandonar a rigidez. Essa preferência formal está lá nos longos planos estáticos, na longas conversas casuais entre mãe e filha e mesmo nas aparições rápidas de conversas via Skype.

Natalia tem uma presença forte não muito pelo que ela diz – havia uma impressão de que o filme se concentraria muito na fala. Mas a preferência é pela imagem de uma mulher que se presentifica quando menos esperamos, seja através de sua entrada repentina no quadro, seja pela voz ou sussurros entreouvidos por entre portas e paredes. Ela vai definhando diante da câmera com o passar do tempo, inexorável e cruel, debilitada pela idade, mas ainda assim resistente, resiliente diante do fim. E Chantal parece observar com respeito e admiração esse último momento. Não é um Filme Caseiro trata-se de um belo registro sobre um ato de enfrentamento.


O Conto dos Contos (Il Racconto dei Racconti, Itália/França/Reino Unido, 2015) 
Dir: Matteo Garrone


Enveredando pela narrativa dos contos fantásticos, o cineasta italiano Matteo Garrone investe agora num filme muito portentoso em termos de construção de imaginário. Uma pena que, na maior parte das vezes, ele esteja esvaziado de força narrativa, de capacidade de envolver o espectador e de extrair daquelas histórias pontos de interesse maior.
O Conto dos Contos é baseado num livro célebre do escritor Giambattista Basile e passeia por três núcleos narrativos que se intercalam durante o filme. São poucas as histórias que de fato saltam aos olhos, sendo a primeira delas a mais interessante: uma rainha (Salma Hayek) não consegue engravidar e pede a ajuda de uma espécie de feiticeiro.

A solução encontrada tem desdobramentos surpreendentes e, até certo ponto, causam certo fascínio pelo que virá a seguir. Mas logo as histórias tornam-se burocráticas, anódinas – há a de um rei que se apaixona por uma velha, pensando se tratar de uma jovem camponesa; e de outro obcecado por um estranho animal. Garrone parece despender maior empenho na imagem fabular encerrada em si mesma do que naquilo que ela pode ter de representativa numa história.


Maravilhoso Boccacio (Maraviglioso Boccaccio, Itália/França, 2015
Dir: Paolo Taviani e Vittorio Taviani


Em contraponto a O Conto dos Contos, interessante com outros diretores italianos também arvoraram-se pelas múltiplas histórias, saindo-se bem melhores. Os mestres e irmãos Paolo e Vittorio Tavaini foram beber do clássico O Decameron, de Giovanni Boccaccio, sem inventar muito a história já conhecida: na região italiana de Florença, nos anos sombrios da peste negra, dez jovens enclausuram-se num castelo a fim de se protegerem.

Passam o tempo contando histórias e entretendo os demais. O que falta no filme de Garrone tem em grande medida aqui: casos que se valem mais por seus entremeios narrativos e não pelo visual ou algo que lhes tome a atenção.

Acabam tornando-se contos morais, dramáticos ou cômicos, sobre amor, traição, adultério, hipocrisia etc; sobre as fragilidades e peculiaridades da alma humana, enfim. É certo que o filme não traz a força criativa do cinema dos irmãos Taviani – que mesmo recentemente demonstrou vigor em César Deve Morrer –, mas certamente evidencia a precisão dos diretores como encenadores maduros.


Anomalisa (Idem, EUA, 2015)
Dir: Charlie Kaufman e Duke Johnson 


Depois de uma péssima investida pela direção em Sinédoque, Nova York, o cineasta e ótimo roteirista Charlie Kaufman investiu na animação a partir de um texto seu, em parceria com o diretor e animador Duke Johnson. Poderia ser mais uma tentativa de mostrar serviço em outra seara, mas Anomalisa tem o melhor de Kaufman: roteiro afiadíssimo na construção de personagens e diálogos maduros, muitas vezes nonsense, um belo filme de gente melancólica.

