domingo, 29 de dezembro de 2013

Últimas curtinhas do ano

Obsessão (The Paperboy, EUA, 2012)
Dir: Lee Daniels 


Não foi à toa que Lee Daniels viu seu penúltimo filme ser lançado no Brasil somente este ano, momento em que seu novo trabalho, o moroso O Mordomo da Casa Branca, também chegou aos cinemas comerciais. Isso porque Obsessão é fraco em todos os sentidos e parece só ganhar espaço pelo gás que o diretor tenta dar a seus projetos. Mas se o trabalho recente é quase nulo na sua articulação clássica com tons de crítica social, o recente é um atropelo cinematográfico. Um filme arriscadíssimo por conta da história suja que tem pra contar e pelo desequilíbrio que ronda os personagens (até aqueles de que menos esperamos).

Por isso mesmo, o projeto pede um diretor de fibra, que saiba dar contornos interessantes a desdobramentos insólitos, que saiba delinear situações complexas de gente cheia de vícios, que defenda sua história com coragem. É tudo que Lee Daniels não tem e não é. É difícil até mesmo entender quem é o verdadeiro protagonista aqui e aonde o filme quer chegar com sua trajetória de imundices. A famosa cena em que Nicole Kidman mija em cima de Zac Efron, por exemplo, não é ruim pelo seu teor, mas porque é mal orquestrada, dirigida, montada. Todo o filme é assim, cheio de opções estranhas, estética e narrativamente, sem foco, mal pensadas, sem paixão.


Spring Breakers – Garotas Perigosas (Spring Breakers, EUA, 2013)
Dir: Harmony Korine 


Pois coragem é tudo que Harmony Korine tem e demonstra nesse seu Spring Breakers, um retrato cru, crítico e escroto sobre o "ser jovem americano" de hoje. Mas longe de fazer somente um mero comentário social, o cineasta faz escolhas narrativas muito certeiras. Primeiro porque Korine cria um universo muito particular ali, desde as cenas inicias numa praia em que uma série de adolescentes dançam impudentemente e fazem gestos obscenos para a câmera. É um mundo porra-louca, ignóbil, visto como uma grande curtição despudorada. É tudo que as protagonistas (Selena Gomez, Vanessa Hudgens, Ashley Benson, Rachel Korine) desejam, é àquele universo que elas querem pertencer, por onde circular.

Depois porque, ao incorporá-las àquele ambiente, o diretor-roteirista nunca as ridiculariza; e vai além: deixa que elas se tornem senhoras daquela narrativa. Se de início o filme acompanha as meninas naquela aventura, torna o sonho em pesadelo, faz surgir um benfeitor (também um oportunista bon vivant escroto, vivido insanamente por James Franco), o filme vai saber também se curvar a elas na sua ignomínia, mais uma vez sem julgá-las. A cena em que eles invadem a casa do gângster é exemplar nesse sentido, tudo ali serve ao propósito delas, seja real ou não. É quando todo o estilo hype da fotografia multicor e a câmera lenta deixam de ser um mero modismo estético moderninho e passa a comentar, melancolicamente, aquela trajetória torta. É uma grande aventura para elas, mas do outro lado da tela só temos a lamentar.


The Bling Ring – A Gangue de Hollywood (The Bling Ring, EUA, 2013)
Dir: Sofia Coppola 


Sofia Coppola faz aqui algo parecido a Spring Breakers: tece um olha por dentro de um universo bem específico, dominado pela vontade de jovens em serem e conquistarem certas coisas; ela não os julga, mas coloca na mira toda uma sociedade baseada no consumo e no exibir. Os garotos californianos que conseguiam invadir as casas das celebridades de Hollywood com a maior facilidade, roubar e exibir-se com seus pertences caríssimos, tão abundantemente espalhados pelos cômodos das casas, tanto que muitos dos donos nem notavam a falta quando algo era subtraído, são jovens que foram criados num mundo de sonho glamouroso. Coppola é pessoa ideal para esse tipo de registro, pois parece conhecer muito bem aquele ambiente, está apta para abordar esse tipo de comportamento que lhe é tão próximo, vinda de tradicional família da indústria hollywoodiana.

Mas o maior entrave do filme é que ele pouco consegue dar maiores dimensões àqueles personagens. Conhecemos suas fraquezas, entendemos como sua mente juvenil (e delinquente-burguesa, de marca) funciona. Mas o filme pouco avança nos propósitos, conflitos, rotinas e vida familiar que eles levam, com um pouco de exceção para a personagem de Emma Watson. Por outro lado, o fascínio que Marc (Israel Broussard) nutre pelo estilo de vida da colega de furto Rebecca (Katie Chang) frustra pelo desprezo que o roteiro tem por essa relação que parece tão interessante. O filme acaba se tornando redundante nesse show de invasões domiciliares e curtição (e o filme já começa com uma). Brincando de ser Paris Hilton, aqueles jovens são mais um reflexo da monstruosidade alimentada por um certo convívio social.


Doce Amianto (Idem, Brasil, 2013)
Dir: Guto Parente e Uirá dos Rei 


Doce Amianto não tem vergonha nenhuma em ser fake. Esse é o seu trunfo, é ali que ele quer se estabelecer. Se logo no início vemos a protagonista correndo contra um fundo colorido, num evidente uso de chroma-key que já dá o tom aberrante que rege todo o filme, já deixando o espectador de sobreaviso pelo que se encontrará pela frente. Para interpretar a protagonista Amianto, o ator Deynne Augusto travestiu-se, coisa que nunca tinha feito antes. O excesso dos figurinos e maquiagem e os constantes experimentos visuais usados pelos diretores cearenses funcionam como uma carta de princípios para estabelecer o lugar deslocado em que a narrativa se encontra, ainda que o filme opere no registro do melodrama, usando e desvirtuando algumas de suas marcas.

