terça-feira, 25 de agosto de 2009

Seguindo com o Semcine


Je Vous Salue, Marie (Idem, França, 1985)
Dir: Jean-Luc Godard


É muito comentada a polêmica causada por esse filme ao reprocessar a trajetória da Virgem Maria na concepção do filho de Deus. De fato existe semelhança, mas não vejo nada de tão polêmico no filme; imaginava uma narrativa bem mais anárquica. A história é dividida em duas partes, contando na primeira a infância de Maria (Aurore Clément), e a separação de seus pais, e tendo a outra já na fase adulta, quando a jovem Maria (Myriem Roussel) engravida mesmo sendo virgem e passa a ser acusada pelo namorado José (Thierry Rode) de o estar traindo. Não deixa de ser interessante os paralelos da narrativa bíblica com o mundo atual (o ambiente das grandes cidades, José como taxista, o anjo Gabriel como uma espécie de andarilho mau-humorado), embora tudo perca mais força por conta das estripulias de montagem e roteiro fragmentado de Godard, além das atitudes desesperadas e esquisitas da maioria dos personagens. Mais uma vez, as filosofias proferidas pelos personagens soam artificiais e também vagas, principalmente por uma Maria em processo de compreensão do mistério de carregar aquele filho na barriga.


O Conceito Juche (The Juche Ideia, EUA, 2008)
Dir: Jim Finn


Talvez esse filme tenha sido um dos maiores desastres dentro da Mostra Internacional. O cineasta norte-americano Jim Finn mistura documentário e ficção para falar da relação entre um sistema político de um país socialista, nesse caso a Coreia do Norte, com sua produção cultural. Ele se apega ao caso do cineasta do país vizinho do sul (capitalista) que foi raptado na década de 70 para revigorar o cinema norte-coreano. Nesse filme, o cineasta trata das escolas Juche, espécie de centros artísticos coletivos voltados para que os novos “talentos” sejam levados a incluir em suas obras os ideais de uma sociedade repressora, baseada no stalinismo autoritário. Dessa forma, eles são podados de praticar qualquer tipo de contestação ao sistema vigente através da arte. Como forma de denunciar essa situação, o filme se dá bem, mas esbarra no problema de não ter muito mais coisa a dizer do que isso e acaba por se tornar repetitivo e longo, apesar dos 62 minutos de duração.


O Pequeno Soldado (Le Petit Soldat, França,1963)
Dir: Jean-Luc Godard


Bruno Forrestier (Michel Subor) é um desertor da guerra da Argélia que se refugia em Genebra onde se envolve com um grupo revolucionário de direta, muito embora não seja fiel a nenhuma ideologia. Apaixona-se pela misteriosa Veronica Dreyer (Anna Karina). Nesse filme, Godard reflete sobre as incertezas do jovem do pós-guerra em se posicionar politicamente, uma juventude inquieta, quase perdida, mas que já ensaiava os primeiros passos para o viés revolucionário que culminaria com o Maio de 68. Realizado no mesmo ano de Acossado, a obra só estreou em 1963 por conta da censura do governo francês, e é a primeira incursão do cineasta no cinema político, algo bem distante dos ditames da Nouvelle Vague. Mesmo assim, é um filme sóbrio e conta com a graça do cineasta em filmar os descaminhos de seu personagem, por vezes ingênuo, que se divide ainda com o gosto pela arte. Em uma das melhores sequências, Bruno fotografa Veronica e discute com ela, no melhor estilo Godard, sobre a melhor hora do dia para se ouvir Mozart e Beethoven ou se Van Gogh era superior a Gauguin. Como já disse Glauber Rocha em Terra em Transe, “a arte e a política são demais para um homem só”. Talvez na tentativa de abraçar os dois, Bruno tenha se perdido no mundo.


