sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Alguns curtinhas

Era Uma Vez... (Idem, Brasil, 2008)
Dir: Breno Silveira


É uma surpresa enorme constatar o quanto esse novo filme de Breno Silveira é eficiente o bastante para cativar o espectador, da forma mais genuína e simples possível. Depois do bom Dois Filhos de Francisco, lá vem ele com uma historinha de amor, que tinha tudo para cair no sentimentalismo anti-preconceituoso, entre um favelado e uma garota de classe alta, ainda mais com um título tão sem criatividade como esse. Ao mesmo tempo em que Silveira não possui grande apelo estético, ele sabe conduzir cada cena no tom certo, e já me encantou pela maneira como filmou a aproximação entre Dé (Thiago Martins) e Nina (Vitória Frate). A história avança com reviravoltas que fazem total sentido e nunca soam gratuitas, e ainda consegue fazer crítica social. Pra completar, Thiago Martins é um achado e sua composição de um personagem ingênuo, tímido, mas apaixonado, parece falar muito mais através do olhar. Além disso, é filme de urgência e tem os dois pés no chão.


Canções de Amor (Les Chansons D’Amour, França 2007)
Dir: Christophe Honoré


Depois de um incrível Em Paris, cuja melhor cena é uma reconciliação cantada ao telefone, eis que o francês Honoré nos presenteia como o adorável Canções de Amor, dessa vez assumindo de vez o musical como forma. Não um musical clássico, mas um filme em que os personagens se pegam cantando do nada. Ismael (Louis Garrel), Jolie (Ludivine Sagnier) e Alice (Clotilde Hesme, adorável) vivem uma relação a três, quando um terrível acidente muda os rumos de suas vidas amorosas. Completa o elenco uma triste Chiara Mastroianni e ainda o insistente Grégoire Leprince-Ringuet, cada qual com seus bons momentos em tela. O texto leve e gostoso, aliado ao charme de seus atores, se espelha nos números musicais, todos muito bons, como o belo Ás-tu Déjà Aimé, que só perde para o trio Garrel-Hesme-Sagnier cantando Je N’aime que Toi nas ruas de Paris. E mesmo nos momentos mais dramáticos, o filme consegue se equilibrar e nunca perde seu charme. O relacionamento a três e, sobretudo, o desenlance gay que acontece mais ao fim nunca se impõem como algo definitivo, são somente possibilidades apresentadas aos personagens. E se isso lhes faz bem, quem pode julgar? Melhor é aproveitar as ruas (e sons) de Paris.


Mamma Mia! (Idem, EUA, 2008)
Dir: Phyllida Lloyd


Mais uma vez um filme se utiliza das canções de uma banda conhecida e com um repertório cheio de ótimas composições para construir sua história. Em Across the Universe havia uma artificialidade na forma como as músicas eram usadas para montar uma história que soava solta. Aqui nesse Mamma Mia!, se apropriando das canções do Abba, existe um foco, mas frágil pela pouca relevância da história que está contando. Sophie (Amanda Seyfried) não sabe quem é seu pai e no dia de seu casamento convida três ex-namorados de sua mãe (Meryl Streep) para descobrir qual deles a gerou. Como a dúvida só deve aparecer no fim do filme, é preciso criar vários outros momentos para fazer correr o filme e é uma alegria quando alguém começa a cantar porque as músicas do grupo sueco dos anos 70-80 são a melhor coisa do obra (destaque para Dancing Queen e a pouco conhecida Voulez-vous). Nem a competentíssima Meryl Streep consegue trazer algo de proveitoso para o filme. Mas o pior de tudo são as tentativas de trazer humor, poucas vezes eficiente.


O Ódio (La Haine, França, 1995)
Dir: Mathieu Kassovitz


Um dia na vida de quatro marginais inconseqüentes nas ruas de Paris e suas aventuras no submundo da capital francesa rendeu um dos longas mais festejados dirigidos por Mathieu Kassovitz, ator conhecido por fazer par romântico com Amélie Poulain. O filme é duro e potente, ajudado por uma fotografia em preto-e-branco intenso que traz uma atmosfera propícia ao mundo monocromático e sem vida de seus personagens. O malandro Vinz (Vincent Cassel), o negro Hubert (Houbert Koundé) e o descendente árabe Saïd (Saïd Taghmaoui) passam o dia fumando, procurando baderna, falando baboseiras e expostos a todo tipo de violência. O texto é rápido e confere força a seus personagens, na medida em que criamos aversão por Vinz e podemos passar a nos importar com Hubert, por exemplo. São personagens palpáveis. Ao fim, Said retoma a parábola, dita no início, de um homem que cai de um edifício de 50 andares e a cada lance, diz: “até agora, tudo bem”. Pois é justamente esse pensamento que define os personagens: no submundo marginal em que vivem, mal sabem eles que estão em queda permanente e quando o impacto como o solo chega, ele vem de supetão, impiedoso e arrasador, como fica claro na surpreendente cena final.