Depois que a protagonista é abandonada, literalmente na sarjeta, pelo homem que ama, ela vai refugiar-se num mundo onírico de fantasias, tendo como única companheira a aparição de sua amiga morta, Blanche (vivida pelo próprio Uirá dos Reis). Pareceria tudo muito estranho nesse filme, caso não houvesse tanta segurança na condução de um universo tão particular. É certo que o ritmo da narrativa cai bastante quando o roteiro insere uma história paralela que em nada parece ter relação com o drama de Amianto. Não é, portanto, um filme de caminhos fáceis, mas faz muito bem ao se propor uma criação de cores tão intensas quanto pessoais.


Crazy Horse (Idem, EUA/França, 2011) 
Dir: Frederick Wiseman 


Mais um documentário de observação, dessa vez com foco nas apresentações do famoso cabaré francês de nu artístico Crazy Horse. Wiseman, mestre do cinema direto, filma uma bela sinfonia de corpos que dançam e se despem, sem pudores, com tesão. Seu maior acerto está em se interessar mais pelos bastidores e pela preparação do que pelo espetáculo em si, sendo esse bastidor já um espetáculo de luzes e curvas sinuosas em si. Mas também de reuniões da cúpula produtora dos shows, dos testes de audição e conversas de camarim e corredores que fazem parte da rotina diária da casa, também com seus problemas e conflitos internos.

O filme só perde um pouco quando se esforça por ouvir os responsáveis pelo show, mesmo que se aproveitando de entrevistas dadas a outras pessoas, como se isso não servisse ao próprio filme como respostas diretas a certos questionamentos. Busca no explicativo algumas relações e processos que se estabelecem ali naquele ambiente e por isso enfraquece a veia direta do cinema que o diretor tão bem persegue. De qualquer forma, esse olhar sobre o lado de dentro daquele lugar resplandece de beleza, excitação e apuro estético como não podia ser diferente, vindo desse cabaré e desse cineasta.


terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Memória ativa

Vocês Ainda Não Viram Nada! (Vous N’Avez Encore Rien Vu, França/Alemanha, 2012)
Dir: Alain Resnais


Alain Resnais, 90 anos, cineasta vigoroso. É o que não cansa de comprovar esse seu mais novo filme, algo que nem precisava ser atestado, vide exemplos recentes de maturidade e vivacidade fílmica, como em Ervas Daninhas e Beijo na Boca, Não!. Vocês Ainda Não Viram Nada é como um prolongamento evidente de um trato elegante com o fazer cinema, mais um trabalho de encenação caprichado, num filme cheio de camadas e conduzido com uma leveza incrível. Resnais parece dirigir brincando.

O diretor reúne ainda um time de atores sensacionais para criar um verdadeiro jogo de cena criativo em que seus personagens passam a dominar a narrativa pelo simples ato de lembrar. Poucas vezes o ser ator foi celebrado com tanto carinho como é aqui nesse filme perpassado pela memória.

Quando o diretor de teatro Antoine d’Anthac (Denis Podalydès) morre repentinamente, um grupo de atores de sua confiança recebe uma mensagem sua preparada previamente para que eles compareçam a sua casa a fim de assistir a uma projeção de sua peça Eurídice, encenada por um grupo teatral formado por jovens. Eles terão que aprovar ali se aquela nova versão ficou realmente boa. Está montado o palco de um misterioso jogo que, se esconde algo de nebuloso pela forma teatral mesmo pela qual se dá, logo ganha novos ares.

É assim que Sabine Azéma, Pierre Arditi, Anne Consigny, Lambert Wilson, Michel Piccoli, Mathieu Amalric, Anny Duperey, Hippolyte Girardot e outros, interpretando a si mesmos, vão adentrando na peça, tomando para si os personagens que outrora eles mesmos encenaram para d’Anthac, ultrapassando barreiras espaciais e temporais. Todo o filme, e mesmo aqueles que se projetam na tela que eles assistem, parece se curvar a essa nova performance que ali se estabelece.

Assim como a personagem de Emmanuelle Riva em Hiroshima, Meu Amor transportava-se para outro espaço-tempo a partir do leve movimento de uma mão, os atores agora, diante das falas que eles tão bem conhecem, ativam em sua memória os tempos idos em que eles estiveram no palco. E nada disso é previamente proposto, mas antes um movimento quase que automático por parte de quem recorda, perpassando pela lembrança e pelo afeto. É mais uma bela celebração da memória, toda cheia de liberdades poéticas que ultrapassam o registro do naturalismo, como sempre foi a vocação do diretor.

Resnais domina o espaço como ninguém. Não só sua câmera passeia candidamente em busca do ângulo mais apropriado para dar conta dos reveses dessa história, como os personagens/atores se deslocam, nesse espaço-tempo de que agora são donos, a fim de resgatar e defender seus personagens/personagens. 

É interessante notar como, meras peças de um jogo que vai sendo lhes apresentado sem regras definidas, aquelas pessoas ali passam a dominar a narrativa, reconstruindo e ressignificando (mais que meramente repetindo) a trágica história de amor de Eurídice, apaixonando-se perdidamente por Orfeu, por acaso, num dia que será tão trágico. Para nós que assistimos, é um dia de deleite.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Síndrome épica

O Hobbit: A Desolação de Smaug (The Hobbit: The Desolation of Smaug, EUA, 2013)
Dir: Peter Jackson




É inegável que Peter Jackson seja o cineasta ideal para conduzir essa história. Não só pelo talento em conduzir narrativas épicas, mas a própria familiaridade com o universo da Terra Média idealizada por J. R. R. Tolkien, já devidamente atestada nos filmes anteriores que ele levou adiante. Mas isso nem sempre é uma vantagem.