Aqui ele deixa de lado também possíveis invencionices narrativas ou ideias esdrúxulas (o que lhe rendeu, no fundo, ótimos roteiros, como os de Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças e Quero Ser John Malkovich). A própria ideia de animação também parece um tanto gratuita, o filme não tem nada que ele não pudesse fazer em live action, nem mesmo no sentido de explorar a técnica do stop motion.

Os diretores preferem fazer de Anomalisa um estudo psicológico de personagens, numa animação para adultos, não só por algumas cenas e insinuações mais quentes, mas principalmente pela densidade e fraquezas emocionais que os tipos humanos carregam. Na trama, o escritor de autoajuda Michael Stone (voz de David Thewlis) chega na cidade de Cincinnati para lançar seu mais novo livro. Vive uma rotina familiar que não lhe rende muitas alegrias, estágio na vida que mistura total desânimo e vontade de recomeçar algo novo.

Michael aproveita para visitar um antigo amor do passado, mas envolve-se também com uma mulher (voz de Jennifer Jason Leigh) hospedada no mesmo hotel que ele. A maneira como essas pessoas revelam-se na história, cada qual expondo suas fragilidades e anseios, é de uma humanidade tão sincera quanto dolorosa, apesar do filme ter também boas doses de bom humor.

Há, em especial, uma cena de sexo filmada da forma mais despudorada possível, gente comum querendo ter e dar prazer, sem moralismos, ainda que os personagens estejam tomados de timidez e inquietações. O filme caminha por um trajeto psicológico complexo, mas consegue captar, em essência, asseios de gente de carne e osso através de bonecos de massinha. 

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Festival do Rio – parte V


A Academia das Musas (La Academia de las Musas, Espanha, 2015) 
Dir: José Luis Guerín


Poderia ser o filme mais pedante, a profusão de conversas mais chata e interminável possível, mas é incrível como José Luís Guerín consegue transformar um falatório acadêmico em algo tão vivaz e manter o interesse. Raffaele Pinto é um professor de filologia obcecado pelo tema das musas clássicas que inspiravam os grandes artistas e poetas. Sua tese recente é de que seja possível e essencial nos dias correntes ensinar as mulheres, as jovens sobretudo, a serem musas.

O filme se dispõe a fazer esse homem erudito discutir e trocar ideias com seus alunos e outras pessoas – tal como sua esposa, por exemplo, o que logo se transforma numa deliciosa DR erudita. Temas como amor, o belo, desejos, sedução, princípios do que seja o masculino e o feminino, enfim, questões que compõem o campo da arte e da inspiração, surgem em profusão num filme que muitas vezes nos questiona sobre sua natureza ficcional ou documental.

Trata-se de um filme essencialmente dialógico, calcado muito na palavra e nos planos que privilegiam os rostos em paralelo dos personagens que falam e confrontam-se em suas ideias. Engraçado como A Academia das Musas pode ser visto como um filme tão diferente de Na Cidade de Sylvia, a obra mais festejada do cineasta, ao mesmo tempo em que estabelece com ele grande diálogo. Qual a melhor representação contemporânea da musa senão a mulher que o personagem obcecado persegue durante o filme?

Mas aqui Guerín consegue fazer desse falatório todo um filme delicioso que não deixa de ser, ainda, sobre as relações amorosas ou, antes, sobre como enxergar o outro, a beleza do outro. Há uma precisão na forma como essas conversas são ordenadas na montagem com o passar dos dias, sem nos deixar se perder no emaranhado discursivo, mas também sem fazer dele um peso teorizado. Um filme sem igual.


Francofonia (Idem, França/Alemanha/Holanda, 2015) 
Dir: Aleksandr Sokurov


Se não existe talvez nesse novo filme de Sokurov um ponto central com o qual podemos dizer “esse filme é sobre isso”, ao menos podemos ver que o celebrado diretor russo faz de Francofonia um ato de celebração e de amor pela França, pela sua cultura artística, mas também um foco de grande interesse pelos meandros de sua História.

