sábado, 26 de março de 2016

Embates armados

Batman vs Superman: A Origem da Justiça (Batman v Superman: Dawn of Justice, EUA, 2016)
Dir: Zack Snyder


Muito se alardeava sobre esse embate épico de dois grandes super-heróis do imaginário pop-nerd. Na verdade, a junção de universos distintos de personagens saídos das páginas de histórias em quadrinhos já não é mais novidade depois de Os Vingadores, por exemplo. A ideia aqui é claramente a de colocar em curso a formatação da Liga da Justiça nas telas do cinema, proposta de reunir numa mesma história heróis da DC Comics em sintonia com o mesmo projeto realizado pela Marvel.

A questão é que para chegar a isso, Batman vs Superman: A Origem da Justiça precisa investir no embate entre os dois então grandes justiceiros e defensores da paz na Terra, com a tentativa de sustentar a ideia de um considerar o outro um inimigo, algo que funciona muito pouco. O filme ainda aposta na velha discussão de quem seria o herói que o mundo precisa, quem estaria ali para realmente proteger e evitar os perigos do desconhecido e aplicar as leis do homem, enquanto os personagens defendidos por Ben Affleck e Henry Cavill estranham-se mutuamente.

O filme, aliás, já começa com os dois personagens coexistindo como heróis, temidos e adorados, ao mesmo tempo salvadores, mas que atraem riscos à humanidade. O filme é como uma continuação de O Homem de Aço, tentativa não tão bem sucedida de reanimar a franquia do Superman no cinema, lançado em 2013, comandada pelas mãos do mesmo diretor aqui, Zack Snyder. O Batman é injetado quase como que aleatoriamente nesse novo universo de disputas que molda o filme.

Dois universos tão distintos, cada qual com seus elementos e personagens já conhecidos – do mordomo Alfred (Jeremy Irons) ao vilão Lex Luthor (Jesse Eisenberg), passando pela jornalista e par romântico de Clark, Lois Lane (Amy Adams) – precisam se encontrar aqui. Talvez por isso o filme tem que alongar tanto a sua primeira metade na tentativa de harmonizar o conjunto de possibilidades que tem nas mãos, das muitas tramas que envolvem o roteiro, às vezes de forma abrupta e mal posta, ao passo que ensaia o confronto entre os dois, especialmente ao alimentar o ódio do Batman pelo Superman.



E o maior desconforto do projeto é justamente esse: o de se apoiar numa disputa de poderes e autorrelevância imposta baseada em razões difusas na relação dos personagens entre si. Nesse contexto, a ideia de justiça ganha nuances pouco desenvolvidas, embora o ensaio esteja lá, especialmente na figura da senadora Finch (Holly Hunter) – e sem dúvidas essa é uma seara em que os Batmans de Christopher Nolan souberam explorar muitíssimo bem. Aqui, ela surge simplesmente como pretexto para dar forma à pancadaria. O tom realista tão defendido nos filmes anteriores do homem-morcego dá lugar a um enredo em que interessa puramente a medida de força dos dois heróis, acima mesmo das noções de segurança e defesa do povo.

Snyder comanda esse encontro tão aguardado apostando nos mesmos excessos, visuais e de violência gráfica, que emprega em cenas de luta já vista em muitos de seus filmes anteriores. Por isso, não precisamos poupar este aqui de ser visto com o propósito evidente de aplacar o fetiche dos fãs em colocar dois grandes personagens dos quadrinhos digladiando-se entre si. Ainda assim, o filme melhora mesmo na terça parte quando um perigo maior apresenta risco para todos e os enfrentamentos fazem melhor sentido, ainda que tudo seja possível através de quilos de CGI e efeitos especiais. São por vezes questionáveis, o que lança o filme a outro nível de abstração do mundo fantástico e poderoso dos heróis com super poderes e habilidades especiais.