Se parece muito comum que a máquina hollywoodiana de fazer dinheiro tente se aproveitar ao máximo para criar franquias longevas, capazes de levar mais gente aos cinemas (e muitos fãs), em prolongamentos dos projetos originais, a questão aqui é que a megalomania parece vir do próprio Jackson. Daí que o diretor e seus produtores resolveram dividir em três (longos) filmes uma história que se resolveria com bem menos, tudo em prol de bilheterias fartas, é evidente.

Bilbo (Martin Freeman) continua na companhia dos anões liderados por Thorin Escudo de Carvalho (Richard Armitage) e de Gandalf (Ian McKellen) na tentativa de recuperar a fortaleza de Erebor, na Montanha Solitária, antigo lar dos anões, agora dominada pelo temido dragão Smaug, que também se apoderou de toda a mina de ouro guardada pelos pequenos.

Nada contra o fato da mitologia d’O Hobbit ganhar ampliações e conexões com a saga d’O Senhor dos Aneis, uma vez que isso já estava presente no primeiro filme dessa nova etapa da série. Mas é chato quando percebemos certas correlações forçadas com a trilogia anterior. O arco dramático que envolve Thorin, por exemplo, não passa de um mero repeteco daquele em torno de Aragorn (Viggo Mortensen), uma vez que seu papel como rei herdeiro do trono dos dragões ganha destaque na narrativa como um novo propósito a alcançar; um novo retorno do Rei, portanto, espera o espectador no próximo filme.

É quase como se não pudéssemos mais enxergar as duas séries como projetos distintos. Mais que tudo, O Hobbit seria uma história de teor infanto-juvenil em que o fator adrenalina e o tom aventuresco estão acima de questões mais profundas. O que esse segundo filme faz é enxertar uma atmosfera épica, vista anteriormente, a fim de torná-lo mais grandioso, e lucrativo.


Mas aí a coisa se torna mais complicada quando A Desolação de Smaug passa a enfrentar quebras de ritmo por conta da insistência em conectar as duas trilogias. E isso é sentido muito mais nesse longa. É como se as expectativas fossem, a todo instante, sendo sabotadas pelo próprio filme, o que acontece em vários momentos, especialmente nos caminhos percorridos por Gandalf. Ou quando o roteiro investe em subtramas desinteressantes, como o flerte entre a elfa Tauriel (Evangeline Lilly) e o anão Kili (Aidan Turner).

Mesmo no clímax da narrativa, o filme consegue desperdiçar grande parte de sua tensão quebrando a cadência rítmica ao montar a sequência paralelamente ao que acontece em um lugar próximo dali. Há bons momentos de aventura ao longo do todo, como a sequência da fuga na correnteza, ainda que repleta de pequenos problemas de desenvolvimento. Mas são constantes na obra as pausas narrativas para dar conta dos rumos de caprichos épicos que o projeto acabou tomando. 

O espetáculo visual também permanece lá, enchendo olhos e ouvidos, ainda que o velho problema de subaproveitamento do 3D persista, não acrescentando nada à narrativa, nem rendendo bons momentos. E assim a série O Hobbit vai se alongando para mais uma trama grandiloquente, deixando de lado um tom mais aventuresco, e nem por isso menos interessante, ser esmagado pela cobiça do épico.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Marcas de afeto

Tatuagem (Idem, Brasil, 2013)
Dir: Hilton Lacerda





Vem de Pernambuco mais um belo exemplar de cinema com personalidade, no mesmo ano em que O Som ao Redor ganhou as telas comerciais do cinema brasileiro, depois de um grande sucesso mundo a fora. Hilton Lacerda, à frente de seu primeiro longa-metragem de ficção depois de um logo trabalho como roteirista nos filmes do conterrâneo Cláudio Assis, chega com um filme que faz alarde, mas cercado de afetos.

Tatuagem vem (e vence) pela marca do escracho. Logo em um dos primeiros números apresentados pela trupe de teatro Chão de Estrelas, um dos personagens diz que “nossa arma é o deboche”. É a dica para que encaremos com muito bom humor e anarquismo contestador as apresentações do grupo, cheios de um subtexto (homo)sexual e político. 

Clécio (Irandhir Santos) é o líder do grupo que batalha para continuar mantendo de pé o seu ganha-pão com os poucos recursos de que dispõe, e ainda tendo de enfrentar a censura militar em fins dos anos 1970. Um dos grandes acertos de Larceda é nunca transformar seu filme numa mera bandeira contra os ditames da Ditadura simplesmente, mas antes em dar relevância a um tipo de comportamento duramente oprimido, inclusive socialmente.

O romance que vai surgir entre o protagonista e o soldado Fininha (Jesuíta Barbosa), cunhado do melhor amigo de Clécio, o espalhafatoso Paulete (Rodrigo Garcia), já dá conta de contrapor lados que se chocam, mas ganhando nuances mais picantes aqui. É, portanto, um filme que clama por liberdade, artística e sexual, via comportamentos que desafiam a moral vigente. Lacerda conduz com muita delicadeza o que está na esfera dos sentimentos, e as pessoas que se reúnem em torno do grupo não deixam de formar uma bela e desordenada família, apesar das desavenças que surgem em certos momentos.

E conduz desprovido de todo moralismo o que se encontra no âmbito do questionamento de valores e hipocrisias sociais. A Polka do Cu, canção-desbunde cujo número é apresentado na parte final do filme (e deflagrador de consequências duras), é um desses momentos não só carregado de coragens e escracho, mas que representa muito bem uma visão de mundo que aquelas pessoas (e o filme) compartilham harmoniosamente.

Há de se destacar um cuidado muito conceitual na textura do filme vinda de uma fotografia em tons granulados que denunciam a época passada (quase como um registro nostálgico) e também um momento ainda opressor, apesar da alegria que aquele grupo quer propagar com seus espetáculos. A trilha sonora, uma feliz parceria com DJ Dolores, é outra marca que faz a ponte do filme com o gênero musical, mas de forma muito pessoal. 