O Museu do Louvre acaba sendo o eixo pelo qual essas vertentes convergem, mais exatamente no período de ocupação da França pelas tropas do eixo durante a II Guerra Mundial. É menos um filme sobre a arte e mais sobre como um espaço de preservação e solidificação da cultura mundial resiste em tempos difíceis.

Sokurov mistura muitos registros aqui, uma fragilidade do filme em nunca se apegar com afinco a um deles, tateando por muito tempo um a solidez narrativa. Pode ser visto como um ensaio poético-político, misturando imagens de arquivo, reconstruções ficcionais e ainda invoca a persona de um Napoleão Bonaparte bonachão para passear pelos corredores e salões do museu.

Mas talvez a grande força do filme é fazer brotar dessa história – que tem muito de didatismo para situar o espectador no contexto histórico da época – a importância de um elemento central para continuidade e resistência do museu diante do invasor, a saber o então diretor do Louvre, Jacques Jaujard. Diante do peso da História e da Arte, surge essa figura humana, em contraponto a outro sujeito, o conde Wolff-Metternich, general da ocupação nazista em Paris. Mas é Jaujard quem Sokurov escolhe para centralizar a simbologia da resistência: o homem e sua história pessoal contra a adversidade da História maior, eis o grande embate.


The Lobster (Idem, Irlanda/Reino Unido/França/Grécia/ Holanda, 2015)
Dir: Yorgos Lanthimos 


O diretor grego Yorgos Lanthimos, mais conhecido pelo filme de choque Dente Canino, dirigiu seu primeiro filme em língua inglesa, sem deixar de lado o traço do bizarro e da estranheza de seus trabalhos anteriores – em diálogo muito frutífero com certo cinema feito na Grécia da crise atual.

Pessoas são “internadas” num resort de luxo para que possam se apaixonar por outras e formar um casal, de preferência feliz. Caso contrário, elas serão transformadas em um animal de sua própria escolha. The Lobster é mais um mergulho num mundo de tons fabulares, ainda que o tratamento seja naturalista. Todos parecem estar de bem com essa formalidade, apesar de correrem contra o tempo para salvarem a pele.

Lanthimos investe não só nessa fábula de estranhezas, como também injeta boas doses de humor negro na história – a piada com o filme Conta Comigo, por exemplo, é impagável. Aos poucos o diretor, que também assina o roteiro, amplia esse universo que é um prato cheio para a circulação de personagens estranhos que se comportam de modo esquisito. É quando o filme passa a girar em torno das possibilidades de estranheza que aquele universo possibilita – ainda que seja dinâmico, apresentando novos personagens, saindo de uma zona de conforto – até chegar num final que realmente tem algo a dizer.

Existe no filme uma ideia clara de ridicularização da instituição do matrimônio ou dos relacionamentos amorosos perfeitos como sinônimos de felicidade que muitos almejam. The Lobster revela aí uma espécie de descrença na união conjugal entre homem e mulher, no simulacro que pode ser essa união. Enquanto isso, o amor estaria acima disso tudo, num gesto de sacrifício que fala mais sobre o sentimento das pessoas – e que só seria possível ao quebrar todas as convenções. O amor como ato revolucionário, em muitos sentidos. É uma ideia muito forte, mas que se dilui no mar de bizarrices que é esse filme.


Os Irmãos Lobo (The Wolfpack, EUA, 2015) 
Dir: Crystal Moselle


Certas realidades são bastante curiosas pelo fato de parecerem impensáveis – e por isso mesmo fascinantes quando adentradas e comprovadas. Os Irmãos Lobo é um documentário que exemplifica muito bem essa ideia ao revelar a rotina de vida dos sete irmãos da família Angulo que foram educados pelos próprios pais e nunca saíram de casa, permaneceram ali trancados por 14 anos.

Eles vivem num prédio no bairro de Manhattan e seu maior contato com o mundo externo são através de filmes. São tão fascinados por alguns deles, e suas únicas percepções do mundo exterior, que passam grande parte do tempo reencenando e gravando amadoramente clássicos do cinema americano, desde Cães de Aluguel até Os Bons Companheiros.