A Chinesa (La Chinoise, França, 1967)
Dir: Jen-Luc Godard


A Chinesa é um dos últimos filmes do Godard antes de embarcar na onde do cinema militante. Se aqui ele revela grande aproximação com o socialismo, ele também deixa claro uma crítica aos jovens da burguesia francesa que passavam a aprender a doutrina comunista de Mao Tsé Tung e queriam empregá-la em prol da classe operária. Na história, um grupo de jovens (vividos por Anne Wiazemsky, Jean-Pierre Léaud, Juliet Berto), em férias, se fecha num apartamento e passam a discutir os ensinamentos do Livro Vermelho de Mao, enquanto planejam o assassinato de um representante do governo francês. Realizado em 1967, o filme não deixa de ser uma antecipação do Maio de 68, através da politização de uma juventude ávida por contestação. O primeiro momento do filme, que se passa dentro do apartamento, soa um tanto arrastado e repetitivo, embora a edição fragmentada e não-linear ainda conferem um charme à narrativa. Mas quando os jovens partem para a ação, a história fica mais interessante e rica em questionamentos, uma vez que os jovens militantes e idealistas podem ser vistos com a ingenuidade de seus atos.

domingo, 16 de agosto de 2009

Rito de passagem

À Deriva (Idem, Brasil, 2009)
Dir: Heitor Dhalia



O novo trabalho de Heitor Dhalia é forte e me deixou bastante surpreso. Podia jurar pelo material de divulgação que se tratava de um filme mais água com açúcar, filmado de forma clássica e simples, o que seria uma inconstante na filmografia do cineasta que realizou o sombrio Nina (que numa revisão, caiu bastante em meu conceito) e o sensacional e sujo O Cheiro do Ralo, ainda seu melhor filme.

Felipa (a novata Laura Neiva) está de férias em uma casa de praia com os pais e o casal de irmãos mais novos. O pai (Vincent Cassel, relativamente bem falando português) é um escritor francês, naturalizado brasileiro, que se envolve com uma mulher mais jovem (Camilla Belle) enquanto a esposa (Débora Bloch) se entrega à bebida e vê seu casamento se desmanchando.

Se à primeira vista À Deriva apresenta-se como a história da adolescente que vai descobrindo os melindres do amor e também do sexo, a obra cresce mais ainda quando a questão familiar entra na equação para também tratar de amor e sexo, sob um aspecto mais adulto. Mas sempre através do olhar confuso de Felipa, tão próprio da adolescência. É como esse turbilhão de emoções que a jovem terá de lidar, uma espécie de provação.

O maior mérito do filme é dar consistência a todos os personagens, mesmo os secundários, pois a relação da protagonista com todos eles é o que enriquece o filme, através das experiências da garota. Nada soa forçado e há ainda o alívio de um roteiro que trata o espectador com a maturidade necessária, mesmo através da história de uma jovem iniciando seu crescimento como mulher.

Boa também é a forma como Dhalia filma a juventude, suas descobertas, decepções, incluindo aí as noções de amor, amizade e a descoberta do sexo. Já os problemas de relacionamento dos pais surgem para Felipa de forma menos compreensível justo porque trazem questões mais complexas, e ainda ganham outras nuances perto do fim do filme. São nessas duas frentes, aparentemente distintas, que a narrativa se encontra e ganha coerência.

O elenco ajuda muito, com os atores mais jovens fazendo bom trabalho e Vincent Cassel tentando não parecer deslocado; no entanto, a melhor em cena é Débora Bloch, em domínio total de seu personagem, fazendo com que sua mãe não soe controladora. Pode-se dizer também que o diretor não possui lá um estilo próprio de filmagens. Aqui, Dhalia filma com a câmera o mais próximo de seus atores na tentativa de captar os mais simples, porém significativos gestos. Porque para Felipa, à flor da pele, tudo a afeta, para o bem ou para o mal. Mas é assim que se cresce, não?