Missão Babilônia (Babilonia A.D., EUA/França, 2008)
Dir: Mathieu Kassovitz


O mais incrível é saber que o cara responsável por esse Missão Babilônia é o mesmo diretor de O Ódio. Kassovitz já tinha se vendido ao cinema comercial norte-americano com o péssimo Na Companhia do Medo e dessa vez retorna com um filme catástrofe que além de confuso, é mais furado que uma peneira. Vin Diesel é esse cara durão, musculoso, dá porrada em todo mundo e cuja função é levar uma jovem (Mélanie Thierry) aos Estados Unidos, num mundo totalmente arrasado e violento. Ela vive reclusa num mosteiro, afastada de toda a perversidade do mundo, sob os cuidados da Irmã Rebecca (Michelle Yeoh, que faz muito com o pouco que lhe é oferecido) e parece ter dons sobrenaturais, logo chamando a atenção de um grupo religioso extremista que quer seqüestrar a garota. As reviravoltas do filme são patéticas, as cenas de ação são montadas de forma tão bagunçada e rápida que não se sabe exatamente o que está acontecendo na tela; os grandes atores franceses Gerard Depardieu e Charlotte Rampling são totalmente desperdiçados. E já aprendi a fugir de todo filme que traz Vin Diesel na capa – nem Sidney Lumet conseguiu tirar proveito.

sábado, 25 de outubro de 2008

A volta do que não foi

Encarnação do Demônio (Idem, Brasil, 2008)
Dir: José Mojica Marins


Confesso: quando eu era criança tinha medo do Zé do Caixão. Lembro ainda hoje de suas aparições na TV com aquelas unhas enormes e a cara de espanto falando sobre morte, funerais e caixões. O tipo de produção trash e grotesca de seus filmes só ganhou notoriedade no país quando, já em decadência, sua obra foi descoberta no exterior, ganhando ares de cult dentro do circuito alternativo. E aí Encarnação do Demônio se torna um tanto emblemático. Embora marque o louvável retorno dessa figura mítica, parece que o filme se justifica mais pelo retorno e não por uma obra puramente cinematográfica.
Mas para quem conhece e gosta do terror trash, escatológico e repulsivo de Mojica, saiba que ele se mantém fiel às suas origens. Após 40 anos no cárcere, Zé do Caixão ganha liberdade e volta a procurar a mulher ideal que possa geral um filho perfeito e perpetuar a linhagem macabra de seu sangue. Ao mesmo tempo, ele é perseguido por imagens macabras de seu passado, ou seja, as pessoas mortas brutalmente por ele.

Outra dissicronia é notada no filme: uma produção assumidamente B estranha por contar com um tratamento estético classe A, visível por uma fotografia intensa e direção de arte caprichada. Se esse esmero todo nos fornece belas imagens, esteticamente impecáveis, também minimiza o atrativo de seus filmes anteriores que, pelo simples fato de pertencer ao cinema trash, tinham graça justamente pelo descuidado e desarrocho de suas imagens.

O mundo de Zé do Caixão é imundo, fétido, e o personagem é impiedoso com suas vítimas. A gana com que ele persegue seu ideal só encontra razão de ser na gênese desse personagem, surgido anteriormente nos outros dois filmes que completam essa trilogia: o ótimo À Meia Noite Levarei a Sua Alma e o excepcional Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver. Visto assim, a história possui algo de ingênuo, o que nos faz ter simpatia com Zé do Caixão, na medida em que ele se configura como o anti-herói macabro dos filmes.

Ao fim desse Encarnação do Demônio, o personagem chega a dizer algo do tipo: “Imagens são para sempre, capitão”. Essa fala marca a persistência do grotesco personagem no imaginário das pessoas. Por isso, esse cara de capa preta, unhas imensas e voz grave nunca deixará de ser um ícone do Cinema brasileiro; nem deixará de povoar os pesadelos de outras crianças (ou mesmo adultos).

domingo, 19 de outubro de 2008

Significa muito

Sem muito tempo para escrever depois da maratona da Mostra Cinema Conquista, eis que meu amigo Elizio me presenteia com um belo texto sobre O Arco, filme do sul-coreano Kim Ki-duk. Abaixo para apreciação:

O Arco (Hwal, Coréia da Sul/Japão, 2005)
Dir: Kim Ki-duk


Mistura de olhares orientais, que na verdade deveriam até ser fechados. Mas, diferente desta visão fechada sobre os olhares orientais, nos deparamos na verdade com um filme que fala com os olhos, com canções, com uma "quase harpa", com um "quase arco" (na verdade, as duas coisas juntas). Sem palavras, a garotinha de 16 anos, interpretada por Yeo-reum Han (que eu não conhecia, mas que já virei fã), representa o complexo mundo da sensibilidade e o porquê de muitas vezes o colocarmos com incompreensível.

Agora vamos ao que esta mistura de ritmos e sentidos resulta, ou melhor sente, e em que cenário se apresentam: em um barco de pesca no mar (por sinal, dos mais velhos, assim como o seu dono - um homem de 60 anos. Este mesmo, cria uma menina até que ela complete 17 anos (mesmo que para isso seja possível correr com um calendário). Eles vivem uma existência tranqüila e reclusa (onde a cumplicidade inocente está presente), rezando (um pecado este sinônimo para simplicidade) e alugando o barco para pescadores, até que suas vidas são alteradas com o embarque de um estudante adolescente. (Repare aqui que os personagens não precisam de nomes, e como isso, não o tem).

