domingo, 27 de julho de 2014

6º Paulínia Film Festival: Parte IV



Casa Grande (Idem, Brasil, 2014) 
Dir: Fellipe Barbosa


 
Não é tarefa das mais fáceis fazer um filme sobre um rito de passagem adolescente e com forte teor de crítica social. Casa Grande é um ótimo exemplo desse tipo de construção narrativa que levanta uma série de questões socioeconômicas e de classes, além de injetar humor ácido e apresentar protagonista carismático. O resultado é o melhor longa-metragem nessa competição em Paulínia.

Há o peso de uma história nacional marcada por desigualdade social e forte concentração de renda. Com olhar voltado para uma família ricaça do Rio de Janeiro, o filme acompanha Jean (Thales Cavalcanti), batendo de frente com o pai (Marcello Novaes) que carrega o segredo da bancarrota das finanças da família. Garoto superprotegido, luta para respirar fora das amarras e paranoias de um cultura elitista.

Primo rico de O Som ao Redor, Casa Grande não tem medo de discutir questões sociais e raciais que são, no fundo, a base dessa história. Por meio da trajetória de Jean, sua relação de proximidade com a empregada doméstica e o motorista da família – laços muito calorosos aí –, também com uma paixonite por menina de pele morena e de escola pública, o roteiro ganha nuances várias, sem fugir de temas espinhosos, mas também longe de panfletarismos. A discussão em torna das cotas, por exemplo, ganha embates e contrapontos interessantes entre polos díspares.

O texto do filme é bem lapidado, incluso aí um bom-humor que investe em tiradinhas engraçadas, sem nunca escorregar para o riso rasgado. Barbosa também valoriza demais o trabalho dos atores, todos muito bons. Prefere o plano longo, com câmera movendo-se com parcimônia, e abre espaço para que suas muitas questões e nuances estejam em cena. É um trabalho notável para um jovem cineasta que chega a seu primeiro longa de ficção.


Sangue Azul (Idem, Brasil, 2014) 
Dir: Lírio Ferreira


 
O circo Netuno chega a uma ilha paradisíaca para se apresentar na pequena cidade. Chega também o filho pródigo que retorna ao lar como novo homem, agora com nome mudado, artístico. É Zolah (Daniel de Oliveira), o Homem Bala do circo, separado da irmã (Caroline Abras) pela mãe (Sandra Coverloni) ainda quando crianças. É esse reencontro que abala o destino da família, faz reviver uma aproximação proibida entre os irmãos, ainda que muito dos embates entre eles estão nas entrelinhas, revelando-se aos poucos na narrativa.

Sangue Azul, do pernambucano Lírio Ferreira, traz a Paulínia a magia perdida do espetáculo mambembe, mas é também um conto sobre origens e amores tolhidos. Há uma série de personagens que chegam com o circo, cada qual com seus conflitos e angústias pessoais, agitando a rotina pacata do lugar.

Mas talvez sejam histórias demais quando o interessante mesmo é a relação de Zolah com família, consequentemente buscando se encontrar na terra natal. Ora, é ele quem traz cor ao filme (e à ilha), literalmente: na sua primeira apresentação como homem bala, a fotografia em preto-e-branco do início ganha colorido quando ele explode no canhão. Faz explodir também os desejos de uma relação incestuosa há tempos castrada.

Se investe em personagens pouco estimulantes (como a relação entre o dono do circo, vivido por Paulo César Peréio, e seu affair com o homem mais forte do mundo interpretado por Milhem Cortaz; ou o tenso atirador de facas de Matheus Nachtergaele), o filme parece embebecido pela própria natureza paradisíaca do lugar, ainda que saiba aproveitar bem essa ambientação.

Por um lado, há um apreço visual que embala muito bem essas histórias entrecruzadas. No fundo, é muito cômodo filmar o belo quando se conta com números circenses e a locação do filme é em Fernando de Noronha. Às vezes até parece que toda a beleza visual rouba a atenção para os conflitos humanos. 

Ferreira, responsável pelo renascimento do cinema pernambucano em fins dos anos 1990 com Baile Perfumado, ainda assim constrói uma narrativa longe de ser óbvia, costurada com algo de poético, ainda que o arco dramático central perca com isso.

6º Paulínia Film Festival: Parte III



Boa Sorte (Idem, Brasil, 2014) 
Dir: Carolina Jabor


Junkies
, loucos e sociopatas. O ambiente de Boa Sorte é uma clínica de recuperação para drogados e viciados dos mais variados tipos. É lá que o desajustado social João (João Pedro Zappa) conhece a soropositiva Judite (Deborah Secco). Os dois facilmente passam a compartilhar neuras, confidências e mesmo um relacionamento carnal/amoroso num ambiente nada romântico. Longa-metragem de estreia de Carolina Jabor, o filme é baseado no conto Frontal com Fanta, de Jorge Furtado.