Dos trabalhos que roteirizou para Cláudio Assis, Lacerda mantém a veia contestadora, de tons anárquicos que afrontam o mais tacanho dos moralismos. Mas Tatuagem é também dotado de um lirismo e carinho por seus personagens que o coloca bem longe daquilo que Assis já dirigiu (com exceção, talvez, do mais poético A Febre do Rato). Nesse equilíbrio de atmosferas, Larceda acrescenta mais uma peça na filmografia pernambucana recente que faz o cinema nacional pulsar, contestadora e afetuosamente.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Ondas de calor

Azul é a Cor Mais Quente (La Vie d’Adèle, França/Bélgica/Espanha, 2013)
Dir: Abdellatif Kechiche



Kechiche é um cineasta das coisas políticas. O fato de ser um tunisiano radicado na França dota seu cinema de preocupações com a condição do povo árabe num França cada vez mais xenofóbica (como visto em
A Culpa é do Voltaire), ou mesmo da própria condição daqueles que são extraídos de seu lugar de origem para servir ao fetiche exótico do europeu (Vênus Negra). Mas seria um equívoco achar que Azul é a Cor Mais Quente distancia-se desse aspecto politizado uma vez que toca em tema polêmico numa França em que a homofobia tem crescido nos últimos tempos. 

O despertar da sexualidade da jovem Adèle (Adèle Exarchopoulos) e a descoberta de um desejo que se inclina para outras mulheres são os pontos de observação desse filme altamente festejado desde que ganhou a Palma de Ouro em Cannes este ano. Interessante que justo num momento em que se discute com tanto afinco (e também ojeriza) a união de pessoas do mesmo sexo, esse filme venha somar e complexificar a questão.

Estamos longe do filme puramente panfletário, apesar de em alguns momentos isso ganhar amplitude maior, como na cena da discussão com as colegas de classe. É um deslize que pega carona em momentos nos quais o filme tenta parecer militante (como nas sequências do protesto na rua ou na estranha exibição de A Caixa de Pandora durante uma festa, com destaque para a figura sensual de Louise Brooks ao fundo, é claro!).

Mas Kechiche interessa-se muito mais pelo aspecto íntimo e pela trajetória emocionalmente conturbada dessa menina, via registro altamente naturalista com que acompanha o desabrochar de uma flor. É bastante reconhecível essa estética da câmera na mão, colada em seus atores, perscrutando olhares e gestos que dizem muito sobre os personagens, especialmente os dessa menina que tateia em busca de uma compreensão de si e de seus sentimentos.

E basta que a estranha moça de cabelos azuis (Léa Seydoux), mais do que chamar atenção por esse detalhe físico, ganhe espaço nos sonhos eróticos de Adèle. É nesse ponto que o filme aposta no sexo como potência de descobertas e consolidação de um desejo, embora nada seja definitivo na história (mais de uma vez, figuras masculinas vão tentar por à prova a vontade da protagonista). E é muito bonito ver como o filme confere tanta importância a isso não tratando o sexo como um simples ato carnal que precise constar numa ceninha rápida.

Antes que puramente voluptuoso, o sexo representa a experiência de atração e satisfação que essas duas jovens experimentam entre si. O que as longas cenas de sexo têm de cru, explícito e intenso só reforçam o tom naturalista que o filme persegue do início ao fim, para além do amor que também brota dali. Especialmente na forma como Adèle se conecta a Emma, tornando o filme o retrato de uma grande paixão pela qual vale a pena lutar.

Ainda que se alongue demais, Azul é a Cor Mais Quente mantém um ritmo muito coeso em sua estrutura. É interessante perceber como a história avança por meio de certas elipses que dão conta de algumas transformações de Adèle numa mulher, apesar da menina apaixonada e insegura ainda ser visível por entre seus os cabelos desgrenhados. 

Se aqui ou ali o roteiro precisa forçar certos conflitos (como todo o desentendimento entre as duas personagens na parte final do filme), Kechiche se esforça para filmar uma paixão que brota da vida comum, como qualquer outra. É como o azul, essa cor aparentemente fria, melancólica, mas passível de esconder mais calor e pulsão do que se imagina.


domingo, 3 de novembro de 2013

Panorama Internacional Coisa de Cinema 2013


De Reichenbach a Hitchcock. De Roberto Pires a Bruno Dumont. De Portugal ao México. Da Alemanha à Itália. Cinema brasileiro em perspectiva. Isso e mais um punhado de outras coisas apetitosas estão espalhadas pela programação da 9ª edição do tradicional Panorama Internacional Coisa de Cinema, que começou na quinta-feira em Salvador e Cachoeira.

É uma festa para a cinefilia baiana (e para todos aqueles que porventura venham de longe prestigiar o evento). Isso porque a Bahia carece de mais festivais assim, não só com uma programação de saltar aos olhos, mas também com uma preocupação em exibir filmes em boas condições. Pois o Panorama cumpre essa função, nesse que já é um dos festivais mais prestigiados do Brasil. 

Para mim, foi também mais uma experiência de compor a equipe de curadoria das mostras competitivas nacionais, baianas e de curtas internacionais para essa edição. Posso ser suspeito para falar, mas os escolhidos engrandecem bastante a seleção. 

Já começou então mais uma maratona de filmes. Quem for da região, não pode perder. Que venham mais filmes!