Outra coisa ausente na película (seguramente um sinônimo melhor pra representar esta obra) se chama diálogos (e precisava?). Os olhos repuxados já compõem tais palavras. Na verdade, a mistura sentimento e música tendenciam o roteiro do filme, por sinal belíssimo. Num pecado tremendo, o sentimento "vil e egoísta" – referência a um dos poucos diálogos do filme – do velho (será mesmo assim?), poupa a menina do sentimento inocente que sente pelo jovem que, apenas queria pescar no barco. Neste momento, o filme ganha momentos de tensão entre o velho e a pequena menina. Quando o terceiro elemento vem acompanhado de admiração pela menina.

Ki-duk Kim (que depois fui ler já conquistou 23 prêmios e obteve 21 nominações em festivais pelo mundo) celebra a vida com seu roteiro e direção, neste filme. Me empolguei para ver os outros quartoze dele agora. O que muitos podem ver no filme, como excesso de lirismo eu vejo como qualidade. Por quê? Porque traz a música no lugar das palavras (não como um musical), mas um culto a paz que esta música transmite. Isso tudo me induz a dizer uma única coisa, sobre esta obra: poesia cinematográfica.

O mais instigante é que num cenário bucólico (o barco) o espectador consegue romper o silêncio imposto pelo semblante dos personagens, pela fotografia maravilhosa, e pelo imposto tom filosófico.

Isso aqui não é uma crítica, muito menos uma resenha. Isso aqui na verdade é um agradecimento, um culto a este filme, que não menos obstante, não posso terminar este texto sem esse adjetivo: fantástico! No olhar de uns, talvez forçoso, no meu um simples olhar (e isso já significa muito).

Por Elizio Chiacchio

sábado, 18 de outubro de 2008

Ranking da Mostra:

Em comparação com o ano passado, a Mostra Cinema Conquista 2008 não nos revelou tantas pérolas assim (foram menos filmes também). De qualquer forma, tivemos ótimos momentos. Abaixo minha lista de preferência dos curtas e longas (que conta com a presença de A Casa de Alice, Mutum e A Via Láctea dos quais eu já tinha visto antes), com a devida cotação em estrelas ao lado:


Longas:
Santiago – 4,5
Mutum – 4
A Casa de Alice – 4
Nossa Vida Não Cabe Num Opala – 4
Pan-Cinema Permanente – 3,5
Crítico – 3,5
Estômago – 3,5
Waldick, Sempre no Meu Coração – 3
A Via Láctea – 2,5
Os Desafinados – 2
Pequenas Histórias – 2


Curtas:
Trópico das Cabras – 4,5
Esconde-Esconde – 4,5
Dossiê Rê Bordosa – 4
A Cauda do Dinossauro – 4
Os Filmes Que eu Não Fiz – 4
O Guarani – 4
Icarus – 3,5
A Peste da Janice – 3,5
Vida Fuleira – Um Artista e a Bailarina – 3,5
Booker Pittman – 3
Meio Poeta – 3
Passo – 3
Tira os Óculos e Recolhe o Homem – 3
Damião Experiença – 2
Dia de Visita – 2
A Cidade Cargueiro – 2
E vocês aí, quais os melhores e piores?

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

O Cinema por ele mesmo

Por mais que o longa de encerramento da 4º Mostra Cinema Conquista tenha sido bastante significativo para os interessados em analisar e discutir o próprio Cinema, não achei Crítico tão pertinente para encerrar o evento. De qualquer forma, é uma tentativa de apurar o olhar do público. Pena que o Centro de Cultura foi se esvaziando ao longo da exibição. O próprio Cinema se discute também nos ótimos curtas da noite: o documentário O Guarani, resgatando a memória de um antigo cinema baiano (com direito a presença dos diretores da terra), e o hilário Os Filmes Que Não Fiz, sobe um diretor fracassado com seus roteiros absurdos.


O Guarani (BA/BR, 2008)
Dir: Cláudio Marques e Marília Hughes


O Guarani é um documentário feito para resgatar a memória de um dos mais importantes cinemas da cidade de Salvador, pelo menos para os cinéfilos que o freqüentavam na época (a partir da década de 50). Foi lá que o primeiro longa-metragem baiano, Redenção, foi lançado. Foi lá que a exibição de Deus e o Diabo na Terra do Sol, clássico de Glauber Rocha, causou grande comoção fazendo todos os presentes chorarem por mais de meia hora depois do silêncio que se seguiu após a exibição. Foi lá que o formato cinemascope primeiramente apareceu no Brasil. Foi lá que o grande ensaísta baiano, Walter da Silveira, criou o Clube de Cinema. E é lá que a estrutura do antigo Cine Guarani se encontra jogada e carcomida pelo tempo. O curta traz belas imagens de arquivo e faz uma denúncia ao descaso com o local. Mas reverencia uma bela época para o cinema e os cinéfilos na Bahia.


