quinta-feira, 28 de abril de 2016

É Tudo Verdade – Ranking geral


Bons dias e noites foram as que eu acompanhei pela primeira vez o É Tudo Verdade, o maior festival para o formato na América do Sul. Programação variada, com curadoria rigorosa e atenta ao que de interessante tem sido feito em termos de fabricação do real através do cinema. Abaixo, ranking com todos os filmes vistos nessa edição:


Longas e médias-metragens


Tudo Começou pelo Fim (Luis Ospina, Colômbia, 201) ****
Allende, Meu Avô Allende (Marcia Tambutti Allende, Chile/México, 2015) ****
O Futebol (Sergio Oksman, Brasil/Espanha, 2015) ***½ 
Jonas e o Circo sem Lona (Paula Gomes, Brasil, 2015) ***½
Chicago Boys (Carola Fuentes e Rafael Valdeavellano, Chile, 2016) ***½
Um Caso de Família (Tom Fasseart, Holanda/Dinamarca, 2015) ***½
Nuts! (Penny Lane, EUA, 2016) ***½
Anos Claros (Frédéric Guillaume, Bélgica, 2015) ***½
Claude Lanzmann: Espectros do Shoah (Adam Benzine, Canadá/Reino Unido/EUA, 2015) ***½
Fogo no Mar (Gianfranco Rosi, Itália/França, 2016) ***
Gabo: a Criação de Gabriel García Márquez (Justin Webster, Espanha/Reino Unido/ Colômbia/França/EUA, 2015) ***
Galeria F (Emília Silveira, Brasil, 2016) ***
Paciente (Jorge Caballero Ramos, Colômbia, 2015) ***
Gigante (Zhao Liang, China/França, 2015) ***
Manter a Linha da Cordilheira sem o Desmaio da Planície (Walter Carvalho, Brasil, 2016) **½
Cidadão Rebelde (Pamela Yates, EUA, 2015) **½
O Homem que Matou John Wayne (Diogo Oliveira e Bruno Laet, Brasil, 2016) **
Catástrofe (Alina Rudnitskaya, Rússia, 2016) **
No Limbo (Antoine Viviani, França/Canadá/Irlanda/Espanha/ EUA/Reino Unido, 2015) **
As Incríveis Artimanhas da Nuvem Cigana (Paola Vieira e Claudio Lobato, Brasil, 2016) *½


Curtas-metragens


Buscando Helena (Roberto Berliner e Ana Amélia Macedo, Brasil, 2016) ****
Fora de Quadro (Txai Ferraz, Brasil, 2016) ***½
Praça de Guerra (Edi Junior, Brasil, 2016) ***
Aqueles Anos em Dezembro (Felipe Arrojo Poroger, Brasil, 2016) ***
Sem Título # 3: E para que Poetas em Tempo de Pobreza? (Carlos Adriano, Brasil, 2016) **½
O Oco da Fala (Miriam Chnaiderman, Brasil, 2016) **½
Abissal (Arthur Leite, Brasil, 2016) **½
Vida como Rizoma (Lisi Kieling, Brasil, 2016) **½
A Culpa é da Foto (Eraldo Peres, André Dusek e Joédson Alves, Brasil, 2016) **½
A Visita (Pippo Delbono / França, 2016) **


É Tudo Verdade – Parte V



O Futebol (Idem, Brasil/Espanha, 2015)
Dir: Sergio Oksman


Questões de família, especialmente aquelas com fissuras e cicatrizes não curadas, marcaram forte presença dentre os filmes desta edição do É Tudo Verdade – obras como Allende, Meu Avô Allende, Anos Claros e Um Caso de Família, este último vencedor da competição internacional de longas. Também o ganhador dentre os brasileiros em concurso escancara com muita força os dramas pessoais de seus realizadores: O Futebol é um filme duro e potente enquanto registro de uma realidade não latente, mas estanque.

Dirigido pelo brasileiro radicado na Espanha Sergio Oksman, o filme é também uma espécie de diário íntimo de reencontro, embora com mais sequidão do que se espera de uma narrativa pessoal e no âmbito familiar. Há mais de 20 anos que o diretor não via o pai. Quando Oksman tem a oportunidade de vir a São Paulo durante a Copa do Mundo de 2014, resolve retomar o contato com uma proposta: filmar o reencontro enquanto eles acompanham os jogos da Copa.