Mostra SP – ranking geral


Chega ao fim mais uma Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Minha segunda experiência consecutiva imerso num mundo de filmes do mundo todo. Foi mais uma oportunidade de ver o que há de novo por aí, de conferir clássicos absolutos do cinema e de reencontrar e conhecer essas pessoas malucas que compartilham a mesma loucura pelo cinema que eu. Abaixo meu ranking geral da Mostra:




Cortinas Fechadas (Jafar Panahi, Irã) ****½
Child’s Pose (Calin Peter Netzer, Romênia) ****
Cães Errantes (Tsai Ming-liang, Taiwan/França) ****
Lições de Harmonia (Emir Baigazin e María Florencia Álvarez, Cazaquistão/Alemanha/França) ****
Morro dos Prazeres (Maria Augusta Ramos, Brasil/Holanda) ****
Pais e Filhos (Hirokazu Kore-eda, Japão) ****
Centro Histórico (Aki Kaurismäki, Pedro Costa, Victor Erice e Manoel de Oliveira, Portugal) ****
Manakamana (Pacho Velez e Stephanie Spray, Nepal/EUA) ***½
Inside Llewyn Davis (Joel e Ethan Coen, EUA/França) ***½
Escudo de Palha (Takashi Miike, Japão) ***½
Um Toque de Pecado (Jia Zhang-ke, China) ***½
Depois da Chuva (Cláudio Marques e Marília Hughes, Brasil) ***½
Norte, O Fim da História (Lav Diaz, Filipinas) ***½
Meteora (Spiros Stathoupolus, Grécia/Alemanha) ***
Educação Sentimental (Julio Bressane, Brasil) ***
Peixe e Gato (Shahram Mokri, Irã) ***
Las Horas Muertas (Aarón Fernández, México/França/Espanha) ***
Ilo Ilo (Anthony Chen, Cingapura) ***
Confissões de Assassinato (Jung Byung-gil, Coreia do Sul) ***
Sexo, Drogas e Impostos (Christopher Boe, Dinamarca) ***
Bends (Flora Lau, Hong Kong/China) **½
Grigris (Mahamat-Saleh Haroun, Chade/França) **½
Grand Central (Rebecca Zlotowski, França/Áustria) **½
Até Ver a Luz (Basil da Cunha, Portugal) **½
3x3D (Peter Greenaway, Edgard Pêra e Jean-Luc Godard, Portugal) **½
Miss Violence (Alexandros Avranas, Grécia) **½
Wakolda (Lucía Puenzo, Argentina/França/Espanha/Noruega) **½
A Gaiola Dourada (Ruben Alves, Portugal/França) **½
Amanhã Nunca Termina (Isabel Coixet, Espanha) **½
O Grande Mestre (Wong Kar-wai, Hong Kong) **
Riocorrente (Paulo Sacramento, Brasil) **
O Garoto que Come Alpiste (Ektoras Lygizos, Grécia) *½  
Segurança Nacional (Chung Ji-Young, Coreia do Norte) *


Hors Concurs:


2001: Uma Odisseia no Espaço
(Stanley Kubrick, EUA/Reino Unido, 1968) *****
Laranja Mecânica (Stanley Kubrick, EUA/Reino Unido, 1971) *****
Nascido para Matar (Stanley Kubrick, EUA, 1987) *****
A Rotina Tem Seu Encanto (Yasujiro Ozu, Japão, 1962) *****
O Deserto dos Tártaros (Valerio Zurlini, Itália/França/Alemanha, 1976) ****½
Flor de Equinócio (Yasujiro Ozu, Japão) ****
Providence (Alain Resnais, França/Suíça/Reino Unido, 1977) ****

Barry Lyndon (Stanley Kubrick, EUA/Reino Unido, 1975) ****

Mostra SP – parte 6



  

Norte, O Fim da História (Norte, Hangganan ng Kasaysayan, Flipinas, 2013)
Dir: Lav Diaz 


Pode-se reclamar muito de um cineasta que costuma fazer filmes gigantescos (estou falando de longas de 5, 8, 11 horas de duração!). Pois essa é um das marcas que perseguem os trabalhos do diretor filipino Lav Diaz, que recebe uma corajosa retrospectiva nessa edição da Mostra. Mais corajoso ainda é quem se aventura nessas jornadas fílmicas, desse que muita gente considera uma dos grandes cineastas contemporâneos.

Nesse primeiro contato com seu trabalho, justo o mais recente dele, fica muito evidente uma marca clara de um estilo próprio, baseado no óbvio interesse em desenvolver e acompanhar muito de perto os conflitos de seus personagens. Nessas Filipinas rodeadas de violência, um intelectual assassina uma mulher, mas segue livre depois que um homem mais humilde é acusado pelo crime e vai para a prisão.

Diaz consegue dimensionar muito bem a história desses dois homens e da família do preso, abusando muito dos planos longos e das intermináveis conversas que os diversos personagens mantêm. É como se o interesse pelo cotidiano ganhasse um espaço que de fato lhe proporciona a percepção dessa vida que passa. No caso desses personagens aqui, é uma existência árdua, que vai se intensificando cada vez mais em dor e autocompreensão, para o bem e para o mal de cada um.

Não é um filme fácil (são 4 horas de duração), mas não demora muito para passar porque o cineasta consegue manter uma fluidez muito interessante no ritmo da narrativa. Funciona também como um conto moral e sócio-político num país marcado de injustiças.


Child’s Pose (Pozitia Copilului, Romênia, 2013)
Dir: Calin Peter Netzer 


Depois dos créditos iniciais sobrepostos em tela preta, corte seco para Cornelia, filmada em câmera na mão, conversando com uma amiga sobre a ingratidão de seu filho que mal a vê e a trata mal. Child’s Pose é todo assim, direto, sem firulas, tenso, com uma protagonista fortíssima, metida numa situação desagradável. É a força do cinema romeno mais uma vez mostrando que eles fazem um dos cinemas mais interessantes da atualidade.

Barbu (Bogdan Dumitrache) atropelou e matou acidentalmente um garoto pobre quando corria na estrada à noite. É aí que entra a mãe dele a seu socorro, fazendo de tudo para livrar seu filho das garras da justiça. Eles são de família rica e influente, não parece haver dificuldades nesse jogo de poder, o que já revela as mazelas político-sociais de um país que se livrou há poucas décadas de um regime opressor.