Os Filmes Que Não Fiz (MG/BR, 2008)
Dir: Gilberto Scarpa


É com uma idéia bastante original que Gilberto Scarpa tenha feito talvez o curta mais engraçado exibido na Mostra. O filme traz um diretor de cinema (também chamado Scarpa) revelando as idéias para os seus filmes que nunca chegaram a ser feitos. Os roteiros, ditos geniais, nunca saíram do papel. Fica só a esperança do diretor em algum dia realizar aqueles filmes com histórias tão toscas. É também uma forma de falar sobre questões que permeiam a realização de um filme: a choque criativo entre diretor e roteiristas, a falta do ator ideal para um papel, o desânimo de uma equipe de filmagens em fazer aquele trabalho inútil. Um curta metalingüístico e divertido, um cineasta rindo de si mesmo e transformando a difícil luta de fazer um filme em material criativo.


Crítico (PE/BR, 2008)
Dir: Kleber Mendonça Filho

A experiência do crítico de cinema Kleber Mendonça Filho, aliada ao seu posterior trabalho como cineasta de curtas-metragens premiados, rendeu um longa investigativo sobre essas duas áreas ligadas ao Cinema. Cineastas, críticos (que parecem estar sempre em lados opostos do ringue) e alguns atores discutem o pensar da crítica cinematográfica nesse documentário que fechou a programação da 4º Mostra Cinema Conquista.

Um filme de múltiplas vozes em que se revela o respeito e a aversão por esse peculiar texto jornalístico. Vendo o filme pareceu que muitos diretores não torcem tanto o nariz para a crítica, não sei se por estarem diante de um crítico para fazer parte de um filme sobre o assunto. Me admira também a grande quantidade de diretores que dizem ler muito as críticas e o fato deles sempre se lembrarem daquelas negativas, mesmo se as positivas sejam em maior quantidade.

Daí a surpresa com cineastas que dizem como a crítica interferiu na feitura de um filme. O documentarista Eduardo Coutinho chegou a dizer que depois de uma jornalista ter achado uma cena de seu filme preconceituosa, a partir de uma pergunta feita por ele a um entrevistado, ele decidiu cortar a cena. Ou quando Walter Salles cita a grande importância de Pauline Kael, crítica norte-americana, na formação de uma geração de cineastas (Scorsese, Coppola).

Mesmo assim, existem rancores e decepções. Nem todo cineasta está tão aberto assim a uma ferroada contra seu filme. Ou quando se percebe que a crítica leva em consideração o lado pessoal, o não gostar de determinado ator/cineasta/produtor. Sem falar quando a crítica é vista também como peça publicitária. Não é difícil imaginar uma crítica favorável somente para vender determinado filme.

O documentário se constitui de depoimentos recolhidos ao longo de oito anos de contato com cineastas e críticos do mundo. Poderia ser cansativo ficar ouvindo tanta gente falando sobre o mesmo assunto, mas é interessante saber o pensamento de cada um deles, principalmente porque o assunto “crítica cinematográfica” é muito pouco discutido. Kleber Mendonça Filho ainda intercala imagens enigmáticas às falas, mas a mais interessante é aquela em que cenas de películas em rotação se intercalam com jornais impressos rolando nas gráficas.

Mas talvez, depois de tantas reflexões interessantes, é Fernanda Torres quem relembra uma das falas mais pertinentes, quando Orson Welles diz que “toda crítica é uma autobiografia”. Esse conceito faz pensar na subjetividade de quem a escreve a crítica (alguém chega a dizer: “o crítico é um ser humano”), mas também tira dos cineastas o peso para uma crítica negativa sobre seu filme. No final das contas, o que vale é pensar e discutir o cinema. E não importa se você gostou ou não do filme, mas o porquê disso. E nesse bate-bola deve prevalecer a troca de conhecimentos, tanto para o cineasta, para o crítico e, sobretudo, ao leitor/espectador.

Depois de cinco dias intensos com exibição de filmes, talvez a idéia de fechar a Mostra com essa obra revele a necessidade de as pessoas pararem para pensar o Cinema como um todo. Uma forma de apurar o olhar para o cinema e para aquilo que se vê. Digerir imagens em movimento, esse é o lance!

domingo, 12 de outubro de 2008

Historietas

Foi minha amiga Indhira quem me lembrou que hoje é dia das crianças. Talvez por isso a tarde do sábado tenha sido reservada para filmes mais focados no universo infantil ou para esse público. Nada que criançonas como eu (nós) não possa prestigiar. Mas apesar da boa disposição do longa Pequenas Histórias para narrar suas historietas, foram os três curtas que fizeram a tarde valer a pena.

Icarus (SP/BR, 2007)
Dir: Victor Hugo Borges


Essa animação em stop-motion traz um garoto que imagina que em todas as noites seu pai visita seu quarto, mas ele sempre está dormindo. Com uma sutileza muito grande, o filme trata da perda e da solidão. Victor Hugo Borges já tinha feito Historietas Assombradas (para crianças malcriadas) (Veja aqui), exibido dois anos antes na Mostra, e capricha mais uma vez na composição das cenas, bastante detalhista nos mínimos objetos do quadro. O filme ainda celebra o poder da imaginação, como fuga da realidade, que parece se perder à medida em que vamos ficando mais grandinhos.