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Mais Semcine

Alphaville (Alphaville, Une Étrange Aventure de Lemmy Caution, França/Itália, 1965)
Dir: Jean-Luc Godard



Toda aquela galerinha da Cahiers du Cinéma (Godard, Truffaut, Chabrol, Rohmer) adorava o cinema de gênero. Pois nesse Alphaville, Godard exercita esse gosto numa estranha mistura de filme noir com ficção científica. A cidade futurista de Alphaville é controlada por uma supermáquina, Alpha 60, onde todos os sentimentos foram abolidos e a sociedade vive sob total vigilância. Lemmy Caution (Eddie Constantine) é um agente intergalático, disfarçado de jornalista, que tem a missão de encontrar o cientista responsável pela criação da máquina. É quase como se a atmosfera de 1984, livro de George Orweel, se encontrasse com 2001, de Kubrick.

Através de uma soberba fotografia noir-futurista, Godard cria toda uma atmosfera de suspense, incluindo aí as figuras da femme fatale (Anna Karina, de novo) e do cientista ganancioso (Akim Tamiroff). Agraciado com o Urso de Ouro, em Berlin, esta talvez seja uma das experiências mais incomuns e felizes da filmografia do cineasta. O texto continua vigoroso e a narrativa fluida, principalmente porque o decorrer da história se assemelha a um filme de aventura. O filme contrapõe a sociedade alienada com o despertar através da poesia, visto por Lemmy, apesar de sua dureza. Talvez o próprio Godard seja assim, um rude, mas no fundo, um poeta da imagem. Um cineasta caloroso.


Intimidades de Shakespeare e Victor Hugo (Intimidades de Shakespeare y Víctor Hugo, México, 2009)
Dir: Yulene Olaizola



Da Mostra Internacional, no decorrer do Seminário, eu imaginava ver bem menos filmes, mas consegui acompanhar algumas obras e o documentário chileno Intimidades de Shakespeare e Victor Hugo foi a mais grata surpresa do evento; ganha pela simplicidade e principalmente pela força de sua história. A avó da cineasta, dona de uma pensão na Cidade do México, vai nos trazer a história de Jorge Riosse, um misterioso rapaz que viveu no local por alguns anos e se tornou grande amigo da matriarca. Extremamente inteligente, com dom para a escrita e pintura, poliglota, autodidata, atencioso e carinho, Jorge tinha lá seus segredos.

O filme possui, na verdade, dois trunfos. O primeiro deles são as descobertas que vamos fazendo desse personagem: primeiro, sabe-se que ele era homossexual, e também trabalhava como michê e travesti à noite; depois, descobrimos suas atividades como um possível serial killer e seus prováveis surtos de esquizofrenia. O filme acompanha a construção desse personagem que vai crescendo em complexidade. Daí, o outro trunfo da obra: montar todas essas peças aos poucos, com uma fluidez incrível, fazendo com que o espectador nunca perca o interesse pela narrativa. Ao mesmo tempo, há algo de muito pessoal no filme que encontra no rosto vivo da avó da cineasta uma nostalgia de uma época remota, mas intensa.


Tempo de Guerra (Les Carabiniers, FrançaItália, 1963)
Dir: Jean-Luc Godard


A Nouvelle Vague não tinha lá seus ideais de politização nem pretensões de fazer crítica social. Godard vai ensaiar essas propostas (para depois entrar de vez no cinema politizado através do grupo Dziga Vertov) nesse Tempo de Guerra (e também no filme de mesmo ano O Pequeno Soldado). É uma visão um tanto simples da guerra, mas bastante eficiente, principalmente se levarmos em consideração uma década de 60 assombrada pela Guerra Fria. No filme, dois rudes camponeses, Michel-Ange (Patrice Moullet) e Ulysses (Marino Masé), são convocados para lutarem na guerra. Se de início, a ideia é preocupante, ela se torna uma grande aventura quando descobrem que no campo de batalha eles podem fazer de tudo, desde roubar, matar, violentar mulheres.

O filme é uma apologia à irracionalidade dos conflitos armados. Por trás da brutalidade dos personagens, existe na verdade muita da ingenuidade e ignorância de um povo usado para servir como arma de matar, em prol de alguma nação. Interessante notar que o filme não define o lugar em que se passa a história; portanto, a narrativa ganha caráter universal e pode estar se referindo a qualquer país ou confronto. Pode ser visto como uma fábula brutal e até surreal sobre a guerra. Quando os soldados voltam para casa, por exemplo, eles trazem como troféus uma série de cartões postais, de lugares onde eles nunca poderão estar, e de onde poderiam estar ocorrendo as mesmas barbaridades.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Curtinhas – Pausa para novidades

Como não se vive só de Godard, vamos dar uma pausa para algumas estreias.