Mas Child’s Pose é menos um filme sobre os meandros do sistema jurídico e sim uma história ancorada numa conturbada relação mãe e filho. Apesar da amargura que existe ali, Cornelia, interpretada maravilhosamente por Luminita Gheorghiu, ama incondicionalmente esse filho ingrato. Isso porque Barbu é como um adulto mimado que ainda não aprendeu a se portar como adulto e nem a se livrar da saia da mãe. É a postura de criança do título.

O filme opera o tempo todo nesse clima de tensão entre os dois, misturado à destruição de uma família pobre que perdeu o filho pequeno. Child’s Pose é desde o início um filme duro, sem piedades. Mas quando menos se espera, ele consegue também complexificar seus personagens, até então muito marcados em suas personalidades cruas, numa dos momentos finais mais emocionantes de um filme dessa Mostra. O encontro de mãe e filho com a família do garoto morto é dilacerante e diz muito sobre esse amor materno, o mais forte deles.


Centro Histórico (Idem, Portugal, 2012)
Dir: Aki Kaurismäki, Manoel de Oliveira, Pedro Costa e Victor Erice 


É sempre muito difícil e até mesmo lugar comum apontar a irregularidade de filmes coletivos. Seria o caso desse aqui, mas somente poucas coisas podem realmente ser criticadas. Olhando para os nomes que compõe essa seleção de diretores, nota-se o motivo da segurança dessa afirmação. O longa faz parte de um projeto em que cineastas utilizam como ponto de observação a cidade histórica de Guimarães, berço do reino português.

Aki Kaurismäki é quem abre os trabalhos e parece o mais distante geograficamente porque filma uma história que se aproveita muito pouco daquele espaço histórico e prefere criar mais um conto melancólico desses que abundam em seu cinema. As agruras são do dono de um restaurante tentado conquistar mais clientes. O curta é visivelmente um filme de Kaurismaki, com suas cores e tons bressonianos habituais.

Pedro Costa também deixa evidente sua marca autoral e retoma um antigo personagem seu, Ventura, um velho cabo-verdiano que mora em Portugal. Visivelmente abalado psicologicamente, o filme promove um estranho diálogo entre essa figura soturna e a estátua de um soldado dentro de um elevador. É de um rigor impressionante o que curta traz em termos de encenação e fotografia, um filme hipnotizante.

Já o espanhol Victor Erice, no capo do documentário de memórias pessoais, cria uma das mais deliciosas reuniões de depoimentos íntimos. A partir de uma antiga fotografia de funcionários de uma fábrica têxtil, ele reúne algumas dessas pessoas que contam suas experiências de vida. Mas eles estão tão à vontade diante da câmera que as falas nunca são previsíveis, nem os direcionamentos do filme seguem padrões rígidos, muito menos piegas, embora o curta vai encontrar o tom certo de emoção, congelada no tempo.

E, por fim, a cereja do bolo. Manoel de Oliveira, sóbrio, preciso, sem perder tempo, vai direto ao ponto. Subverte a ideia do conquistador, antes senhor de suas terras, mas agora, na modernidade, passa a ser conquistado pelos turistas que visitam seus monumentos e estátuas para aprisioná-los em suas máquinas fotográficas. Com humor habitual e certa desfaçatez, Oliveira fecha o projeto com um primor que só esse jovem senhor é capaz de estampar na tela.


Um Toque de Pecado (Tian Zhu Ding, China, 2013)
Dir: Jia Zhang-ke 


Jia Zhang-ke continua seu percurso de observação do povo e da vida cotidiana da China atual, com todas as suas transformações político-sociais, mas dessa vez sob o foco da violência. Conta quatro histórias de personagens em diferentes lugares da imensidão do país asiático, todos marcados pela tragédia e os sinais de dor e ira que as pessoas deixam pelo caminho.

Ao invés de embaralhar essas histórias, Zhang-ke prefere deter-se em cada uma delas para finalizar seus contos (embora haja um pequeno retorno no momento final). São histórias de gente que querem seguir seu rumo de vida, mas esbarram nas impertinências da própria vida. Na maioria são trabalhadores infelizes em seus postos. Do minerador que se rebela contra seus patrões, até a atendente de uma sauna de massagem que é assediada por clientes ricos, todos eles serão capazes de momentos de explosão e crueldade. São essas pessoas comuns que sucumbem à opção da violência que o próprio mundo condiciona.

Se essa é uma reflexão que permeia todo o filme, Zhang-ke é hábil também em filmar violência, com brutalidade explícita, quase pornográfica, mas nunca gratuita. É certo que nem todos os segmentos são tão bons em desenvolvimento de enredo, demorando muitas vezes a dizer ao que veio. Mas é um filme brutal sobre um estado de coisas que bagunça e destrói a vida de seus personagens, e também daqueles desafortunados que cruzam seu caminho.


Pais e Filhos (Soshite Chichi ni Naru, Japão, 2013)
Dir: Hirokazu Kore-eda 


Para falar de relações familiares, Kore-eda é mestre. Seu novo filme é uma beleza na forma como lida com as questões entre pai e filho a partir da situação inusitada que toma de assalto duas famílias distintas no Japão: eles descobrem que seus filhos, agora com seis anos, foram trocados na maternidade. O contato das duas famílias faz surgir a dúvida se as crianças precisam ser destrocadas ou não.

Apesar do tom emocional que o filme carrega desde o início, não há lugar aqui para pieguices, isso porque as coisas acontecem no seu tempo, muito bem colocadas na história, sem alarde. Kore-eda assina um roteiro delicadíssimo ao tratar das suas questões, desenhando os personagens de forma sempre tridimensional, com foco em Ryota (Masaharu Fukuyama), esse pai de família mais abastada que reprova totalmente a atitude brincalhona do outro pai que cria seu filho de sangue, numa casa e ambiente muito mais humildes. O trabalho com os atores mirins é mais um trunfo que torna as situações tão críveis e profundas no abalo emocional que aquela situação provoca.