Simão é um homem quase impenetrável. Rechaça qualquer tipo de entrada que possa significar um acordo com o passado, dispensa qualquer forma de expor velhas feridas e de fazê-las cicatrizar – é difícil mesmo entender até que ponto, para ele, essas questões são realmente fundamentais ou já águas passadas, ativas ou abrandadas. Oksman, com equipe reduzidíssima, tenta dar conta de revelar a rotina do pai e de se inserir nesse contexto como elemento provocador.

É natural pensar que estaremos diante de uma história de reaproximação, mas o filme é um retrato de uma dificuldade. Dificuldade de conversa franca, dificuldade de afeição – do modo caloroso como pensamos uma relação pai e filho –, dificuldade de ultrapassar a barreira do futebol. Simão consegue falar sobre escalações passadas da seleção brasileira, relembra lances e partidas de jogos históricos, mas na esfera afetiva/familiar é uma negação para lembrar. Ou, antes, quer ser uma negação nesse aspecto, recusa a lembrança e a prestação de contas com o passado.

Com isso, o diretor compõe um retrato rígido do encontro desencontrado, preferindo o os longos planos estáticos, ou aqueles dentro do carro em movimento, que conferem rigor formal ao filme, ao mesmo tempo que reflete justamente a dificuldade de interação entre pai e filho. O futebol seria essa zona confortável em que a comunicação acontece – e o filme é capitulado a partir dos jogos da Copa –, como se aquilo fosse um pretexto, muito embora Simão pareça sempre no controle das situações, seja das conversas ou da sua própria movimentação no filme. Ele se recusa, por exemplo, a trocar um dia de trabalho para ir ao estádio ver um dos jogos, o que rende um dos ótimos momentos do filme em que os dois, de carro, estacionam num lugar perto do estádio onde só é possível ouvir o barulho e a reação da torcida. O Futebol é um gesto documental sobre uma relação possível entre esses dois homens, mas quase impossível no plano concreto. 

É mesmo um campo escorregadio, de difícil penetração, por onde o filme trafega. Oksman, antes de diretor-personagem de um filme, é o filho que busca o confronto amigável, respostas, motivos, alguma verdade, mas encontra uma figura paterna pouco disposta, em certo sentido mesmo embrutecido, mas ainda assim há um laço afetivo a que eles se apegam. Não parece haver repulsão entre os dois, mas também há empecilhos para uma atração. Tão perto e tão longe. É a pulsão da imagem que os aproxima, e é com ela que eles se despedem.

quinta-feira, 14 de abril de 2016

É Tudo Verdade – Parte IV


As Artimanhas da Nuvem Cigana
(Idem, Brasil, 2016) 
Dir: Paola Vieira e Claudio Lobato


O filme de abertura do É Tudo Verdade no Rio de Janeiro tem tudo a ver com a cidade, pois foi lá que floresceu, na década de 1970, um grupo de amigos artistas em torno de uma espécie de coletivo denominado Nuvem Cigana. As Incríveis Artimanhas da Nuvem Cigana, de Paola Ribeiro e Cláudio Lobato, tenta dar conta de uma época efervescente, mas tropeça na sua própria vontade de traduzir algo de muito difícil que é a experiência artística-existencial de um grupo que vivia e produzia de modo muito particular.

É um documentário mais tradicional que explora a reunião do coletivo que, dentre outras coisas, pregava o amor livre e a arte utópica. Havia poetas metidos a jogadores de futebol, escritores, pintores e desenhistas metidos a músicos, ao mesmo tempo hippies, antenados e alienados da vida política conturbada de um Brasil em regime militar.

Uma pena que o filme assuma postura um tanto careta ao retratar essa história, mais valendo como registro do que como construção narrativa. Essa é prejudicada por uma montagem que vai e volta nos temas e questões que envolvem a vida do grupo, sem freio, atropelando e passando como que sem apuro por momentos e situações realmente interessantes, mas que carecem de profundidade, de mais atenção.