A Peste da Janice (RS/BR, 2007
Dir: Rafael Figueiredo


Numa escola só para meninas, a história da pequena Janice, de origem humilde, filha da faxineira, que ganha uma oportunidade de estudar junto com as garotas de classe alta. Tenta fazer amizade com Virginia, mas sofre com o abuso das outras meninas que sempre que tocam em Janice, dizem estar contaminadas com a peste, a peste da Janice. O filme nunca cai no óbvio, embora esteja lá a velha história da menina que se sente excluída no ambiente escolar. Por mais que Janice tente, ela sempre está à parte das brincadeiras; Virginia parece ser a única que pode quebrar esse gelo. O final deixa uma excelente interrogação sobre a possibilidade de compreender o próximo e sobretudo sobre a conquista da amizade. (Ver aqui)


Passo (SP/BR, 2007)
Dir: Alê Abreu


Esse curta bem curtinho (são 3 minutos) revela o processo de criação na mão daquele que faz o desenho. A gravura ganha movimento e cor na figura de um pássaro que procura fugir de uma gaiola. Uma animação das mais simples, com traçados finos e econômicos, que ainda traz uma surpresinha no final. Mais uma vez, nossa imaginação é celebrada, agora como metáfora do próprio pássaro que ganha a liberdade. (Ver aqui)


Pequenas Histórias (MG/BR, 2007)
Dir: Helvécio Ratton



Depois do duro e politicamente engajado Batismo de Sangue, apresentado ano passado na Mostra, o cineasta mineiro Helvécio Ratton volta o seu olhar para histórias mais leves, “causos” da cultura popular oral. O filme conta com uma personagem-guia (Marieta Severo) que narra histórias simples e do imaginário popular. Mesmo que pareça ser mais direcionado ao público infanto-juvenil, o texto é um tanto óbvio e as histórias não passam de engraçadinhas (por vezes um humor caricatural), outras um tanto bobinhas. E só!

A primeira é sobre um pescador (Maurício Tizumba) que encontra uma sereia (Patrícia Pilar) na beira do rio e em troca de pescaria farta, se casa com ela. Uma história um pouco longa para um desfecho bem fraco, acompanhado de lição de moral (é preciso tratar bem quem você ama!). Depois, um aprendiz de coroinha (Miguel de Oliveira) passa a se assustar com a terrível história da procissão das almas que toda última sexta-feira do mês aparece nas ruas. Nesse conto, a força da imaginação surge como viés para sustentar a fantasia e o medo do garoto.

Deixando o tom fabuloso, o próximo segmento mostra o encontro entre um Papai Noel desastrado e arrogante (Paulo José) com um menino de rua. Aqui, o tom fica mais piegas com direito, mais uma vez, a liçãozinha de moral (é preciso ajudar aos mais necessitados!) e final piegas. Por último, a história do atrapalhado Zé Burraldo (Gero Camilo), um sujeito cuja principal característica é sua burrice sem igual. Aqui temos talvez os momentos mais engraçados (a encenação da peça de teatro, por exemplo), embora o riso às vezes seja um tanto forçado. Mas me parece o melhor segmento.

O filme ainda faz uma homenagem à tradição da cultura oral responsável por passar adiante as histórias dos mais velhos. Logo de início, Marieta Severo indaga sobre a possibilidade daquele que conta o conto em “aumentar um ponto” e da recriação cada vez que alguém (ou a mesma pessoa) reconta a história. Além disso, a personagem aparece como uma costureira que trabalha numa espécie de colcha de retalhos e bordado enquanto narra os contos. Nada mais ilustrativo para um filme que se constrói a partir de pequenos fragmentos de história para formar um todo.

sábado, 11 de outubro de 2008

Remorso expurgado

A chuva não deu trégua e continua fina e incômoda. Mas o que incomodou mesmo na noite de ontem foi o documentário de difícil digestão Santiago, de João Moreira Salles. Nunca tinha visto tanta gente abandonar a sessão ao meio. E de fato não é um filme fácil, estou até agora desconcertado com algumas coisas e ainda processando o filme na mente. Mesmo quem ficou até o final não parece ter gostado. Para mim, é o melhor filme da Mostra até então (acaba hoje). E se o curta-metragem Dia de Visita é construído no mias simples formato documentário, Esconde-Esconde (não deixe de ver aqui) é de um impacto incrível enquanto narrativa. Todos os três filmes revelam personagens que buscam expurgar o remorso.


Dia de Visita (DF/BR, 2007)
Dir: André Luis da Cunha


Depois que os dois filhos de Dona Sônia foram presos, essa senhora evangélica passou a visitar a cadeia e ajudar os outros presos, se comunicando com suas famílias e lhes dando suporte junto às instancias judiciais. O curta é mais a celebração da luta dessa corajosa mulher, nos dando um baita exemplo de solidariedade, mas que não possui nenhum grande atrativo cinematográfico. Chega um momento que se torna extremamente cansativo acompanhá-la pelas ruas, enquanto sua fala em off perpassa os longos 25 minutos de filme. Ela discute sobre a lentidão e injustiça do sistema judiciário, a possibilidade de redenção dos presos e o bem-estar em ajudar outras pessoas necessitadas, coisas que não chegam a ser novidades. Mas ser testemunha de seus esforços é algo que não podemos ignorar.