Se Deborah Secco surge sem o glamour habitual de seus papeis para a televisão é porque existe uma tentativa de revelar um lado mais cru daquela vida. Porém, no fundo, ainda há algo de maquiado no filme como um todo porque tudo está a serviço da “anarquia” dos personagens. O próprio espaço da clínica permite que eles encontrem certas diversões ali – é possível conseguir drogas e cigarros com o enfermeiro, fazer sexo (inclusive com enfermeiro), soltam o som e se divertem pelos corredores da clínica.

Por mais que problemas de saúde de cada um batam à porta, os personagens parecem habitar um universo muito particular, quase senhores daquele espaço; ou antes, temos um roteiro que mascara o peso que eles carregam. Há menos uma sensação de sofrimento latente por aquela condição, algo que o roteiro tenta sustentar em momentos esparsos, especialmente na condição iminente da morte aguardada por Judite. O filme tenta ser “feio”, mas não consegue.

Há uma ideia curiosa de ser invisível, vendida pelo filme como percepção da sociedade para com aqueles tipos marginalizados. Os melhores momentos do longa são quando os personagens andam entre as pessoas e ninguém os nota. São cenas assim que trazem frescor a um filme ainda engessado na sua proposta dramática.


Castanha (Idem, Brasil, 2014)
Dir: Davi Pretto 


 
Certamente, esse é o filme mais difícil de se classificar nessa competição em Paulínia. Propõe, talvez, que deixe a própria classificação de lado. E que bom que seja assim. Num híbrido muito curioso entre documentário e ficção, Castanha adentra o universo do artista da noite João Carlos Castanha, especialmente como transformista.

Esse personagem existe na cena noturna underground de Porto Alegre, também faz peças de teatros e esquetes para TV. Já passou da meia-idade, mas continua com os shows. Lida com as pendências financeiras e com o irmão viciado em drogas. Lembra os amigos e amores do passado que já partiram.

O filme quer ser cinema direto, documentário de observação, tanto quanto quer privilegiar a encenação, o fake, que está na própria essência do ser transformista. Intérprete de si, Castanha se desnuda para a câmera, assim como também se traveste como personagem. Abre a intimidade da casa onde mora com a mãe, Celina, que também empresta sua encenação ao filme.

Essa dualidade, longe de ser novidade hoje em dia, ganha um frescor interessante porque, nessa mescla, nem tudo está claro, dado de bandeja na história. A forte cena inicial que abre o filme, por exemplo, cobre de mistério e horror o protagonista, nu e coberto de sangue numa rua deserta. É o perigo de estar no mundo, de ser o que é, de lutar contra as adversidades e continuar seguindo.


O Samba (Idem, Suíça/Alemanha, 2014)
Dir: Georges Gachot 
 

O francês Georges Gachot já havia dedicado outros documentários a nomes da música brasileira, como Maria Bethânia e Nana Caymmi; volta agora seu olhar para o samba. Transparece não só amor e admiração pela música brasileira, como também respeito, reverência, curiosidade.

Longe de querer compreender a fundo essa musicalidade tão brasileira, o filme segue um percurso mais interessante: utiliza a figura de Martinho da Vila não só como um dos expoentes desse estilo de vida, mas também como guia a fim de adentrar em universo tão particular.

Com sua ligação apaixonada pela escola de samba carioca Unidos da Vila Isabel, Martinho é o personagem ideal para essa proposta. Tem aquele jeito tímido, mas também histórias interessantes. Ícone do samba, sabe do que fala. O resultado é um filme agradável e longe do exotismo que o olhar estrangeiro sempre lança à cultura estrangeira, latina especialmente. A música brasileira sempre serviu como produto de exportação, mas Gachot está mais interessado em se deixar levar, sem levantar grandes teses, tentar explicações ou deslumbres. 

Há ainda um olhar muito bem-vindo direcionado para o povo, sendo o samba algo tão popular, comunitário, que carrega a beleza e a dor da gente simples. Gachot entende bem que a vida humilde do cidadão comum é uma das essências do samba. A cena final, da mulher negra sambando sozinha na rua, é exemplar nesse sentido.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

6º Paulínia Film Festival: Parte II



Aprendi a Jogar Com Você (Idem, Brasil, 2013)
Dir: Murilo Salles
 

Mais um documentário de observação, mais uma proposta de cinema direto, mais um personagem no cenário da música em busca do sucesso. Aprendi a Jogar com Você, de Murilo Salles, segue o DJ Duda e sua esposa Milka Reis pelas cidades-satélites de Brasília. Eles fazem algo como uma música de guerrilha e não escondem seu objetivo principal de ganhar dinheiro e tornarem-se conhecidos.