Das ricas imagens de arquivo e depoimentos nem sempre inspirados dos principais integrantes do coletivo, vivos ainda hoje, o filme consegue extrair um painel curioso não só de um período histórico especificamente localizado, mas de uma maneira original e sincera de vivenciá-lo. Falta talvez o que abunda em Tudo Começou pelo Fim, do colombiano Luis Ospina, visto aqui no É Tudo Verdade: mais apego, mais dedicação, mais vontade de remexer e esmiuçar um baú de memórias e práticas que compõem o modo de experienciar a vida dessa coletividade.


Anos Claros (Les Années Claires, Bélgica, 2015)
Dir: Frédéric Guillaume
 
A partir do filão de documentários em primeira pessoa, esses em que os próprios cineastas expõem partes e aspectos de sua vida particular, delícias e cicatrizes pessoais,
Anos Claros consegue estar entre o autobiográfico e o narcisismo, mas com uma leveza tão graciosa e íntima que ganha o espectador pelo tom e carisma dos personagens.

O cineasta belga Frédéric Guillaume resolveu expurgar seus demônios pessoais – ou, num sentido mais amplo, seu próprio amadurecimento – num filme que se aproxima de um diário intimista. O longa é todo construído a partir de imagens caseiras que o diretor realizou ao longo de dez anos, a começar com a gravidez de sua esposa da única filha do casal.

Depois do nascimento, no entanto, a paixão e o lar feliz sofrem um abalo e Frédéric vai se confrontar com curvas inesperadas no relacionamento com a esposa. Por se tratar de algo tão pessoal, um tipo de história não necessariamente excepcional – na verdade ela é muito comum –, sua força está na maneira como expõe com graça e um tantinho de poesia visual um período de muitos anos e emoções conturbadas. 

É possível encontrar no filmes uma série de reflexões sobre a vida, a solidão, o amor e o fim do amor, também sobre o amor incondicional e as possibilidades de continuar gostando de alguém. Mas tudo isso aparece aqui sem o peso de uma discussão formal, sem o palavreado pomposo do cinema francês. Tudo isso simplesmente atravessa a trajetória de Frédéric e, mesmo na dor, o diretor traduz tudo muito bem a partir das imagens que dispõe.

terça-feira, 12 de abril de 2016

É Tudo Verdade – Parte III


Fogo no Mar (Fuocoammare, Itália/França, 2016)
Dir: Gianfranco Rosi

 
Tema mais atual, relevante e explorado não há no cinema europeu de hoje do que esse que atravessa
Fogo no Mar: os dramas dos refugiados políticos que buscam abrigo nos países da Europa. O filme do italiano Gianfranco Rosi abriu o É Tudo Verdade, em São Paulo, e venceu há poucos meses o Urso de Ouro no Festival de Berlim. É a primeira vez que um documentário conquista o prêmio máximo de um dos mais prestigiados festivais de cinema do mundo. E Rosi já havia feito o mesmo ao vencer, em 2013, o Festival de Veneza com outro documentário, Sacro GRA.

Fogo no Mar aporta na ilha italiana de Lampedusa, na Sicília, que acabou se tornando um grande reduto para os imigrantes africanos e do Oriente Médio que buscam chegar em solo europeu. Na tentativa de atravessar o mar, muitas embarcações não conseguem completar a viagem e precisam pedir pouso na ilha.

A câmera de Rosi é observacional, não há entrevistas. No melhor estilo cinema direto, o filme observa o dia a dia na ilha, talvez até menos o dos diversos refugiados que não param de chega em barcos lotados e mais as famílias e moradores locais que vêm o lugar se transformando em seu reduto populacional.

Há uma escolha de Rosi em nunca espetacularizar os conflitos pessoais dos imigrantes, nunca explorar as mazelas sofridas por eles em busca de explicações ou respostas para esse impasse político. É uma opção que tira o peso dramático da situação, sem deixar de dignificar aquelas pessoas – as cenas em que ouvimos, pela radiopatrulha, os apelos dos imigrantes nos barcos em alto mar são muito impactantes.

