Café com Canela (Idem, Brasil,
2017)
Dir:
Ary Rosa e Glenda Nicácio
“Olhem
para mim, eu sou de Cachoeira”. Assim começa o texto de apresentação de Glenda
Nicácio, uma das diretoras do longa Café
com Canela, dirigido em parceria com Ary Rosa. O filme celebra afetos e
encontros e teve uma recepção mais do que calorosa do público que lotou o Cine
Brasília.
O
filme está embebido do Recôncavo baiano. Glenda e Ary são egressos do Curso de
Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo (UFRB) e fundaram ali
uma produtora. Café com Canela é o
primeiro longa da dupla e, caminho dos mais naturais, reflete a cultura e o cotidiano
do interior baiano, tão marcados por traços de ancestralidade que rodeiam cidades
como Cachoeira, São Félix e Muritiba.
Acompanhamos
a história de duas mulheres marcadas pelo luto. Margarida (vivida pela atriz do
Bando de Teatro Olodum, Valdinéia Soriano) vive reclusa em casa mesmo depois de
passado tanto tempo da morte de seu filho pequeno; já Violeta (Aline Brunne, em
seu primeiro trabalho como atriz) mora com o marido e dois filhos, cuida da avó
adoentada e batalha para vender de porta em portas as coxinhas que ela mesma
faz.
Até
demora um tempo para que essas personagens se encontrem na trama linear do
filme, tempo aproveitado para se construir na tela um espírito de convivência
interiorana, além de apresentar outros personagens, como o médico Ivan (Babu
Santana) que vive com um companheiro mais velho que ele (Antônio Fábio); e
também a extrovertida Cidão (Arlete Dias), um dos alívios cômicos do filme.
Mas
é quando Violeta e Margarida se encontram, por acaso, e descobrem que a mais
nova foi aluna de Margarida no colégio, o filme ganha outra cadência. Violeta
enxerga na dor do luto de Margarida uma barreira a ser quebrada, um modo de
libertação necessário, tarefa que ela toma para si com afinco. Nasce uma
amizade e com ela uma celebração da vida, com todos os seus percalços.
É
muito curioso olhar para um filme de pequeno porte como esse, em termos de
produção, que chega à mostra competitiva do Festival de Brasília apostando no
risco da entrega a uma história que vende afetuosidade, mais do que tudo. Há
pontos de fragilidade visíveis na narrativa: os diálogos por vezes marcados
demais, tangenciando certo suingue caricato da prosódia baiana, e que se
escoram em falas comuns ou marcadas de ingenuidade – o diálogo sobre o cinema
ou o “brinde à vida”.
Em
outros casos, as opções de encenação apontam para vícios de diretores
iniciantes, como a divisão da tela em espacialidades diferentes, as cenas
iniciais que são, na verdade, tomadas do fim da história, ou um plano subjetivo
de um cachorro que surge inesperadamente.
Mas
existe também, nessas escolhas, um ímpeto de dar a cara a tapa e de não se
acanhar perante tais procedimentos quando eles parecem mesmo sinceros – e
nenhum deles comprometem o desenrolar do filme –, o que poderia ser visto
também como exigências por um cinema formalmente moldado nos ditames clássicos
padronizados. O filme prefere abraçar um romantismo naïf porque o sentido do
gesto narrativo está a serviço daquilo que a história representa (mais uma vez,
o lugar da afeição e da cumplicidade entre os personagens).
O
filme ganhou outro respiro no Festival de Brasília por conta das discussões
sobre a representação de personagens negros e escravos, especialmente pelo
filme “Vazante”, de Daniela Thomas, apresentado dias antes e que desceu muito
mal com um tipo de abordagem ainda datada sobre corpos negros expostos em cena.
Café com Canela, por outro lado,
oferece uma resposta muito imediata e direta e aponta para um tipo de
tratamento outro, através de uma subjetividade rica de personagens
costumeiramente relegados a uma posição secundária nos filmes.
A
diretora Glenda Nicácio já havia antecipado essas questões na apresentação
quando disso que o filme falava de “personagens urgentes, carregando consigo
vozes ancestrais que ainda aguardam seu momento de falar. Ou melhor, aguardava,
porque agora é hora”. E o que se vê em tela é a potencialidade de sujeitos e
histórias há muito marginalizados no processo de constituição do cinema
brasileiro. É o cinema do Recôncavo baiano pulsando e apontando para caminhos diversos,
de contestação via afetos, ainda que o filme bambeie sobre suas próprias
limitações, mas equilibrando suas forças de mobilização.