Inimigos Públicos (Public Enemies, EUA, 2009)
Dir: Michal Mann


Michael Mann é o cara responsável por um dos grandes filmes de ação da década passada: Fogo Contra Fogo. Por esse e outro trabalhos memoráveis, esperava bem ais desse Inimigos Públicos, que seria só mais um filme policial, não fosse o talento de Mann em filmar. Em digital, com a câmera levemente nervosa na mão, as imagens focam os atores o mais perto possível. Nas cenas de ação, então, parece que o espectador está no meio do fogo cruzado, que tem lugar na Chicago do período da depressão norte-americana quando o golpista John Dillinger (Johnny Depp) é perseguido pela polícia, sob o comendo do agente Melvin Purvis (Christian Bale).

No entanto, a história não possui a inteligência de um Fogo Contra Fogo, ou mesmo a carga de tensão de um Miame Vice. Os diálogos são batidos e ação se repete constantemente. Marion Cotillard, vivendo o par romântico do vilão (o que humaniza muito o personagem – e não há dúvidas de que ambos estão apaixonados) é a melhor no elenco. Embora o confronto final seja decepcionante, duas cenas merecem destaque: a propaganda contra Dillinger no cinema – com ele na plateia – e a perseguição na floresta. Palmas também para os quesitos técnicos, em especial uma direção de arte caprichada, belos figurinos e um trabalho de som bem bom. Mesmo assim, o filme não chega a ser marcante. Uma pena.


Apenas o Fim (Idem, Brasil, 2008)
Dir: Matheus Souza


Quando eu escrevi sobre O Cheiro do Ralo, falei de como o cinema brasileiro carecia de mais ousadia para fugir de certa mesmice. Pois Apenas o Fim é ousado por apostar na simplicidade de um argumento (o fim do namoro de dois jovens) para compor o filme inteiro com uma última (e longa) conversa entre os dois. E é uma delícia assim. É inevitável não se lembrar de Antes de Amanhecer/Antes do Pôr do Sol, mas o diretor Matheus Souza, que dirigiu o filme aos 19 anos, incluiu, como grande trunfo da produção, uma série de referências pops das últimas décadas, indo desde a Vovó Mafalda, Stars Wars até Trasnsformers.

Seria uma espécie de sopro de renovação, uma experiência simples e muito eficiente dentro de nosso cinema. Para o espectador mais jovem, reconhecer as alusões à cultura pop mais recente é gostosíssimo, à medida que o filme avança com bom-humor, apesar da situação não ser tão agradável assim. Longos planos acompanham os personagens que ora ou outra encontram um conhecido pela universidade (exceto nos flashbacks, filmados em preto-e-branco, o filme foi todo rodado dentro da PUC-Rio). Os atores (Gregório Duvivier e Érika Mader) possuem uma bela química. Mas sem dúvida, só o texto despretensioso de Matheus Souza já vale o ingresso.


PS: Assisti a esse filme quando encontrei uma brecha durante o Seminário de Cinema, entre um Godard e outro. E tem um momento em que o personagem diz que trocaria toda a filmografia do Godard por Transformers!! Ri demais!!!


A Partida (Okuribito, Japão, 2008)
Dir: Yojiro Takita


Muita gente vai dizer que A Partida vence pelo melodrama e por apelar ao piegas. Esse é o tipo de fato que não se pode negar; no entanto, o filme consegue equilibrar tão bem o bom-humor com o tema da morte que quando alcança o lado emocional parece ser sincero, e o piegas se torna consistente. Mesmo assim, nota-se o apelo mais emotivo conquistado pelo filme entre os velhinhos que o agraciaram com o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (em detrimento ao realismo de Entre os Muros da Escola). Quando Daigo Kobayashi (Masahiro Motoki) perde o emprego como violoncelista numa orquestra, ele se muda com a esposa para o interior e só consegue trabalho como agente funerário; na verdade ele ajuda a realizar uma espécie de ritual de preparo dos defuntos antes de serem enterrados.