Se não há nada muito novo nesse tipo de abordagem, há trunfos aqui: um protagonista muito bom, engraçado, que se doa ao filme, e ainda uma participação dele longe de ser inocente. Há algo de esperteza nele que não esconde um falseamento da noção de documentário como registro dessa coisa chamada “real”.

Trata-se de uma proposta quase imoral na maneira como esse personagem se vira e vira os demais para ir seguindo, ganhando dinheiro com os shows, promovendo o nome da dupla. Ao mesmo tempo em que o filme invade a intimidade e os meandros internos do trabalho dele, Duda também se aproveita para reforçar sua própria figura como homem sagaz, esperto, que corre atrás, acima de tudo. Uma releitura consciente do ser malandro.

Duas cenas expressam bem essa duplicidade: quando o casal briga por conta da falta de dinheiro, infligindo culpas e acusações, e a cena final do filme em que Duda profere um discurso duvidoso diante das câmeras. No interesse de perseguir um personagem que se encontra na periferia de uma dada cena musical, o filme abre espaço para esse conflito de forças que se estabelece na própria encenação.


Neblina (Idem, Brasil, 2014)
Dir: Fernanda Machado e Daniel Pátaro 


Neblina chega na competição de Paulínia como prata da casa, único filme local no evento. Bate a impressão forte de que está ali só por esse "acaso". Como cinema, o filme possui uma série de limitações narrativas e parece se autossabotar com certas escolhas. O pior de seus problemas é o tom professoral, acadêmico, permeando toda a projeção com onipresença de narração em off explicativo.

Somos apresentados ao distrito de Paranapiacaba, na região de Santo André, em São Paulo. As ruínas de uma estação ferroviária, datada dos anos 1850, construída pelo investimento inglês no Brasil, servem de mote para os cineastas desenvolverem uma série de relações com o capitalismo selvagem, com a concentração de poder e desmandos políticos, a exploração dos recursos minerais dos países periféricos. Ou talvez mais coisas cabem nesse discurso, isso num filme de 75 minutos.

A paisagem que o longa documenta, ruída pelo tempo, abandonada em meio à densa neblina característica da região, possui uma poeticidade melancólica, triste mesmo na forma como sentimos o cessar do tempo ali. Mas o filme pouco aproveita essa atmosfera, primeiro porque insiste em acelerar as imagens, num recurso de pós-produção questionável; e porque abusa das imagens de arquivo que dão conta de um resgate histórico extenso, complexo, vomitando muita informação no espectador. Cansa rapidamente.


Sinfonia da Necrópole (Idem, Brasil, 2014)
Dir: Juliana Rojas



Se o flerte de Juliana Rojas como o filme fantástico e o horror, ainda que sempre anticlimático, é uma marca viva na sua curta, porém notável, carreira, aqui ele ganha um novo ar. A presença de um cemitério como personagem central não significa necessariamente pavor. Sinfonia da Necrópole abre-se à comédia inteligente e ao musical para continuar falando de morte, ou ainda a forma como os vivos lidam com isso e o respeito para com os que já se foram.

Acima de tudo, um filme muito divertido. É, certamente, o trabalho mais acessível de Rojas, que entende muito bem essa proposta jocosa e cria um roteiro menos aberto a interpretações, como era o caso do muito bom Trabalhar Cansa, dirigido em parceria com Marco Dutra, estreia de ambos no longa-metragem.

Deodato (Eduardo Gomes) é um aprendiz de coveiro sensível, desmaia quando está enterrando alguém. Passa a ajudar a agente funerária Jaqueline (Luciana Paes) a recadastrar os túmulos para uma reforma no cemitério. Começa um flerte desajeitado com ela ao mesmo tempo em que pressente coisas esquisitas acontecendo entre os túmulos.

O acréscimo do elemento musical tem um tom assumidamente farsesco e menos espetaculoso. De uma certa tradição do musical francês de um Jacques Demy, por exemplo, os números musicais servem como extensão dos diálogos dos personagens.  São como falas cantadas que conferem ludicidade àquele conjunto que penderia para o suspense, com coreografias que se querem simples, quase amadoras. 

Não deixa de ser também um filme de crescimento, rito de passagem que transpõe uma ingenuidade do protagonista. Entre trapalhadas e fantasias, há algo de muito particular e maduro nesse olhar de Rojas sobre a compreensão das coisas do mundo dos vivos.

quarta-feira, 23 de julho de 2014

6º Paulínia Film Festival: Parte I



Não Pare na Pista: A Melhor História de Paulo Coelho
(Idem, Brasil/Espanha, 2014)
Dir: Daniel Augusto


O suntuoso Theatro Municipal Paulo Gracindo recebeu ontem a cerimônia de abertura da 6ª edição do Paulínia Film Festival. Uma pena que tenham escolhido um filme tão frágil narrativamente para abrir os trabalhos. Não Pare na Pista: A Melhor História de Paulo Coelho, na melhor das hipóteses, é uma cinebiografia careta, que está ali para pontuar os fatos marcantes da vida de uma personalidade.