Os Irmãos Lobo, para além da surpreendente história, resgata esse sentido de reinvenção da cinefilia, tem momentos muito curiosos e engraçados, mas vale muito por tentar entender a mentalidade daquelas pessoas, como esse enclausuramento e a possibilidade de quebrá-lo mexem com aquele núcleo familiar. 

Tem a mãe e o pai, que defendem com afinco, e os filhos espremidos entre o carinho e a limitação que sentem profundamente. Chrystal Moselle, em seu primeiro filme como diretora, consegue ouvir e extrair uma melancolia evidente daquelas pessoas, sem julgamentos ou comiseração. Em certo ponto, o filme deixa de apresentar novidades na rotina daquela família, mas é um estudo incrível sobre as demandas de espaço e contato humano que uma pessoa exige.

sábado, 17 de outubro de 2015

Festival do Rio – parte IV


Montanha da Liberdade (Jayuui Eondeok, Coreia do Sul, 2014) 
Dir: Hong Sang-soo


Hong Sang-soo emplacou dois filmes nesse Festival do Rio, ambos adoráveis e, seguindo as expectativas, completamente conectados a sua obra, seus temas e personagens de sempre. Montanha da Liberdade talvez seja mais livre no desencadeamento das ações e também esteja mais perto da comédia, aquela mais sutil, sem grandes intenções de ser realmente hilária.

A graça surge da surpresa dos encontros e desencontros, das conversas prosaicas, talvez o grande substrato da obra de Hong Sang-soo, elevando em muito a noção de naturalismo no cinema. Aqui um turista japonês (Ryô Kase) retorna à Coreia do Sul a fim de reencontrar a jovem a quem ele pediu em casamento anos antes, sem sucesso. O homem vaga pelas ruas em busca de sua amada, mas logo se vê envolvido com a dona de um pequeno café.

Mesmo narrativamente, o filme poderia se apegar a uma estrutura rígida: o personagem envia à mulher um conjunto de cartas que ele escreveu para ela em ocasiões anteriores. Por acidente, ela deixa as cartas caírem e recolhe as folhas fora de ordem. É a leitura não cronológica dessas memórias que guia a narrativa do filme, mas sem que isso se torne um quebra-cabeças, um jogo de adivinhação e colagem. Esse jogo certamente está lá, mas nunca se sobrepõe aos personagens e seus conflitos, suas angústias e felicidades, frustrações e desejos, que vamos conhecendo aos poucos, na conversas mais triviais.

Os filmes de Sang-soo bebem de uma grande influência da Nouvelle Vague, em especial do cinema verborrágico de Eric Rohmer. O diretor coreano trabalha com poucos personagens e cenários, planos longos e movimentos sutis de câmera. Mas sua maior virtude é tornar seus personagens tão palpáveis quanto carismáticos, sem nunca cair na caricatura ou apontar para o piegas. É impossível não ver seus filmes com um sorriso no rosto.


Right Now, Wrong Then (Jigeumeun Matgo Geuttaeneun Teullida, Coreia do Sul, 2015)
Dir: Hong Sang-soo


Ainda que continue explorando os encontros e desencontros casuais, Hong Sang-soo em Right Now, Wrong Then é um tanto mais rígido ao formatar sua estrutura narrativa, ou pelo menos deixa evidente um truque de roteiro: na metade do filme, ele reconta sua história, com os mesmos personagens passando pelas mesmas situações, mas com atitudes distintas.

No enredo temos um famoso diretor de cinema (Jeong Jae-yeong) que conhece por acaso uma garota num templo religioso. Ela é uma artista plástica iniciante, os dois percebem que têm interesses em comum e passam o dia conversando, entre bares e copos de bebida – e quanto mais eles bebem, mais eles se revelam.