Mas esse mesmo tipo de preferência narrativa acaba por minimizar as potências que o filme tem em mãos, sendo a ilha um microcosmo muito rico da situação geral de uma Europa contemporânea. O passeio que o diretor faz por entre a rotina de algumas pessoas ali ganha pouca dimensão concreta na consonância com o tema do filme. Há, por exemplo, um garoto, morador local, filmado durante as brincadeiras e andanças pelos campos e praias; parece que ele ganha mais tempo em tela do que os próprios refugiados, e ainda assim o filme não consegue estabelecer uma relação tão clara com aquilo que parece mais pulsante naquela localidade ­– o que nos faz pensar que Fogo no Mar não é um filme sobre refugiados, mas sim sobre uma ilha cuja particularidade é receber, involuntariamente, esses refugiados. Mas mesmo assim, o filme não parece dar conta disso.

É possível mesmo discutir até que ponto alguns filmes têm vencido grandes prêmios em festivais por suas qualidades intrínsecas ou somente por estarem tematicamente em consonância com os acontecimentos que mobilizam o público atualmente – e premiar filmes assim não deixa de significar uma postura política assumida diante do mundo de hoje. Antes deles, o fraquíssimo Dheepan: O Refúgio, de Jacques Audiard, venceu a Palma de Ouro em Cannes, por exemplo. 

De qualquer maneira, para além das premiações, Fogo no Mar parece ser fiel ao tipo de cinema a que Rosi está filiado no campo do documentário, talvez sem exigir de si próprio um estudo formal daquela questão. Ainda assim, se em alguns pronunciamentos Rosi disse ter ficado muito abalado com o tempo vivido na ilha, essa dimensão nunca aparece a contento na tela, para além da possibilidade de testemunhar como essas mudanças sociais tem se dado em alguns lugares do globo.

segunda-feira, 11 de abril de 2016

É Tudo Verdade – Parte II


Jonas e o Circo sem Lona (Idem, Brasil, 2015)
Dir: Paula Gomes


Paula Gomes e equipe percorreram o Estado da Bahia pesquisando e mapeando os circos que se proliferam no interior. Numa desses encontros, conheceu Jonas e sua paixão pelo circo. Quando o garoto vai morar na zona metropolitana de Salvador, distancia-se do circo em que vivia e passa a construir, no quintal de casa, seu próprio espetáculo.

Jonas e o Circo sem Lona é o retrato dessa pulsão juvenil que faz parte mesmo do sangue do garoto – sua família tem longa tradição no circo. Ele se diverte ao dar forma a seu espetáculo, ao preparar os números e ensinar os amigos a fazê-los, gosta também de abrir as portas para as pessoas do bairro pobre onde mora e agradar o respeitável público. Mas Jonas está crescendo e outros desafios se impõem ao garoto: estudar, ser alguém na vida, almejar algo melhor. O filme encontra Jonas dividido entre o sonho e a vida concreta, dilema que lhe perturba, observado pelo olhar atento do filme.

A diretora Paula Gomes não se deixa deslumbrar pela simples vontade do garoto, ainda que reverencie o misto de inocência com seriedade com que ele leva adiante seu desejo. Filma não só as preparações no quintal do garoto, mas adentra a rotina da família, aproxima-se da mãe e avó do garoto, acompanha Jonas na escola. Aliás, a mãe é peça fundamental aqui porque é ela a responsável por acordar o garoto e chamá-lo para o mundo real, é quem mais lhe cobra uma postura realista – e, consequentemente, adulta.

Jonas e o Circo sem Lona sabe ser cru, árido, e mesmo duro, ao não se esquivar dos atritos que tiram    – há  uma cena particularmente forte que envolve o depoimento da professora do colégio de Jonas não só sobre os passos do garoto como sobre o próprio filme. Ao mesmo tempo, a obra consegue ser terna e sensível ao se interessar não pelo circo em si, mas pelo brilho no olhar de Jonas quando está imerso em seu mundo de fantasia e atrações.