Paulo Coelho carrega o sucesso de vendas de seus livros, tem o “peso” de ser um dos escritores brasileiros mais traduzidos no mundo (perde só para Shakespeare, como insiste em afirmar um letreiro no final), a despeito de muitos torcerem o nariz para o tipo de literatura que ele faz. Mas o filme desvia dessa polêmica como um bom chapa-branca e nem chega a fazer um esforço para tentar entender o porquê de todo esse sucesso de público (numa sequência o vemos escrevendo o manuscrito de um livro; corte em elipse e ele já recebe em casa o livro impresso e publicado).

Daí que, na pior das hipóteses, esse é um longa anódino, intercalando várias fases de sua trajetória anárquica e transgressora, aura que o filme busca conferir ao personagem. A fase mais jovem marca os embates de Paulo (Ravel Andrade) com a família, especialmente com o pai linha dura, enquanto ele já sonha em se tornar um escritor. Júlio Andrade interpreta um momento intermediário em que Coelho busca novas experiências, com drogas ou viagens transcendentais espiritualistas. Há ainda o Paulo atual (Andrade de novo, sob maquiagem pesada), ranzinza, mas ainda dono de um espírito “libertário”.

É visível todo um cuidado de produção muito grande, em especial fotografia “arrojada”, que marca presença forte no filme como fator estético que salta aos olhos. Porém, esse exagero no visual só reforça a artificialidade de imagens que não se sustentam em conjunto na narrativa.

Estão lá momentos como o encontro e parceria de Coelho com o cantor e compositor baiano Raul Seixas (Lucci Ferreira), o quase suicídio que abre o filme, a aproximação com o satanismo e, claro, o percurso pelo famoso Caminho de Santiago de Compostela. Todos esses fatos estão ali acenando para o espectador para mostrar que existem, porém soam como figuras meramente ilustrativas. 

Certamente que na seara das cinebiografias é preciso lidar com a dificuldade de manejar esses elementos, o que não acontece aqui. O roteiro é primário em não só não conseguir amarrar as coisas, como falta originalidade nas próprias falas dos personagens, são clichês, sem apuro. Um filme que pareceu embarcar de cabeça nas viagens tresloucadas de seu biografado.


segunda-feira, 21 de julho de 2014

6º Paulínia Film Festival


Desde quando o Festival de Paulínia surgiu, lá em 2008, sempre tive a impressão de um evento suntuoso, que já chegava com força no cenário de mostras e festivais de cinema, fenômeno em crescimento pelo Brasil. Curiosidade nunca faltou de poder participar de alguma edição. Desejo será atendido.

Desta vez e eu estarei lá, à convite do evento, para respirar cinema e traduzir em palavras o que me for oferecido em termos de imagens e sons em movimento. Este ano com uma novidade para os soteropolitanos: escreverei algumas matérias no Jornal A Tarde. Mas também manterei por aqui a cobertura crítica dos filmes, especialmente das mostras competitivas de longas e curtas nacionais. O evento começa nessa terça e vai até domingo, 27.

Nessa sexta edição, depois de estanque por dois anos por entraves políticos (na verdade, no final do ano passado houve um revival do festival, mas sem competição), o festival volta com grande força, pela sua premiação volumosa em dinheiro e pela atração de filmes nacionais inéditos de gente muito boa e interessante. Como diferencial, haverá, pela primeira vez, exibição de filmes internacionais, parceria com a distribuidora brasileira Imovision, que comemora em Paulínia aniversário de 25 anos na ativa. 

Portanto, vem aí mais uma maratona. Estou aberto aos filmes, veremos o que eles nos reservam. Para acessar a página oficial do evento, clica aqui.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Entre mistérios e apatias

O Homem Duplicado (Enemy, Canadá/Espanha, 2013)
Dir: Denis Villeneuve


Curioso pensar que existe uma personalidade cinematográfica forte nesse filme, adaptado da obra homônima de José Saramago, também ele senhor de uma escrita marcadamente pessoal. Numa transposição para o cinema, esse tipo de material exige um pulso firme. Villeneuve parece saber muito bem disso, dirige o longa com respeito aos mistérios que a história proporciona, muito próximo de seu universo de tensões e intrigas.

No entanto, isso não quer dizer que a obra, no cinema, seja necessariamente satisfatória. É certo que Villeneuve estabelece um clima de estranheza aqui, mas em grande parte do longa não parece haver muito o que fazer com isso, apostando o tempo todo numa cansativa atmosfera de desespero, para além do tom surreal mal ajambrado, pincelado aqui e ali na trama.