Esconde-Esconde (RJ/BR, 2007)
Dir: Álvaro Furloni


Quando seu Amaro chega em casa e encontra a sopa no fogão já queimada, ele procura a mulher que está escondida no armário brincando de se esconder do filho Marquinhos. Ela chama o garoto para vir almoçar, mas ele não vem. Percebemos a cara de preocupação e tristeza de seu Amaro, para logo depois descobrirmos que o filho do casal já morreu. A fotografia em preto-e-branco um tanto desbotado dá o tom de melancolia que o filme carrega, nessa tentativa de fuga evidenciada pela brincadeira de esconde-esconde. Detalhes que me incomodaram um pouco no início (a preocupação em mostrar as câmeras de vigilância, a diferença de idade entre o casal) fazem total sentido ao fim da projeção, quando o curta consegue nos pegar de surpresa com uma reviravolta ainda mais triste. É uma reflexão sobre a impossibilidade do tempo em curar as cicatrizes e de como as pessoas podem deixar rastros indeléveis em nossa memória. (Assista)


Santiago (RJ/BR, 2006)
Dir: João Moreira Salles


É uma experiência no mínimo curiosa e extremamente fascinante assistir a esse documentário de João Moreira Salles, embora ainda não saiba o quanto exatamente eu tenha gostado (as quatro estrelas e meia me parecem justas, mas elas nunca são definitivas). Ainda assim, o filme é difícil por exigir do espectador atenção e envolvimento a fim de refletir sobre o autor e seu personagem. E é incrível como Santiago parece crescer na memória cada vez que penso nele.

Mas de uma coisa eu tenho certeza: o filme não é primeiramente sobre Santiago, mordomo da riquíssima família Moreira Salles, mas sobretudo acerca do fazer cinematográfico e, mais ainda, sobre seu próprio realizador. Confesso que nunca vi um diretor se expondo tão diretamente numa autocrítica bastante corajosa. Daí Santiago alcança um tom de sinceridade absurdamente encantador.

Em 1992, João Moreira Salles resolveu fazer um documentário sobre a figura do mordomo da família por achá-lo fascinante (e realmente o é). Com mais de nove horas de gravação, teve uma dificuldade enorme em montar o material (falta de experiência), deixando o trabalho incompleto. Dois anos depois, Santiago veio a morrer. Em 2005, Salles resolveu concluir o único filme que não conseguiu terminar. O material era o mesmo, ele que já era outro.

E Santiago se mostra um personagem fascinante: erudito e refinado, possui um conhecimento enorme sobre dinastias importantes, sobre cinema, música clássica, literatura e fala vários idiomas. Mesmo velho, possuía uma memória de elefante e uma lucidez ímpar, além do carinho que demonstra pelo diretor, seu patrão, o Joãozinho.

Narrado em off, sempre em primeira pessoa, o diretor conta como tinha planejado, na época, o roteiro, as filmagens e as entrevista com o mordomo que já estava aposentado e vivia sozinho num apartamento. O filme se constrói a partir da própria construção, pois além de explicar o processo das filmagens, o filme insere momentos em que o próprio diretor dá instruções para Santigo, como se portar, o que falar e de que forma. Aqui, podemos discutir o documentário também como falseamento da realidade. Tudo que vemos será mesmo verdadeiro, puro?

Tudo isso para que Moreira Salles faça uma reflexão sobre si mesmo. Em determinado momento ele chama a atenção para os planos do filme que são sempre distantes e aí ele percebe o quanto as filmagens que realizou foram secas e imperativas. Ele não deixava espaço para que seu personagem exista por si só no filme que queria fazer, mas sempre da maneira que o João queria que ele (a)parecesse. Santiago acatava prontamente o que era ordenado, como bom empregado que foi. Agora, João se envergonha disso, faz o filme para tentar se redimir, e é nessa reflexão sincera e amarga que o filme alcança um nível de humanidade elevadíssimo. Uma verdadeira pérola.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Contra a parede

Desde a manhã de ontem o tempinho frio tão característico de Vitória da Conquista já se prenunciava, mas foi o dia de hoje que amanheceu sob aquela chuvinha fina (e irritante). Mesmo assim, a sessão dessa tarde teve um público maior do que os outros dias nesse horário, por incrível que pareça. Um dos curtas exibidos, Meio Poeta, originário da cidade de Salvador, contou com a apresentação do próprio diretor, Caco Monteiro. O outro curta, Vida Fuleira (pode ser visto aqui), possui uma proposta mais experimental e irreverente. Nenhum dos dois preparava para a porrada que foi Nossa Vida Não Cabe Num Opala.