Há um evidente embate social aí também, mas acima de tudo esses dois pais verão o quanto podem ser falhos na criação de seus filhos, mas também o quanto podem aprender um com o outro. É a situação ideal para que o cineasta ponha em xeque a importância da família e, especialmente, dos laços sanguíneos enquanto continuidade da tradição familiar, algo muito conectado à ancestralidade da cultura oriental. O mais difícil é se readaptar nesse processo doloroso, mas bonito, de reaprender a ser pai.


Cães Errantes (Jiao You, Taiwan/França, 2013)
Dir: Tsai Ming-liang 


Um dos filmes que encantaram parte do público da Mostra é esse objeto estranho e hipnótico, extremamente simples no seu conteúdo, mas cheio de significados, dirigido por Tsai Ming-liang. Um pai e seus dois filhos pequenos vagam pelas ruas de Taipei, sem lar, sem família, sem aparo. Dormem em lugares abandonados e tentam conseguir comida de uma forma ou de outra. São como cães vira-latas sem dono, sem alento.

É incrível como um filme tão contemplativo, desse que parece testar a atenção e resistência do espectador, consegue resultados tão interessantes em termos de reflexão sobre a solidão. Pois o que mais temos aqui são os habituais planos longos e estáticos do diretor, que servem muito bem a essa história de gente jogada, deixada à própria sorte. Mas longe de caprichos estéticos e maneirismos de cena, essa opção narrativa acaba sendo uma tradução ideal para o estado de apatia em que vivem esses personagens.

Interessante como há muita fome no filme, e o comer, sempre muito raivoso (como na cena da cabeça de repolho), torna-se uma estranha forma de expurgar toda uma raiva contra o mundo. O abandono também pode ser uma chave interessante de interpretação já que na primeira cena vemos uma mulher que vai embora e deixa os meninos dormindo profundamente. Essa possível figura materna será retomada depois com a aproximação de uma estranha mulher ao grupo. 

Mas ainda assim, a marca do desamparo está toda ali distribuída no filme, dilacerante, crua. A recusa de Tsai em cortar o plano e, principalmente, de tirar a câmera do rosto de seus atores (como no sensacional plano final de Vive l’Amour, por exemplo) é uma maneira de rivalizar a plateia com essa dor, com esse desespero, essa angústia que não parece ter fim. Ninguém sai incólume disso.

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Mostra SP – parte 5



Confissões de Assassinato (Nae-Ga Sal-In-Beom-I-Da, Coreia do Sul, 2012)
Dir: Jung Byung-gil 

  

Do Foco Coreia que a Mostra traz esse ano com uma leva de filmes de um dos países asiáticos mais prolífero em produção cinematográfica recente, é curioso notar uma série de filmes policiais e de ação que os conterrâneos de Park Chan-wook vem fazendo. O mais curioso é notar a qualidade técnica de filmes que carecem de um suporte industrial muito potente em termos de produção.

É o caso desse Confissões de Assassinato, história um tanto quanto absurda, contada com o habitual exagero que parece ser uma marca que une grande parte das produções coreanas. Somos confrontados com um serial killer (Park Shi-hoo), responsável pela morte de várias mulheres anos atrás, que vem a público lançar um livro com suas memórias, a partir do momento em que sua pena é revogada por causa do tempo em que o crime ficou sem solução.

Agora, ele confronta cara a cara o detetive Choi (Jeong Jae-yeong), responsável pela perseguição frustrada ao assassino anos atrás. O filme não para nunca em termos de adrenalina, e acrescenta uma série de elementos nessa história que envolve a mídia, a polícia e uma sociedade louca por espetáculo.

Há nisso um foco de drama muito forte pela perversidade dos crimes, mas o filme se esforça muito em injetar humor negro em muitos momentos. A história só perde quando resolve exagerar nas reviravoltas da parte final para criar grandes surpresas num filme já saturado de violência e tensão.


Ontem Nunca Termina (Ayer No Termina Nunca, Espanha, 2013) 
Dir: Isabel Coixet


O filme é futurista e apocalíptico, mas o que interessa a Isabel Coixet é a dor que emana do drama quando dois personagens se encontram. Na Espanha de 2017, a situação econômica é tão calamitosa que sobram poucas pessoas no país depois que a recessão deixou milhões desempregadas e quase todos abandonaram seu lar. É nesse clima de fuga e desolação que um antigo casal rememora dores passadas juntos.

A atmosfera que ronda esses personagens é uma clara relação com a crise atual que assola a Espanha, mas o filme é todo intimista. O casal está separado depois que uma tragédia abateu-se na família, e o filme é todo preenchido por esse reencontro, somente com esses dois personagens em cena, sustentados muito bem pelos ótimos Javier Cámara e Candela Peña.

Mas Coixet, que também assina o roteiro, nem sempre é tão boa com os diálogos, num filme extremamente verborrágico que se perde nas elucubrações e memórias dos protagonistas. O filme também não resiste a incluir cenas que se passam notadamente na cabeça dos personagens só para acrescentar ideias que lhes passam pelo pensamento. É um bom recurso, permite uma quebra na estrutura a que a narrativa se propõe, mas logo cansa.

É interessante como o filme, nessa conversa/embate que os dois personagens têm, consegue injetar informações aos poucos, à medida que vamos montando a história que eles tiveram juntos e o motivo doloroso da separação. Se mais curto, talvez rendesse uma história mais coesa e menos repetitiva.


2001: Uma Odisseia no Espaço (2001: A Space Odissey, EUA/Reino Unido, 1968) 
Dir: Stanley Kubrick


É como um sonho difícil de acreditar concretizado poder ver um filme dessa magnitude numa tela de cinema, ainda mais se o local é aquela sala incrível do Cinesesc. Por um bom tempo você pode ficar como o rapaz aí da foto, meio que entontecido pelo que vê e experencia na tela larga como se ela fosse te engolir a partir de todo o mistério que esse filme em especial carrega, te jogando nas profundezas do espaço sideral e do mistério da evolução humana. 