Ora, o professor de História Adam (Jake Gyllenhaal) descobre, por acaso, um duplo seu, homem idêntico que vive na mesma cidade. Segue-o e fica visivelmente desparafusado quando atesta a semelhança entre ambos, não sabe o que fazer depois disso. Tem um relacionamento levemente conturbado com a namorada (Mélanie Laurent); no outro polo, seu sósia Anthony trabalha como ator secundário em pequenas produções, possui comportamento mais arisco e lida com o ciúme constante da esposa grávida (Sarah Gadon).

São esses pequenos conflitos que permeiam a rotina já instável dos dois homens, o que só se agrava com a descoberta da estranha duplicidade. Há certa melancolia posta em cena, ajudada por uma trilha sonora soturna e bela, mais fotografia quente e não naturalista. Ainda que a história, não contente com essa atmosfera de um quase torpor, invista em alguns lances misteriosos envolvendo visões e sonhos que perturbam os protagonistas, a narrativa não abandona sua apatia.

Na terça parte do filme, a coisa ganha outros elementos porque alguém decide deixar de ficar estupefato com aquela situação e fazer algo. Mas é justo quando o roteiro desanda, as situações soam forçadas para que algo inevitável (e trágico) aconteça e uma curiosa reviravolta tome conta da história no seu final. Quando o filme resolve se mexer, é para pior.

Existe ainda uma impressão forte de que as enigmáticas imagens que envolvem uma chave, reuniões secretas numa casa misteriosa e (mulheres-)aranhas existam como algo de simbólico, tudo envolto numa névoa de segredos da qual o filme está pouco interessado em desvendar. Não oferece nem mesmo caminhos perceptivos mais direcionados, ainda que sem a pretensão de se revelar por completo (como acontece no melhor David Lynch, por exemplo); dificulta mais do que ajuda. 

Esse é o braço surrealista do filme, contribuindo muito pouco para uma já apática história, ou antes tem o objetivo de causar certa impressão no espectador, ainda que gratuita. Está tudo tão concentrado em parecer bizarro e insondável que acaba soando como mero capricho, chegando ao ápice numa cena final desconcertante. Pena que até aí muita coisa já ruiu em meio aos mistérios.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Sob o signo do fogo

Riocorrente (Idem, Brasil, 2013)
Dir: Paulo Sacramento



Há algo de positivo em ver num filme brasileiro vontade tão grande de registrar e dar conta da sensação de morar numa grande cidade de um país tão desigual quanto o Brasil. Riocorrente busca um retrato impetuoso dessa cidade cão que São Paulo pode ser, num filme que nos chega pela marca do simbolismo, exalando brutalidade a cada cena.

Por isso é uma pena enorme que uma proposta tão corajosa emperre num problema grave de roteiro: abundam ideias, falta história e faltam personagens. O discurso combativo do filme parece questionar a forma como lidamos com a imagem artística no mundo atual, fala do estado de violência, da rejeição dos oprimidos pela sociedade, da falência do cotidiano, dentre tantas outras questões que podem ser pinçadas/interpretadas por cada um. Tudo isso cuspido na tela em forma de imagens ao léu que se querem impactantes, mas que perdem sua força logo em seguida porque não encontram continuidade num discurso cinematográfico coeso.

No entanto, há uma dessas ideias a ganhar o mínimo de consistência no longa (ideia central?): a urgência de questionar o status quo, “incendiar” a cidade. Sacramento apresenta vigor interessante na forma como cria uma série de metáforas para representar a ebulição da cidade. Riocorrente rege-se pelo signo do fogo, a cena do carro incendiado em disparada na estrada é uma das imagens mais fortes do filme em termos simbólicos, fora a cena final que representa muito bem esse conceito.

A iminência da combustão parece guiar os protagonistas, sempre confrontados com situações que parecem exigir-lhes cada vez mais uma reação diante da simples angústia de estar no mundo (ou, mais especificamente, de estar em São Paulo). O problema é quando toda essa vontade de mostrar a cara bruta da cidade esbarra num mero preciosismo simbólico de cenas que gritam a “força” do filme. Daí que dispara cenas como a dos leões rugindo na jaula, cães raivosos ladrando um para o outro, ratos roendo pilhas de jornais, o sinal que insiste em permanecer vermelho. Metáforas não faltam ao filme.

Os tipos quase marginais que Sacramento escolhe para guiar sua narrativa são cheios de inquietações e angústias, mas é muito difícil dimensioná-las no filme. Renata (Simone Iliescu) divide-se num relacionamento com o namorado, o jornalista Marcelo (Roberto Audio) e o mecânico Carlos (Lee Taylor). Esse último, por sua vez, possui uma proximidade quase paternal com o menino de rua Exu (Vinicius dos Anjos), a marginalidade estampada em sua feição dura. Todos sujeitos à vibração esmagadora de São Paulo. 