Vida Fuleira – Um Artista de Rua e a Bailarina (RJ/BR, 2007)
Dir: André Sampaio


Encontrar uma sinopse para esse curta é uma árdua tarefa já que desde o início (e até o fim) nos é jogado na tela sucessões de seqüências que inicialmente sugerem o surreal, mas logo vão se encaixando numa profusão de imagens que se pautam pela agilidade. O curta evoca o cinema mudo tanto na música enquanto guia narrativo quanto na fotografia envelhecida, mas bem caprichada. Mas há também algo de documental nas cenas em que artistas de rua fazem as mais variadas e loucas performances, como o senhor que coloca três batatas inteiras na boca. Sobra ainda lugar para o melodrama no romance entre um artista e uma bailarina, com direito a reviravolta digna de novela. O fato de saber que o diretor desse curta também conduziu Tira os Óculos e Recolhe o Homem, exibido ontem à tarde e resenhado mais abaixo, torna claro o uso de um ritmo frenético e irreverente. Chega a ser ingênuo, mas por isso mesmo agradável.


Meio Poeta (BA/BR, 2008)
Dir: Caco Monteiro


Em Salvador, logo após se casar, a mulher revela para a família que seu marido é “meio poeta”, já que recitou poemas para ela na noite de núpcias. Isso causa um desconforto enorme no pai da moça que procura intimidar o rapaz a esquecer sua habilidade de fazer poemas ao acaso. O filme é uma adaptação de um conto de Luís Fernando Veríssimo que, com bom-humor, mostra o quanto a denominação de “poeta” é tão rejeitada em nossa sociedade. Ao mesmo tempo, um mendigo de rua, em clara referência a SuperOutro, média-metragem clássico da filmografia baiana dirigido por Edgard Navarro, surge com sua poesia de escracho e denúncia, talvez uma forma de relevar o quanto a poesia pode estar presente em qualquer ambiente, seja da forma que for. Mas é o final que revela o quanto a poesia está dentro de cada um de nós.


Nossa Vida Não Cabe Num Opala (SP/BR, 2008)
Dir: Reinaldo Pinheiro


Mais um longa de um diretor estreante aporta na Mostra que vai revelando longas cada vez melhores nesse que é o penúltimo dia do evento. Vencedor do Cine PE deste ano, Nossa Vida Não Cabe Num Opala (título incomum) trouxe uma narrativa mais ágil e mais agressiva em sua proposta de voltar o olhar para uma família disfuncional e os dramas de seus componentes.

Os quatro irmãos da família Castilho vão se virando numa vida de marginalidade após a morte do patriarca (Paulo César Peréio). Monk (Leonardo Medeiros) é o mais velho, mais tranqüilo, e assume o comando da família; Lupa (Milhem Cortaz) faz o tipo ladrão-brutamontes-fuleiro enquanto o mais novo, Slide (Gabriel Pinheiro), se inclina para seguir os mesmos passos dos dois últimos, mesmo em conflito interior pela falta da mãe; Magali (Maria Manoella) é a única mulher, que se vê perdida naquele ambiente grotesco e do qual não parece encontrar saída. O surreal invade o filme à medida que o pai começa a aparecer, tentando dialogar com seus filhos e reparar os erros do passado.

O desarranjo de vida dos quatro irmãos parece ser resultado da própria experiência familiar. O pai lidava com roubo e desmanche de carros, numa vida de marginalidade embrutecida, algo que deixa de “herança” para os filhos. Monk e Lupa continuam os negócios do pai, relegando a todos o mesmo destino cruel e perverso. O filme é mais um estudo da disfuncionalidade familiar que retira o humano das pessoas e coloca pedras no lugar do coração. E é triste notar que nem sempre há volta.

A inclusão da personagem Sílvia (vivida por uma Maria Luísa Mendonça bastante expressiva) que seduz e leva os três irmãos homens para sua casa (um de cada vez), possui algo de grande afetuosidade já que em seu apartamento ela busca não só o sexo mas o carinho deles. Seria o grande contraponto em relação à rotina dura e bruta em que estão inseridos. Seu discurso sobre a solidão (não necessariamente explícito) é um dos grandes momentos do filme.

E se Milhem Cortaz arrasa em todas as cenas em que aparece, com seu jeito, cara e forma de pensar e agir de um marginal, é preciso dar destaque para todo o elenco que em conjunto funciona tão bem quanto em solo. Jonas Bloch precisa de muito pouco para imprimir a onipotência de seu personagem, o grotesco dono do negócio de desmanche, grande responsável pela vida desregulada e conseqüente morte do pai do quarteto. Marília Pêra fecha o time numa participação mínima, mas marcada por uma sensibilidade sem igual.

Com uma narrativa ágil e despojada, o filme talvez perca algum tempo em seqüências que soam mais como exercício de estilo (câmera em plongé giratório observa dois dos irmãos enquanto eles fumam e falam de drogas e mulheres; ou então uma edição entrecortada prevendo cenas que vão acontecer poucos minutos depois). Mesmo assim, é uma narrativa inventiva e cheia de originalidade. Talvez falte isso ao nosso cinema, coragem para ousar. Nesse caso, deu muito certo.