A história traz aquele gosto de coisa exótica através do traço da cultura japonesa em respeitar o momento da morte, que vê aquilo como um rito de passagem. Porém, é interessante notar como muitas pessoas passam a criticar Daigo por seu novo ofício, denunciando certa ocidentalização do Japão. A trilha sonora sabe o momento certo de se inserir, principalmente porque é melancólica e podia soar forçada, mas nunca passa do tom, além de ser belíssima. Com um roteiro redondinho e cheio de boas piadas (embora os atores às vezes exagerem no tom cômico), o filme só alcança o lado sério e emocional na sua parte final. Quando a gente imagina que o filme vai acabar, a história ganha mais uma nuance e nos pega de forma arrebatadora, quando impedir as lágrimas de caírem é praticamente impossível.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Descobrindo um Godard diferente

Parece que a fase inicial de Jean-Luc Godard (1959-1968) é a mais frutífera e também a mais marcante de sua obra. Depois do Maio de 68, o cineasta vai adquirir uma postura mais militante e se ligará ao grupo Dziga Vertov com o qual fará o dito “cinema-manifesto”. Vai voltar depois com uma nova estética. É aí que sua obra vai ficando mais inacessível, difícil e até chata. Um outro Godard, portanto. São dessa fase:


Nouvelle Vague (Idem, França/Suiça, 1990)
Dir: Jean-Luc Godard



Eu já tinha lido em vários lugares como a filmografia do Godard, a partir da década de 70, foi ficando cada vez mais hermética e difícil. Com o filme Nouvelle Vague pude comprovar isso de forma exemplar. O que no início de sua carreira era tido como experimentação e uma feliz quebra das formas narrativas do cinema clássico, aqui possui ares de intelectualismo e complexidade que, no fundo, não quer dizer muita coisa.

A trama (se é que existe uma) começa quando uma mulher (Domiziana Giordano) atropela um homem (Alain Delon) e o leva para casa, mantendo com ele um leve relacionamento. Isso acontece logo nos primeiros minutos e o resto do filme discorre num fluxo ininteligível de imagens. Um dos piores ranços do filme (e toda essa fase da carreira do cineasta), é fazer com que os personagens estejam a todo momento filosofando sobre a vida, o tempo, o amor... Muita coisa parece ser pertinente, e permeia o texto de Godard certa poeticidade lírica; mas o filme acaba se tornando distante porque confuso. Depois da revolução, Godard se perdeu em si mesmo, talvez na vã tentativa de se superar. Tarefa difícil.


Passion (Idem, França/Suiça, 1982)
Dir: Jean Luc-Godard



Chega um momento em Passion em que não há mais história, ou então é quando nos damos conta de que a história narrativa não existe, ou ainda que não é ela o mais importante. Temos um cineasta (Jerzy Radziwilowicz) preparando um filme que reproduz telas de pintores famosos (Rembrandt, Goya), ao mesmo tempo em que se relaciona com uma hoteleira (Hanna Schygulla) e também com uma operária (Isabelle Huppert); está última, ao mesmo tempo, enfrenta problemas com o patrão numa fábrica. Passion parece mais interessado em falar sobre as condições da arte, seu significado, mas também das relações trabalhista, que apelam para o lado marxista de Godard. Tudo isso rodeado de belas imagens, mais uma vez contando com o zelo estético do diretor de fotografia Raoul Coutard.