Há uma proximidade afetuosa entre a diretora, Jonas e sua família que reflete a maneira como o próprio filme se posiciona diante das questões que se impõem ao garoto, fazendo de Paula também uma personagem ali. Mesmo que esteja sempre fora de quadro, ela fala e se dirige diretamente a todos em cena, sempre do modo mais carinhoso – a mãe de Jonas chama-a de “Paulinha”, por exemplo. Esse aspecto doce não deixa de esconder a posição da diretora em prol do menino – o que fica claro, por exemplo, na visita ao circo do tio de Jonas, lugar onde que ele adoraria morar (e se enamorar), algo como uma possível opção para ele –, embora Paula saiba entender e respeitar as forças contrárias que se processam ali no âmbito familiar. Em alguns momentos, porém, as observações da diretora podem soar um tanto ensaiadas demais – assim como do filme não escapam momentos de maior encenação -, como se já previstas anteriormente, mas sempre abrigadas no campo do afeto.

É muito fácil falar de circo e apelar para um caminho romântico em que noções como os de “sonho”, “magia”, “imaginação” e “infância” surjam como protótipos intrínsecos à essa experiência e vivência, de quem faz o espetáculo e de quem o assiste, uma espécie de relação óbvia. Pois Jonas e o Circo sem Lona beira essas questões, mas tem uma bússola moral que não desvirtua o filme em prol de um pieguismo simplista: o aspecto da vida real, esse que bate à porta e cobra do sujeito uma postura no mundo. O filme sabe que o verdadeiro espetáculo que não pode parar é o de crescer e amadurecer.

domingo, 10 de abril de 2016

É Tudo Verdade – Parte I


Tudo Começou pelo Fim
(Todo Comenzó por el Fin, Colômbia, 2015)
Dir: Luis Ospina


Um homem sexagenário recebe notícias de complicações de um tumor estomacal depois de outros problemas graves e sucessivos de saúde. Esse homem é o próprio diretor do filme, o veterano cineasta colombiano Luis Ospina. Com projeto de rodar um novo trabalho, passa a correr contra o tempo para finalizar o projeto que toma outro viés, partindo da própria condição de saúde do diretor.

A obstinação de Ospina pelo filmar está inscrita desde o início: com uma câmera simples de celular e com a ajuda da companheira que lhe segue, ele registra tudo, mesmo os passos mais corriqueiros e os mais tenebrosos nos quartos e corredores do hospital. Mas é só o pontapé para o baú de memória que o filme abre. E o que parecia uma história sobre si mesmo ou sobre a doença e as agruras que isso causa num senhor de sua idade, passa a ganhar outra dimensão.

Tudo Começou pelo Fim, em primeira medida, é um filme de uma generosidade gritante. A luta pessoal de Ospina contra a doença fatídica cede lugar ao rico mosaico que ele faz de sua vida, em retrospecto, a partir de fins dos anos 1960. E isso significa, de modo imediato, falar de seus amigos, de suas jornadas e da união de um grupo que viveu junto os anos de formação pessoal e profissional em torno do cinema, do amor pela arte, do vigor por aquilo que eles amavam e no qual acreditavam.

Para tanto, o cineasta não se apega a limites temporais. Com cerca de três horas e meia de duração, o filme vai apresentando, aos poucos, os amigos que fizeram parte daquela trupe, as pessoas que caminharam com Ospina o caminho do aprendizado e da descoberta do cinema como artefato de resistência, também do aprendizado emocional, do risco de se fazer cinema como eles faziam numa Colômbia sem grande tradição e vocação: de modo rústico, anárquico, contra convenções e regras caretas.

Essa abertura para com o retrato de sua geração que o filme promove é também ela um aspecto de surpresa, pois o filme assim vai se moldando. Detém-se nas figuras e episódios que marcaram a vida deles, e o faz com um carinho e admiração latentes. À vasta coleção de imagens de arquivo, seja dos registros amadores, dos próprios filmes realizados ou dos bastidores dessas produções, soma-se o registro de um almoço especial que reuniu esses mesmos personagens nos dias atuais, tal como um encontro especial de uma turma das antigas.

Ospina revisita lugares e memórias, suas e dos seus companheiros, e aproveita também para lhes tomar a palavra, resgatando momentos e situações vividas através das recordações do outro e ainda aproveita para acertar as contas com o passado e, em último esforço, homenageiam aqueles que já se foram. Resgata com isso tudo o espírito de uma época, além de repassar a própria história da Colômbia.