Ótima digestão

E foi no terceiro dia de Mostra que o nível de qualidade cresceu. Por outro lado, nem a censura de 18 anos impediu que a platéia reagisse às cenas de teor sexual numa mistura de surpresa (???) e riso (???). Incrível como esse tipo de coisa ainda causa estranheza na maioria das pessoas, muito pela falta de maturidade. O último curta, Trópico das Cabras, o melhor até então, demorou inclusive um pouco para ser aplaudido. Mas o tom cômico de Estômago agradou bastante o público. O Centro de Cultura mais uma vez se encheu e na saída a satisfação pela programação da noite pareceu bem ampla.


A Cauda do Dinossauro (SP/BR, 2007)
Dir: Francisco Garcia


Mais uma vez, o universo do cartunista Angeli aparece num curta da Mostra este ano. Antes de mais nada, A Cauda do Dinossauro é uma bela adaptação que nos situa em uma cidade futurista e decadente onde o desejo e o sexo são proibidos e desconhecidos. Uma mulher, no entanto, procurar conhecer essa tal realização sexual. Num quarto imundo, ela encontra um homem que irá satisfazê-la. Tudo parece um tanto exagerado, do texto excessivamente apelativo e forte à exploração dos corpos (ela masturba ele, ele acaricia as genitálias dela), até o ápice do ato em si. Mas é reservado ao final um desdobramento fantástico que dá todo o sentido à história. O “ser” que ele representa e que guarda a possibilidade do sexo e de transmitir a outro essa mesma possibilidade, transforma o sexo em algo próximo do sagrado. Vale destacar uma direção de arte que compõe a sujeira daquele ambiente como reflexo da própria condição que o ato sexual ganha no filme, e que se concretiza naquele local.


Trópico das Cabras (SP/BR, 2007)
Dir: Fernando Coimbra


Quando um casal entra em crise, eles resolvem fazer uma viagem para tentar salvar o relacionamento. Depois que o homem apresenta, em off, essa premissa, o filme todo se constrói através de silêncios que acompanham os atos dos personagens, apostando mais na força da imagem. É aí que a história ganha atmosfera intimista (e íntimo) na procura pelo desejo, acompanhado de cenas bem despudoradas. O atrevimento da mulher em buscar prazer com outros homens, bem à vista do marido, é aceito porque esse é o jogo, mas ele também não ficará para trás. Fernando Coimbra dirige com exatidão e confere o tempo certo de cada seqüência, filmada com todo o cuidado de movimentar a câmera e enquadrar sempre da melhor forma. A fotografia granulada confere um tom de reminiscência muito pertinente à narrativa que termina de forma enigmática, mas cheia de significados. É ainda uma forma de mostrar o quanto um homem e uma mulher, há tanto tempo juntos, podem ser tão estranhos uns com os outros. E de que nem tudo pode estar perdido num relacionamento a dois.


Estômago (PR/BR, 2007)
Dir: Marcos Jorge


Estômago se assume como uma comédia das mais engraçadas, mesmo que muitas vezes se utilize das piadas de teor sexual e do escracho em cenas desavergonhadas. Poderia muito bem cair na tentativa de fazer denúncia social a favor dos imigrantes nordestinos ou contra o sistema penitenciário brasileiro. Mas está mais preocupado com o desenvolvimento da narrativa e da trajetória de seu rico personagem.

O matuto Raimundo Nonato (João Miguel) chega na cidade grande sem destino e passa a trabalhar como um exemplar cozinheiro num bar de esquina. Lá ele conhece a comilona e fogosa prostituta Iria (Fabiula Nascimento) por quem logo se apaixona. Mas é também descoberto por Giovanni (Carlo Briani), dono de um restaurante italiano, para quem passa a trabalhar. Paralelamente, um outro foco narrativo cronologicamente posterior mostra Raimundo na cadeia, onde ganhará a confiança dos companheiros de cela quando passar a apresentar seus dotes culinários. As duas ações se intercalam durante o filme inteiro, a partir de uma dinâmica de edição bastante competente.

Mesmo assim, o filme ainda sofre de alguns excessos. Cenas de sexo desnecessárias, corpos nus, palavrões demais, tudo isso torna a narrativa por vezes cansativa. Mas uma seqüência assim exagerada é seguida por outras bem divertidas, balanceando a equação. Um texto em nada apelativo, que retira humor do mais inusitado, sem forçar a piada, possui um frescor de originalidade que por si só é um grande atrativo. Os presidiários, as prostitutas, os donos do bar e do restaurante poderiam muito bem cair na caricatura, mas são todos personagens multifacetados e nunca unidimensionais.

E pelo visto, onde quer que João Miguel apareça, ele consegue roubar a cena. Aquele olhar de nordestino desconfiado e ingênuo parece ser algo peculiar ao ator baiano. Mas mesmo o tom de voz e os trejeitos corporais encontram riqueza em sua caracterização. Fabiula Nascimento também se destaca como a glutona prostituta Iria, numa entrega total à sua personagem. Mas é com Carlo Briani, vivendo o dono do restaurante italiano, que os dois atores encontram o timing cômico perfeito.

O filme nos deixa em dúvida sobre a razão pela qual Raimundo Nonato foi parar na cadeia, que só termina nos momentos finais do filme. Final esse que ainda revela um processo de mudança do próprio personagem. Um desfecho nada convencional é uma surpresa ao mesmo tempo assustadora e agradabilíssima.