Mas mais uma vez, Hong Sang-soo não esconde seu apreço pela casualidade das situações cotidianas, pela naturalidade com que os personagens apresentam-se uns aos outros. Ainda que dono de uma mise-en-scène mais apurada aqui, nunca tem a pretensão de exibir virtuosismos. É realmente incrível como atores bem dirigidos dominam um texto convincente como algo prosaico e crível e como o diretor estende o plano sem que isso se torne mero exibicionismo, fazendo tudo fluir como um todo muito bem orquestrado, ainda que aparentemente tão simples.

A sacada da narrativa se repetir na segunda metade do filme revela personagens em posições distintas – a grosso modo, na primeira parte é o diretor que se propõe a seduzir a garota, já na segunda metade é a jovem quem tenta se aproximar do homem. Com isso, Hong Sang-soo explora sem igual a complexidade dos sentimentos humanos, sem fazer disso um tratado pretensioso, e também sem perder a graça que tão bem marca seu cinema.


A Bela Estação (La Belle Saison, França, 2015) 
Dir: Catherine Corsini


O início de A Bela Estação caminha para um caminho pouco novo: ao conhecer a militante engajada na causa feminista, Carole (Cécile de France), a jovem Delphine (Izïa Higelin), garota que viveu toda sua vida no campo, desperta para um novo mundo. Não só aquele da luta pelos direitos da mulher, mas vê florescer uma paixão inexplicável por Carole – embora já houvesse recusado pretendentes masculinos antes. Não demora para que as duas entreguem-se a esse amor efusivo.

Não há de se esquecer que o filme se passa em fins dos anos 1960 quando os relacionamentos homossexuais ainda eram grande tabu social, ainda mais para as mulheres, apesar de ser justamente o momento histórico das revoluções e liberações sexuais no mundo ocidental.

Mas A Bela Estação corre o risco enorme de se tornar um filme de bandeira, abraçando com força o discurso mais fácil da luta feminista. Chega realmente perto do desastroso até o momento em que decide focar na relação das duas moças, especialmente na maneira como as famílias de ambas lidam com isso. Quando a paisagem muda da Paris libertária para a fazenda no interior do país, cheia de gente cabreira, as coisas ganham outra dimensão.

A partir daí, o filme ganha em densidade e as personagens crescem porque não está em jogo somente um amor novo, mas toda uma conjuntura familiar, questões de trabalho e planos de futuro, coisas concretas com as quais as personagens têm de lidar. Corsini não poupa ninguém de obstáculos a enfrentar, mas não deixa de olhar com carinho para a luta íntima daquelas mulheres.


Ned Rifle (Idem, EUA, 2014)
Dir: Hal Hartley


Eu não vi As Confissões de Henry Fool (1997) nem Fay Grim (2006), ambos parte da trilogia que se encerra agora com Ned Rifle, dirigidos pelo cineasta indie das antigas Hal Hartley. Mas, apesar dos protagonistas fazerem parte da mesma família e serem figuras importantes no terceiro episódio, é claramente possível desfrutar do último filme sem ter visto os anteriores – embora a curiosidade agora seja maior por conhecê-los.
 
Hartley filma com graça e certo tom de comédia farsesca a história um tanto nonsense de Ned (Liam Aiken). O pai e a mãe do rapaz são os protagonistas dos filmes anteriores, e, por ter sido abandonado pelo progenitor, Ned resolve sair em busca do pai a fim de matá-lo, também porque ele credita ao pai o fato da mãe estar atualmente na cadeia condenada por terrorismo.

Trata-se de um conto de personagens excêntricos em busca de concretizar planos não muito sólidos. Quem acaba roubando a cena é a jovem Susan (Aubrey Plaza), garota um tanto desequilibrada que cruza o caminho do rapaz, também ela cheia de planos de vingança e mais conectada com a história daquela família do que se imagina. 

Além do humor negro descabido que rende boas risadas, o roteiro do filme é dotado de certa agilidade ao passear claramente por tramas cheias de pontas e dados soltos que vão fazendo sentido no decorrer da narrativa muito fluidamente. O filme ainda consegue misturar o road movie com o ritmo de thriller, tudo amarrado pela direção segura de Hartley. Uma bela surpresa nesse festival.