Não é pouca coisa. É na capacidade de articular todos esses elementos, de modo claro e preciso, que o filme encanta pela sinceridade e amor que transbordam da tela. A longa duração não mais incomoda porque há muita riqueza naquela(s) história(s) – e menos na narrativa em si que segue o estilo despojado de Ospina e seu grupo. No filme de um diretor que se volta tanto para si mesmo, Tudo Começou pelo Fim acaba por ser uma bela homenagem ao outro, que também é parte dele (de nós). Mesmo com a doença e o futuro incerto, a vida é uma festa.

sexta-feira, 8 de abril de 2016

É Tudo Verdade – 21º Festival Internacional de Documentários


E aqui estou eu pela primeira vez participando do prestigioso festival É Tudo Verdade, maior evento brasileiro voltado para o cinema documentário feito no Brasil e no mundo. Não é de hoje que o documentário tem servido como espaço de criação e formulação de novos caminhos para a linguagem cinematográfica.

O É Tudo Verdade, com esse nome que sempre me pareceu uma bela provocação, é esse lugar de celebração dos filmes que desafiam as brechas do real e fascinam por sua capacidade de ainda nos surpreender. O documentário vive.

Como de praxe, espero poder escrever aqui no blog sobre alguns filmes vistos durante a maratona, na medida do possível, além da cobertura para o jornal A Tarde. O site oficial do evento pode ser acessado aqui. 

E que venham os filmes e os desafios de se olhar para o real.

quinta-feira, 7 de abril de 2016

Estrondo silencioso

Mais Forte que Bombas (Louder Than Bombs, Noruega/França/ Dinamarca, 2015)
Dir: Joachim Trier


Depois de ter angariado maior reconhecimento com seu segundo longa-metragem, Oslo, 31 de Agosto, o cineasta norueguês Joachim Trier aposta mais uma vez no drama intimista em Mais Forte que Bombas. O filme marca a primeiro produção do cineasta em língua inglesa, com elenco multinacional, transição que muitos cineastas vem fazendo no mundo artístico (em Cannes, onde o filme estreou ano passado, outros diretores repetiram o feito, como os italianos Paolo Sorrentino e Mateo Garrone, respectivamente com A Juventude e Conto dos Contos, o mexicano Michel Franco, com Chronic, além do grego Yorgos Lanthimos apresentado seu The Lobster).

Se no filme anterior, Trier conseguia ser duro, ainda que conservasse o carinho por seu protagonista, indo pelo caminho do realismo mais cru, nesse novo filme as angústias continuam pairando de modo muito mais frontal a vida de uma família estilhaçada por um brutal acidente no passado.

Um pai (Gabriel Byrne) tem dificuldades em se relacionar com seu filho adolescente, o introspectivo Conrad (Devin Druid). O filho mais velho, Jonah (Jesse Eisenberg), volta para casa um tanto insatisfeito no casamento e encontra um lar dilacerado. Mas o fantasma que ronda esse núcleo familiar é a morte da mãe e esposa Isabelle (Isabelle Huppert), famosa fotógrafa que ganhou notoriedade denunciando os abusos contra refugiados na guerra do Afeganistão.

Na verdade, o filme lança mão de flashbacks que marcam os últimos dias da fotógrafa, sua relação com a família e mesmo o impacto das crueldades do mundo no seu estado psicológico. Outro agravante é que o jornalista e melhor amigo de Isabelle, Richard (David Strathairn), pretende escrever um artigo que discute os motivos da morte da fotógrafa, sendo que o filho mais novo desconhece a versão sobre um possível suicídio.

Joachim Trier trafega por esses conflitos com muito cuidado e olhar atento. São muitas as questões que confrontam todos os personagens, mas o roteiro vai lapidando cada um dos conflitos com cuidado e simpatia, sem atropelo. Trier parece disposto a levar adiante esse exercício de minimalismo com precisão, sem precisar dos momentos de catarse emocional, talvez sua marca maior nos filmes que dirigiu.