Se há a cereja do bolo na entrada triunfal da Mulher Maravilha (Gal Gadot) em momento chave do filme, há também o histrionismo afetado do Lex Luthor de Eisenberg como vilão caricato. Batman vs Superman demora bastante para dizer a que veio, acerta em alguma medida quando deixa claro que tudo que veio antes funciona mais como pretexto do que como afirmação de uma trama crescente. Há muitos filmes assim, na verdade, mas aqui fica tudo muito evidente, quando não confuso, e o melhor mesmo é aproveitar os momentos mais intensos do desfecho que fazem valer o filme.

quarta-feira, 23 de março de 2016

Mostra de Tiradentes – Parte VI


Animal Político (Idem, Brasil, 2016) 
Dir: Tião


Filme dos mais irreverentes e irônicos, com toques de nonsense, Animal Político é um belo e estimulante corpo estranho na programação da Mostra Tiradentes. O cineasta pernambucano Tião elege uma vaca como protagonista de uma jornada existencial do animal diante do mundo e do seu lugar nesse mundo como indivíduo – apesar de estabelecer a própria discussão de que indivíduo seria esse tão peculiar animal que pensa e age como um humano.

A vaca vai à academia, come em bons restaurantes, vai à balada, joga vôlei. Vive uma vida pacata de classe média, sem percalços. Uma voz off dá conta de expor os pensamentos do animal, sendo ele dotada de uma inteligência média notável. Nesse sentido, há mesmo uma antropomorfização do animal – que ganha mudança na terça parte do filme –, passando a abrir possibilidades várias de metáforas sobre a condição existencial do ser.

Isso porque, na reflexão que faz de sua vida e de sua trajetória até então, a vaca sente que algo está faltando, uma inquietação, uma sensação de vazio que a coloca em crise diante daquela vida pacífica em que tudo parece funcionar em ordem. Assim, Animal Político abre-se para o caos de ser quem se é, ainda que nunca cheguemos a entender com exatidão a ontologia de si mesmo. É a partir dessa perturbação interna que o filme acompanha a personagem numa procura, inicialmente, pelo conhecimento, pela informação que a faria compreender os porquês que a afligem para, depois, alcançar o estágio de iluminação e total entendimento de si.

Certamente que toda essa busca filosófica é retratada da forma mais irônica possível, repleto de humor rápido e perspicaz que o filme injeta a cada reflexão proferida pelo animal. O filme trabalha no registro do nonsense, mas nunca se apaixona por ele. Nunca se conforma – assim como seu personagem – com aquilo que se forma diante de si. Quando a vaca parte para o deserto, para o que ela chama de “natureza selvagem”, como forma de se isolar do mundo e buscar sua essência animal, o filme também lhe (nos) prega peças.

Se há ali um estranhamento pelo próprio conceito da história, o filme não se prende a um lugar de conforto e apresenta outras possibilidades à narrativa. Daí que causa uma estranheza interessante quando surpreendentemente o filme rompe com a trama da vaca e nos joga em outro tempo, nos apresentando à curiosa sequência intitulada “A pequena caucasiana” – a grosso modo um digressão sobre o passado de formação do povo e da História do Brasil e América Latina, obviamente com claros toques de irreverência, inquietude e desfaçatez, evidentes nos pensamentos dessa personagem altiva e peculiar que outrora desembarcou nessa terra inóspita.

Essa sequência, apesar da forma abrupta como surge, nos interpela sobre as marcas históricas de nossa formação por um motivo que talvez seja a tentativa de oferecer um princípio de resposta às inquietações existenciais que rondam o filme: podemos nunca chegar à conclusão do que realmente somos, do que é a nossa essência ou de algo que explique o sentido de nossa existência – como bem coloca o ice-borg, espécie de oráculo cibernético que a vaca encontra no deserto, citando Buda: “A vida não é uma pergunta a ser respondida, é um mistério a ser vivido”; ainda assim, um pouco daquilo que somos passa pelo entendimento do como e do por que chegamos até aqui, ou seja, de como nossa formação histórica pode conferir pistas sobre quem sou eu e o que eu faço aqui nesse lugar nesse momento.

Mas essa sequência serve também para incluir um elemento que será fundamental para a jornada da vaca: o livro de normas da ABNT, legado a nós pela pequena caucasiana e encontrado pela vaca no deserto em suas buscas existenciais. Mais uma vez o alerta de ironia soa forte no filme sendo a ABNT essa representação instituída e reconhecida da regra e do rigor. É a partir daí que o filme entra em outro registro, ainda mais estranho porque a vaca retoma seus rumos de busca e peregrinação transfigurado agora num animal bípede.

É certo que existe certa ingenuidade nessa transformação, sendo a ABNT espécie de detentora de respostas às coisas do mundo – ela funciona mais como forma, como organização do pensamento e do conhecimento, não como conteúdo. De fato, a personagem continua sua busca por respostas mesmo depois de encontrada essa joia do deserto. 