Mas é difícil entender, se importar ou acreditar naquelas pessoas que se machucam, às vezes de forma a mais gratuita possível. O próprio filme nega seu passado, seu contexto, sua história; são impenetráveis. Parecem reféns de um estado de coisas socialmente conturbadas e brutais, cada um deles com seus demônios pessoais (sem que nunca tenhamos uma noção exata de quais são eles de fato). Riocorrente termina e não se sabe ao certo de onde vem e aonde quer chegar.

sexta-feira, 11 de julho de 2014

André Setaro, pilar de uma cinefilia


Num ano que tem sido implacável para o cinema (e para a cinefilia baiana), acabamos de perder o crítico e professor André Setaro, mais um mentor, um apaixonado pelo cinema e um grande formador de plateias atentas. Uma perda pesada. Com seu jeitão peculiar e face dura, memória de ferro, um amor imenso pelo cinema clássico, de um passado que ele tanto venerava, o prof. Setaro certamente incentivou muitos a olharem para a 7ª arte de modo diferente, apaixonado, eu incluso no grupo. Na foto, ele comentava Hiroshima, Meu Amor, na última sessão do Cineclube Glauber Rocha. Mesmo com saúde enfraquecida, lá estava o professor, lúcido, espalhando sua paixão.

Curioso tratá-lo assim como professor já que nunca fui seu aluno. Não de sala de aula, mas todos que leram seus textos, todos que já o ouviram falar sobre cinema, aprenderam com ele a amar o que de melhor essa arte pode nos proporcionar. Aprendemos com ele a respeitar os clássicos, a não esquecer os filmes de outrora que construíram as bases da linguagem cinematográfica. E sorte daqueles que o tiveram como docente, foram muitos os que ele formou nas salas de aula da Faculdade de Comunicação da UFBA.

Minha admiração por Walter da Silveira, aliás, passa pelo prof. Setaro porque foi através dos escritos dele que eu vim conhecer Dr. Walter, sua importância como figura preponderante para a construção de uma cinefilia que se frutificou na Bahia.

O prof. Setaro possuía um blog que é referência fundamental para os amantes da 7ª arte, o Setaro’s Blog, além de manter uma coluna no Terra Magazine. Escreveu sobre cinema por mais de 30 anos no jornal Tribuna da Bahia. Alguns de seus textos foram editados nos três volumes da coleção "Escritos sobre Cinema – Trilogia de um Tempo Crítico", além de ter lançado uma revisão do cinema local com o Panorama do Cinema Baiano, reeditado em 2012 pela Fundação Cultural do Estado da Bahia. 

Que no descanso encontre os mestres do cinema, serelepes, no paraíso, especialmente Dr. Walter que solidificou uma querida cinefilia na Bahia, tendo continuidade no trabalho e na paixão declarada do prof. Setaro.

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Poética do amor bandido

Amor Fora da Lei (Ain’t Them Bodies Saints, EUA, 2013)
Dir: David Lowery 



Filme que causou certa sensação no Festival de Sundance em 2013, Amor Fora da Lei segue o padrão básico da produção indie com histórias pessoais de gente machucada, filmada de forma naturalista, câmera levemente trêmula e com certo ar de peninha. É uma fórmula já desgastada, que vez ou outra encontra um elemento que faz variar um pouco a equação.

Neste caso aqui, até que se ensaia um desses elementos, muito embora o resultado seja ainda um filme arrastado e mesmo genérico em termos de produção independente. O diretor e roteirista David Lowery utiliza a ambientação do western e do filme policial para tratar, no fundo, de uma história de amor entre um pequeno bandido e uma moça bonita que se sujeita a uma vida de fugas e fora dos padrões sociais.

Casey Affleck vive esse homem de fala mansa, olhar carinhoso, mas que guarda o gosto pelo perigo e o destemor à lei dos homens. Vive de pequenos roubos e vai ser preso numa emboscada em que ele, a amada e seu bando são acuados pela polícia. Ele vai para a cadeia. Enquanto isso, Ruth, personagem de Rooney Mara, vive à espera do retorno do príncipe, grávida e sozinha. Depois de quatro anos, perto de seu julgamento, ele consegue fugir.

As coisas complicam-se com a entrada em cena do policial Patrick (Ben Foster), sua queda por Ruth estampada no rosto tímido, responsável também pela busca ao foragido. A protagonista, então, vê-se cada vez mais dividida, caos e ordem surgindo como saídas possíveis.