Em certa medida, o filme até se conforta nessa estrutura plácida, espécie de calmaria que esconde as dores e angústias dos personagens, prestes a explodir. Por vezes, isso se torna uma opção fácil para o diretor, e o filme perde um tanto da força emotiva em que se ampara. Quem consegue garantir a sustentação desse relevo emocional é o elenco, todos defendendo muito bem seus personagens.

Curioso pensar no título original do filme que perdeu um tanto de sentido na tradução para o português: “louder than bombs” sugere um simbolismo com a ideia de um som estrondoso, em contraponto ao intimismo dos sentimentos que não deixa de apontar para uma espécie de grito sufocado. Por dentro há inquietação nos personagens, mas sem a necessidade de explosão. 

Em alguns momentos, o filme investe na estratégia dos pontos de vista dos três personagens que relembram a mãe e esposa, mas o recurso logo é deixado de lado. O filme pouco ganha com isso, muito embora seja latente ali como cada um daqueles três homens evocam lembranças distintas, mas que estão encerradas num mesmo conflito familiar, num mesmo campo minado a ponto de estourar.

quarta-feira, 6 de abril de 2016

A cura pelo sonho

Cemitério do Esplendor (Rak ti Khon Kaen, Tailândia/Reino Unido/ Alemanha/França/Malásia/ Coreia do Sul/México/EUA/Noruega, 2015)
Dir: Apichatpong Weerasethakul 


Desde que passou a chamar atenção do mundo cinematográfico com filmes tão pessoais e etéreos, o tailandês Apichatpong Weerasethakul vem se mostrando fiel ao tipo de cinema que formatou ao longo da carreira, uma espécie de metafísica do mundo real e do irreal também, estilo que parece mesmo inimitável e, mais do isso, algo realmente novo no cenário do cinema contemporâneo. Cemitério do Esplendor dá continuidade a esse projeto, talvez com alguns toques diferenciais, mas ainda assim fascinado pelos mistérios ocultos do desconhecido.

É mesmo difícil descrever em poucas linhas o que acontece aqui em termos de trama. Há um hospital improvisado numa escola que recebe alguns soldados acometidos de uma síndrome de sono constante. Uma mulher (Jenjira Pongpas) chega ao local como voluntária e aproxima-se de uma médium (Jarinpattra Rueangram) que tenta se conectar com os espíritos dos soldados, por vezes acessando suas vidas passadas. Um deles parece chamar mais atenção da voluntária, o jovem Itt (Banlop Lomnoi), por não receber visitas de familiares.

O fascínio que o diretor consegue provocar com seus filmes aparece aqui também. Provém da capacidade de agregar elementos que remetem ao fantástico/sobrenatural/religioso de modo muito orgânico, mas nunca solene ou espetaculoso, muito por conta da aceitação do próprio filme e dos personagens a esse tipo de atmosfera. Chega a ser mesmo estoica a maneira como o filme não vacila em nenhum momento diante da estranheza das situações, diante do bizarro e do desconhecido que vai pontuando calmamente a história.

O curioso é que essa predileção pelo desconhecido fantasioso surge aqui de modo bastante naturalista, uma leve diferença de tom desse filme em relação aos anteriores do cineasta tailandês – nesse sentido aproxima-se mais de Rio Mekong e distancia-se de um Tio Boonmee, que Pode Recordar suas Vidas Passadas, por exemplo.

Nada de efeitos ou marcas visuais que indiquem algum relevo do fantástico. Mas ele está lá como se figurasse como parte da rotina cotidiana, ou como se se impusesse diante do mundo real, esse que coexiste com outro plano espiritual ou imaterial, também atemporal, por assim dizer. Exemplo maior disso talvez seja quando as duas deusas do santuário aparecem, em carne e osso, para a protagonista e lhe conta sobre o cemitério dos reis que existe no lugar onde agora se situa a escola-hospital. A própria ideia de uma misteriosa doença (?) do sono que acomete os soldados tem seu tom de inexplicável. Mas é a partir dessa fabulação (e de outras) que o filme engendra sua conceituação – em consequência, a possibilidade de tratamento dos soldados se dá através de uma máquina-luminária que traria bons sonhos a eles, ou seja, o remédio é um sono tranquilo, longe de pesadelos. Apichatpong propõem aqui a cura pelo sonho.