E é como todos esses elementos e tantos outros detalhes que Animal Político divaga sobre seu próprio eixo de criação narrativa, oferecendo, ao sabor da dúvida e da graça, uma jornada de inquietação tanto quanto de interesse pelo que vemos surgir no caminho do animal. Tião brinda o espectador com irreverência e humor, ainda que suas muitas ideias precisem passar pelo crivo do tempo para atestar sua real força, ou antes estabelecer-se como peça de chiste. Enquanto isso, sonhamos com a possibilidade do conhecimento pleno.

terça-feira, 22 de março de 2016

Mostra de Tiradentes – Parte V


Jovens Infelizes ou Um Homem que Grita não é um Urso que Dança (Idem, Brasil, 2016)
Dir: Thiago B. Mendonça


Grande vencedor da Mostra de Tiradentes 2016 em fins do último janeiro na cidade histórica de Minas Gerais, Jovens Infelizes ou Um Homem que Grita Não é um Urso que Dança é uma bela carta de princípios libertários, anárquicos e de enfrentamento através da arte. O filme abriu a edição da mostra que acontece agora na capital paulista. Oportunamente, ao apresentar o filme no evento, o diretor Thiago B. Mendonça leu uma carta intitulada “Contra o fascismo”, manifesto contundente e necessário nesses tempos atuais de embates políticos nebulosos que o Brasil vive.

Essa verve militante e de tomada de posição, assumidamente esquerdista, está claramente presente na postura do filme diante do mundo, um tipo raro de projeto que abusa da performance e da arte livre para dar corpo a um discurso politizado. Mas mais que isso, o filme acaba compondo o retrato de um estilo de vida seguido por almas inquietas, ainda que sejam confrontados com frustrações, dúvidas e derrotas.

O filme acompanha uma trupe de teatro amadora e seu processo de criação e performatização de discursos que se querem anárquicos, mobilizadores. Vivem como se fizessem parte de uma experiência coletiva de entrega, criação e partilha – de seus bens, de seus corpos, de sua luta. Fazem de suas inquietações políticas e sociais matéria-prima para compor sua arte, seja ela apresentada nos palcos de pequenos teatros ou nas ruas de São Paulo, em embate direto com o povo que passa apressado.

Com narrativa e montagem truncada, Jovens Infelizes mira em certo experimentalismo formal, ainda que seja facilmente assimilável como história e conceito, sem abrir mão do inesperado e do estranho, provocando o espectador a compor o mosaico de vida daqueles personagens num fluxo próprio de vida, com começo e fim, apesar de embaralhados. Ao mesmo tempo em que apresenta perfil que se quer radical na textura do filme, também pode soar um tanto redundante nas ações e comportamentos dos personagens. No entanto, o filme é dono de momentos de pulsão de imagem, que vai do descontraído ao iconoclasta, sem querer chamar tanta atenção para si mesmo, e sem nunca macular o espírito irreverente e desafiador – mais ideológica do que formalmente – com o qual é facilmente identificado.

O filme também não se furta de autocrítica. Em dado momento um dos personagens faz um gesto obsceno numa estátua de praça, se dizendo ali adepto de “radicalização, enfrentamento”, ao que é contraposto por um homem e duas garotas, possivelmente prostitutas, que o verdadeiro enfrentamento está nas ruas, na rotina de todas as noites que as meninas vivem. Com isso, Jovens Infelizes e seus realizadores parecem ter plena consciência do lugar que ocupam com seu discurso inflamado, mas sem tornar isso uma verdade sem incongruências e conflitos internos que colocam os personagens em xeque, também em confronto entre si. 

O filme abre com um número circense, de tons grotescos: uma mulher sem braços nem pernas, sentada numa cadeira, vestida como uma cigana, com trejeitos insinuantes, canta olhando para a câmera: “Vamos explodir/explodir/Para o mundo ressurgir/ressurgir/Pra começar de novo/é preciso destruir”. Os versos são extremamente felizes ao enfatizar, de modo muito apropriado, o princípio combativo e radical daquilo que eles fazem como pulsão artística. Assim, como carta de princípios, o filme apela – ou reverencia – quem abandona velhos princípios para fazer “arte de verdade”. É uma bela defesa, em prol de algo que vibra na tela, mesmo que para muitos só acontece de fato naquele momento em que brilha na tela.