E foi só nesse filme que eu notei como a câmera de Godard permanece agora mais estática, os enquadramentos mais fixos e bem trabalhos, os planos mias longos, conferindo um efeito dramático interessante, bem diferente da liberdade estética de seus filmes iniciais. A anarquia de acompanhar seus personagens com leveza e graça foi deixada para trás, justamente o que encantava em seus filmes. Agora, ele prefere as tramas complexas que soam bastante gratuitas, mas tentam alcançar o status de obra “ricamente complexa”. Claro que não se deve esperar que um cineasta seja fiel a um estilo de filmagem, nem cobrar uma estética, mas fica uma sensação de desconforto justo porque antes os filmes dele eram mais agradáveis de se ver.


Carmen (Prénom Carmen, França, 1983)
Dir: Jean-Luc Godard



Taí um filme dessa fase mais hermética do cineasta que não deixa de ter suas estranhezas, seus arroubos de montagem fragmentada, seus personagens agindo de maneira esquisita e inesperada, mas que funciona muito bem como narrativa. Isso porque, apesar do estilo difícil, é possível acompanhar a história sem a sensação de estarmos gratuitamente perdidos, como acontece em várias outras produções godardianas (engraçado que o próprio cineasta faz uma ponta interpretando um louco no hospício).

Carmen (Maruschka Detmers) é uma ladra de bancos que em um desses seus roubos, se apaixona pelo policial que faz o segurança do local. O homem (Jacques Banaffé) não só não consegue impedir o assalto como também foge com Carmen, deixando tudo para trás. Do amor bandido que emana dos dois (demonstrando personalidades bastante fortes), surge a sensação de personagens que buscam fortes emoções. São os tipos marginais tão comuns na obra do diretor, bem como a atmosfera de filme policial, sempre subvertido pelo cineasta. Há muito de estranheza na narrativa devido às estranhas atitudes dos personagens, mas que ganham contornos de uma bem-vinda esquisitice.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Abertura e Godard


Bem, como imaginei, não consegui escrever nada sobre o seminário durante o evento na última semana, estava sem internet e sem tempo mesmo, porque foi uma programação intensa, com filmes e palestras. Mas vou tentar tirar o atraso a partir de então, em forma de curtinhas sobre os filmes vistos. Vamos lá, então:


Jards Macalé – Um Morcego a Porta Principal (Idem, Brasil, 2008)
Dir: Marco Abujamra e João Pimentel


Filme de abertura do Semcine, seguido de ótimo pocket show do próprio cantor e compositor, esse documentário nada mais revela do que a personalidade peculiar desse artista, um anarquista de coração, um moleque consciente, um compositor incrível. Visto por muito como artista maldito, foi colaborador de Wally Salomão (com quem compôs a bela Vapor Barato) e arranjador de Gal Costa e Caetano Veloso. No entanto, se pensarmos na grande quantidade de documentários sobre músicos brasileiros sendo lançados atualmente (Simonal, Lóki, Titãs, Coração Vagabundo, etc) é preciso contar com uma forma diferenciada, coisa que o filme não possui. Há as velhas entrevistas de gente importante tentando conferir status de gênio ao documentado, beirando o forçado. O filme vale mais por apresentar o talento de Macalé ao público, e só. Pelo menos não possui pretensões de grande biografia.


O Demônio das Onze Horas (Pierrot le Fou, França/Itália, 1965)
Dir: Jean-Luc Godard



Logo no primeiro Godard visto, me deparo com uma obra-prima. Na verdade, eu cheguei a rever o filme alguns dias depois para comprovar a maestria do diretor nesse trabalho. Na história, Ferdinand Griffon (Jean-Paul Belmondo), cansado do casamento com uma burguesa italiana foge repentinamente com Marianne (Anna Karina), uma antiga amante. O filme possui aquele gosto anárquico de rebeldia com os dois formando um belo par de delinquentes, não se importando em roubar ou matar para seguir seu caminho (que nem eles mesmos sabem onde vai dar).

Godard filma tudo com uma graça incrível, sua câmera baila ao redor dos personagens e os seguem com a mais pura fidelidade. Não é surpresa que em dois momentos a narrativa seja interrompida por números musicais que revelam os anseios dos personagens naqueles momentos. Em outra passagem, Marianne diz: “Eu quero é viver”. Assim, é uma delícia acompanhar os descaminhos daqueles personagens, filmados com tanta irreverência, mesmo que suas atitudes sejam reprováveis. O bom-humor também é outra marca do cineasta, que sabe o momento certo de soltar uma piada.