Com tom melancólico, o filme busca uma iluminação natural que dê conta da paisagem árida e bucólica do Texas interiorano dos anos 1970. Os próprios personagens movimentam-se com certa vagarosidade, refletindo sobre sua condição, tentando achar o caminho certo entre a lei e a paixão. 

É nesse ponto que o filme mais parece estagnado do que necessariamente introspectivo, investindo em pequenos conflitos que pouco ajudam no todo, soam desinteressantes. Mas o que vale aqui é essa poética do amor bandido, colocando seus personagens presos a destinos incertos, cheios de armadilhas, perigosos, ainda que pareça pulsar um amor verdadeiro, uma bonita carga afetiva, entre eles. Nada de muito novo, nem mesmo uma história assim apaixonante.

terça-feira, 8 de julho de 2014

Fale com eles

O que os Homens Falam (Una Pistola em Cada Mano, Espanha, 2014)
Dir: Cesc Gay 


Sabe aquele clichê da mulher que conversa pelos cotovelos? Mais do que personagens de um filme de Eric Rohmer? Pois bem, essa produção espanhola inverte um tanto a coisa e reúne um time de homens de meia idade com conflitos amorosos e pessoais os mais diversos, esbarrando na dificuldade de lidar e entender seus próprios anseios.

Daí que o título brasileiro parece bem mais direto e apropriado que o original em espanhol, mais enviesado. Isso porque o que esses personagens querem (e precisam) é expressar suas angústias, receios, tentar salvar um relacionamento (ou se salvar), começar outro (ou mesmo enganar alguém), superar obstáculos.

É a típica história episódica e de esquetes independentes que captura esses homens em situações chave de suas vidas amorosas (e sexuais), indo desde o cara que descobre a traição da mulher, outro com problemas de impotência, aquele que adoraria voltar para a ex-esposa, o garanhão casado que quer se dar bem com mulheres aparentemente fáceis, etc. São as faces da crise amorosa que acomete esses homens, temperada com um humor leve, sem pesar a mão.

A terapia encontrada é por em prática esse despejar de sentimentos, coisa que vai acontecendo aos poucos em cada situação, dada a retração natural do homem em expor seus problemas íntimos. Isso faz de O que os Homens Falam um filme devidamente masculino, no fim das contas, para além do fato de que cada episódio evolui muito bem, complexificando personagens aparentemente simples. 

Apoiado por um elenco masculino de primeira (ainda que as atrizes também deem um show) e um texto agradável que não estereotipa ninguém, O que os Homens Falam parece sempre em bom nível. Se não existe um grande momento, também não há cenas descartáveis porque sempre encontraremos personagens cativantes em meio a seus demônios.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Primeira classe

O Grande Hotel Budapeste (The Grand Budapest Hotel, EUA/Alemanha, 2014)
Dir: Wes Anderson 


Wes Anderson alcançou um momento da carreira em que tem domínio pleno de um estilo e condições ideais para colocá-lo em prática. Corre o risco de soar repetitivo, mas seus filmes têm sempre um quê de delícia que nos faz degustar cada frame deles. O Grande Hotel Budapeste é mais um passo consistente nessa trajetória, talvez mais largo que o habitual, pois mira num certo tipo de inevitabilidade de enredo gostosa de acompanhar, sem necessariamente romper com nada de muito rígido em termos de narrativa que Anderson vem solidificando.

É um cinema classudo, apostando muito numa cenografia arrojada, exuberante, colorida e simétrica, fake até, com fotografia fina e berrante, figurinos que fazem questão de serem notados. Tudo isso responsável por entendermos o universo nonsense em que as mais variadas circunstâncias podem surgir, em que os mais diversos tipos emergem, cada qual dono de personalidade excêntrica e marcante.

É um passo amplo também pela gama de personagens que fazem parte do jogo de intrigas e reviravoltas dessa história, baseada nos textos do escritor austríaco Stefan Zweig. Consequentemente, Anderson tem à disposição não só um time colossal de grandes atores, mas um grupo de profissionais que parece entender muito bem a cabeça desse cineasta, até pela experiência que alguns acumulam por já terem trabalhado antes em filmes do diretor, projetos sempre esteticamente muito próximos.

O filme começa com o encontro entre o atual dono do Hotel Budapeste (F. Murray Abraham) e um hóspede escritor (Jude Law) no estabelecimento que intitula o filme, então um lugar imponente, mas sem o brilho de seus dias áureos. Ele relata como começou trabalhando no hotel como recepcionista (vivido em sua fase jovem por Tony Revolori), no período entreguerras, apadrinhado pelo competentíssimo concierge do lugar, M. Gustave (Ralph Fiennes). Da aventura que passam juntos, ao envolver a herança de uma rica anciã (Tilda Swinton) que deixou para Gustave uma rara peça de arte a contragosto de sua família, que então os persegue impiedosamente, nasce entre eles dois uma sincera amizade.