Até certo ponto a articulação desses elementos e personagens seguem o fluxo de ritmo cadenciado que é comum aos filmes do diretor e também aos poucos vamos nos familiarizando com esse universo de possibilidades ilusórias e sugestivas. No entanto, a sensação é que, a partir da segunda metade do filme, há certa fugacidade desse tom, e o filme torna-se menos atrativo como era em seu início. 

Ainda assim, em Cemitério do Esplendor, o mundo terreno e as angústias do hoje, mesmo que inscritos e atravessados pelas agruras do passado e pelos mistérios da vida e do além-vida humanos, são as referências palpáveis que o filme escolhe para traçar essa relação mística com algo sagrado – que ao mesmo tempo é também mundano, mas não menos maravilhoso.


sábado, 2 de abril de 2016

Encontrar a família

Nossa Irmã Mais Nova (Umimachi Diary, Japão, 2015)
Dir: Hirokazu Kore-eda


Relações familiares, em especial questões de parentesco e pertencimento familiar, já estavam inscritos no filme anterior do diretor japonês, o ótimo Pais e Filhos – de certa forma é algo muito forte na obra do cineasta. Kore-eda continua investindo nessa seara, agora aproximando irmãs e remexendo mais uma vez no baú de memórias e sentimentos pessoais de uma família

O cineasta tem refinado cada vez mais a capacidade de tratar de dramas complexos e emocionalmente exigentes, mais para seus personagens do que para o espectador. Nós somos levados a observar o cotidiano de um lar que recebe um ponto de variação, tudo sem muita pressa. De longe, as questões que se colocam aqui não são grandes conflitos nem exigem reviravoltas gritantes, o tom do Kore-eda é outro. No entanto, para os envolvidos na trama, o que se dá na história mexe com memórias do passado e refletem angústias e anseios que ainda persistem no presente.

Há um grupo de três irmãs que vivem juntas numa mesma casa e são independentes, a vida segue bem e tranquila. O filme já começa com a notícia da morte do pai, separado da mãe delas há muito tempo, vivendo com outra mulher numa cidade mais afastada. Ter de ir ao velório significa se conectar com uma história que há muito ficou para trás, aparentemente resolvida, mas também conhecem a meia-irmã Suzu (Suzu Hirose), tímida e ingênua. A empatia entre elas é imediata e logo Suzu é convidada a se mudar e ir morar com as irmãs mais velhas.

É claro que isso vai gerar consequências que colocam em questão velhos temas e fantasmas do passado, mas pesa muito mais no filme a maneira como essa convivência vai se formatando no dia a dia daquela família incomum com sua nova integrante. O fluxo de tempo é esse mesmo da rotina cotidiana e suas pequenas descobertas que, quase por acaso, também é uma forma de colocar em evidência os descaminhos da família e as feridas abertas que persistem e sempre irão coexistir com cada um. Suzu inclusive representa a ponte com o pai ausente que se renova no imaginário das irmãs a partir das lembranças da garota mais jovem com a qual o pai se dava muito bem, ao contrário das outras.

Talvez nesse filme, mais que nos anteriores, Kore-eda apele um pouco mais para o melodrama, especialmente no uso da trilha sonora pontual que comenta cada momento mais emotivo que emerge na trama. Mas a delicadeza e o apuro que embalam esses momentos nunca os tornam exagerados. O cineasta crê na união como maneira também de distensão dos conflitos, sem que seja preciso alcançar um estágio limite de explosão e furiosa, apesar dos arroubos mais dramáticos que surgem – caso da aparição da mãe em dado momento, o que faz surgir certos rancores inevitáveis. 

Cada uma daquelas jovens mulheres, na sua responsabilidade de seguir a vida com suas próprias pernas e convicções, vai se revelando para o espectador, tanto naquilo que as fortalece, como nas suas fraquezas. Mas é no traço da acolhida que o filme melhor reacende o sentido de viver em conjunto. É também através de um trabalho de liberação da palavra, e consequentemente da escuta, que aquelas personagens se dão conta do emaranhado maior do que é ser uma família  ou, mais precisamente, encontrar uma.