Talvez a história seja pretexto para que Godard continue seu percurso cinematográfico de desconstrução da narrativa, incluindo aqui uma série de referências pops da época (carros da moda, sprays de laquê, cinta liga), também como forma de provocação à classe burguesa, vista no filme com um grande desprezo. Além disso, um discurso politizado não podia faltar nas entrelinhas, como na hilária cena em que os dois representam a opressão norte-americana no Vietnã, justamente para uma plateia de estadunidenses. O sarcasmo é uma grande qualidade do cineasta.

Não posso deixar de lembrar também como o diretor usa da metalinguagem para falar do próprio cinema, característica que vai ser vista exaustivamente em sua obra. Eis que em determinado momento, vemos Samuel Fuller, (diretor norte-americano underground e adorado por Godard), interpretando a ele próprio, versando sobre cinema. Ele diz: “O Cinema é como um campo de batalha. Amor, ódio, ação, violência, morte. Numa palavra: emoção”. Em outro momento, Ferdinand fala diretamente com a câmera e Marianne pergunta, “Com quem você está falando?”, “Com o espectador, ora”, ele responde. É Godard piscando para a gente, numa espécie de prazer cinéfilo.

Filmado no sul da França, a fotografia do filme, a cargo de Raoul Coutard (grande colaborador da Nouvelle Vague e um dos responsáveis por viabilizar filmagens ao ar livre, marca do movimento), é de uma beleza ímpar. As cores trazem lirismo poético à obra, ajudado pelas belas paisagens do Mediterrâneo.

Há de se dizer também que encontrei no filme uma cena que parece sintetizar bem a filmografia do Godard. Os dois personagens estão de carro passando por uma estrada à beira do mar, não há outra via disponível. Nesse momento, Marianne diz, “Você é obrigado a seguir a linha reta até o final”, ao que Ferdinand responde, “O quê? Olha!” e então vira o veículo e cai direto no mar, com Karina, carro e tudo. Porque em Godard, nunca há linha reta. Foi a lição do dia.


Uma Mulher é Uma Mulher (Um Femme est un Femme, França/Itália, 1961)
Dir: Jean-Luc Godard



Se o grande legado de Godard está na maneira com que o diretor subverte as estruturas narrativas, ou seja, com a forma, não deixa de ser interessante perceber como aqui o conteúdo nada tem de anárquico. Dessa vez, tomando o ponto de vista do mundo feminino, o diretor nos trás a história da stripper Angela (Anna Karina) na tentativa de convencer o marido (Jean-Claude Brialy) a lhe dar um filho. Sem conseguir persuadi-lo, ela busca ajuda em Alfred (Jean-Paul Belmondo), amigo do casal.

Em tempos de revolução estética, podia-se esperar uma personagem feminina mais independente, livre, dona de si, e não uma futura dona de casa. Mas o que Angela quer mesmo é abraçar seu lado materno, cuidar do marido e ser feliz assim.

Essa personagem ingênua nunca é julgada pelo filme. A história pode ser vista tanto com uma simples comédia envolvendo um excêntrico triângulo amoroso, quanto como uma bela homenagem ao gênero musical clássico norte-americano (e referencialista como Godard costuma ser, não poderia faltar citações a Cyd Charisse, Gene Kelly e Bob Fosse).

Acompanha a história um texto delicioso do cineasta, repleto de criatividade e totalmente despretensioso, mais sua propensão em dar ritmo ao filme através de uma montagem ágil e vigorosa. Interessante como o filme, em suas citações pops, faz referência aos próprios filmes do movimento, como Atirem no Pianista (segundo longa de Truffaut) e mesmo Acossado (filme anterior e estreia de Godard).

Com bom-humor, Godard realiza uma comédia romântica das mais inusitadas, cheia de frescor. E Anna Karina é um doce em cena. Apenas uma mulher, enfim.