A narrativa ganha ares mais divertidos especialmente quando sai do hotel, algo talvez surpreendente caso desconheça-se a predileção de Anderson pelo filme de estrada, pela coisa da fuga ou de uma busca empreendida por seus personagens. O diretor sente-se livre para fazê-los percorrer cenários os mais diversos (até mesmo outros hotéis de luxo), esbarrando-os numa série de pessoas tão ou mais excêntricas quanto eles, angariando afetos e desamores.

Com esse intuito, entrega ao espectador uma história coesa, gostosa de acompanhar. Faz-nos torcer pelos mocinhos, e nem mesmo uma pitada de maniqueísmo (especialmente no retrato dos vilões que perseguem a dupla principal, os tipos nazistas interpretados por Willem Dafoe e Adrian Brody) soa problemática naquele ambiente assumidamente farsesco, mas muito cuidadoso com seus personagens e conflitos. 

Para além da embalagem bem embrulhada que acusa de cara a personalidade do diretor por trás da obra, O Grande Hotel Budapeste cativa via história aventuresca com muita facilidade. Algo assim já vinha equilibrado em alto nível no longa anterior, Moonrise Kingdom. Porém, ganha aqui, senão o filme mais maduro de Anderson, pelo menos mais uma de suas grandes realizações.

terça-feira, 1 de julho de 2014

Vênus nua

Sob a Pele (Under the Skin, EUA/Reino Unido/Suíça, 2013)
Dir: Jonathan Glazer 


A impressão mais forte durante a exibição de Sob a Pele é de se estar, do início ao fim, diante não de uma obra que se utiliza dos elementos da ficção científica, mas sobretudo de um genuíno exemplar do gênero. O mais misterioso, mais intrigante, estimulante, cheio de interrogações que permanecem com o espectador e que o interpelam.

Glazer é dos cineastas raros que nunca busca o óbvio em seus trabalhos, realizando filmes com muita personalidade, mas diferentes entre si. Flertava com o pop e o filme de máfia em Sexy Beast, buscou a estranheza em Reencarnação, história muito realista apesar da impressão inicial, e agora se entrega à obscuridade de uma trama sem caminhos fáceis.

Sob a Pele acompanha uma personagem misteriosa (Scarlett Johansson), tudo indica ser uma alien que chega à Terra, assume corpo feminino e busca presas masculinas. Ela conta com a ajuda de um também misterioso personagem motoqueiro (terráqueo? um alien já estabelecido aqui? um escravo?). Mas sua maior arma é o próprio poder de sedução do qual tem plena consciência de possuir.

O grande trunfo do filme é nunca entregar suas artimanhas de badeja. É uma experiência de imersão, embora nem tudo seja indecifrável, tipo de coisa que exige participação do espectador para significar o que vê na tela. As cenas iniciais, por exemplo, banhadas em som e luz instigantes, apontam para a chegada desse ser na Terra, ganhando forma, enquanto aprende, não se sabe bem como, o inglês bretão para se comunicar com as pessoas na Escócia onde ela aporta e passa a atacar os homens desavisados. Para quê finalidade, não se sabe.

Aliás, há um trabalho de som e trilha sonora muito forte aqui, ajudando Glazer a estabelecer, desde o início, o tom soturno dessa história que vai ganhando ares cada vez mais bizarros. A cena do primeiro “ataque” é qualquer coisa de incomum (e fenomenal) pela inevitabilidade de como se dá, acrescida, na segundo investida, de outros detalhes peculiares.



Se a narrativa do filme é entregue a esse todo intrigante, interessante perceber como essa protagonista é fisgada pelo desconhecido dos segredos humanos. Ela vai descobrindo, aos poucos, seu novo corpo e também a gentileza de alguns homens (eles não são todos iguais, afinal!). Ela, que parecia senhora da situação, vacila e passa a questionar sua posição, buscando mesmo experimentar algo que lhe pareça novo, anormal, também misterioso para si.

Nesse momento, há uma cena quase banal, mas fundamental para tentar entender os descaminhos dessa personagem na Terra: depois de seduzir mais uma vítima (ou se fazer de seduzida), ela entra no jogo dele, vai para sua casa e aceita deitar-se com o gentil estranho. Mas no momento exato da penetração, afasta o homem, busca um abajur e ilumina o próprio sexo, como se questionasse o que de fato tem ali que aqueles homens tanto almejam. 

É o mistério de se descobrir mulher, e, especialmente, de ter um corpo que inspira (e busca?) satisfação em outro corpo, apesar dela não entender bem como e por que isso acontece. Johansson, desnudando-se para compor essa personagem com uma frieza exemplar, acaba, no fundo, revestindo-se de segredos, fisgada pelo enigma humano, perdendo-se nele.