E a marca da incompreensão que persegue esse filme desde que foi lançado nos anos 1960, com imagens reais do espaço e do planeta Terra visto lá de cima, só reforça como a obra encanta pelas possibilidades interpretativas que ela carrega. Como experiência de ver o filme no cinema, 2001 cresce como se encontrasse o lugar ideal de exibição de onde nunca devia ter saído.

Não basta aqui dizer como Kubrick era hábil encenador, em como a atmosfera do filme revolucionou a ficção científica no cinema, e em como o filme faz um paralelo impressionante entre a vida primitiva e a evolução criativa a partir da descoberta da ferramenta manipulável e de como essa mesma evolução criou formas não-humanas capazes de pensar como humanos, criando e destruindo. Porque de uma forma ou de outra, isso já foi dito e repetido, mesmo que essas marcas tornem-se cada vez mais potentes quando se revê a obra.

No fundo, e dessa vez vendo 2001 nessas condições, o filme me parece como o tratado mais objetivo e onipresente sobre a luta pela sobrevivência, do homem e da máquina, essa que foi criada pelo próprio homem. Nesse círculo vicioso, ronda o mistério absoluto e infindável da própria vida e de onde vem tudo isso que conhecemos e somos, fazendo renascer um novo ser, brilhante, insondável.


Las Horas Muertas (Idem, México/França/Espanha, 2013)
Dir: Aarón Fernández 


O título desse filme traduz muito bem um clima de apatia que toma conta do ambiente em que se passa a história. Sebastián (Kristyan Ferrer) é chamado por seu tio para que cuide do motel de beira de estrada que ele possui porque precisa viajar para cuidar da saúde. O jovem adolescente fica praticamente sozinho e precisa se virar para atender os casais, arrumar os quartos (ou procurar alguém que faça a limpeza e lavanderia) e cuidar da estrutura do local.

Nesse ritmo em que pouca coisa acontece, o filme vai paulatinamente revelando o foco central de sua história. No fundo, é um conto de amizades improváveis, em que esse garoto cada vez mais se aproxima de uma mulher (Adriana Paz), cliente habitual do lugar que passa horas no lugar à espera do amante. Às vezes ele vem, noutras não, é quando ela tem a chance de se aproximar de Sebastián.

Daí que o filme revela um estudo muito interessante de personagens, acompanhando os ritos de passagem que esse garoto vive, sexual e amorosamente, ao mesmo tempo em que é muito carinhoso com eles. Há toques de uma singeleza interessante que nunca coloca o filme no campo do piegas ou do simples filme de descobertas. É nessas horas mortas que a vida mais no surpreende e ensina.


Cortinas Fechadas (Pardé, Irã, 2013) 
Dir: Jafar Panahi e Kambuzia Partovi


Um homem chega numa casa e de lá não parece poder mais sair. Vive escondido de todos e tudo, ainda mais por ter em sua companhia um cachorro, animal que a lei islâmica no Irã não permite que viva em residências. De repente, no meio da noite, recebe a visita de um jovem casal que invade a casa por estar sendo perseguido, em especial uma jovem que não pode ser encontrada pelas forças oficiais do país.

Cortinas Fechadas começa como esse filme em que casa se confunde com cativeiro e esconderijo, lugar de repouso e de perigo. Mas é preciso ressaltar que esse é um filme para quem conhece a situação pessoal em que vive Jafar Panahi hoje, em prisão domiciliar, acusado de subversão contra o Estado iraniano por fazer filmes que criticam seu país. É preciso também ter uma certa relação com alguns filmes anteriores do cineastas, em especial O Espelho e O Círculo.

Do último, a ideia de um país que mantém um grupo em cativeiro (no caso, as mulheres; e a personagem feminina aqui é como uma síntese de todas aquelas que são perseguidas no trabalho anterior) reverbera no aprisionamento de outro grupo constantemente vigiado (o dos artistas, de forma geral). E do primeiro filme, Panahi reprisa o ruptura que os divide em dois, num dos momentos mais incríveis do filme, sem nenhum tipo de alarde que denuncie o real objetivo e foco dessa história.

É quando Cortinas Fechadas transforma-se num filme ensaio em primeira pessoa, assim como era a obra anterior de Panahi, Isto Não é um Filme, mas operando de uma forma muito mais subjetiva e silenciosa que só reforça a dor de um homem calado em sua arte (em contraposição ao filme anterior que era muito verborrágico também). 

Existe nele uma série de referências e pequenos detalhes que enriquecem muito a compreensão de uma obra por demais aberta e que essa primeira impressão nunca será capaz de dar conta. Mas é muito interessante pensar na primeira metade do filme como uma história possível que existe na cabeça do diretor, mas interrompida pela própria dificuldade do cineasta em continuar com sua arte. E também entender a figura do roteirista como um alter ego do próprio cineasta que luta para concluir suas ideias, recebendo a visita de suas próprias criações.

É um filme doloroso e tristíssimo por isso que representa, ao mesmo tempo que vislumbra uma coragem muito grande em enfrentar uma situação tão difícil. É um filme sobre a impossibilidade de fazer, já fazendo. Não do jeito que se quer, mas na forma daquilo que lhe assalta naquele momento. Vislumbramos um cineasta acuado por vários fantasmas que ele tenta espantar jogando na tela (e se jogando) como quem resiste da melhor forma que encontra.


A Gaiola Dourada (La Cage Doreé, Portugal/França, 2013) 
Dir: Ruben Alves


Se o cinema português surge hoje como um dos mais prolíferos e interessantes numa perspectiva mundial de novas e jovens cinematografias, tendo nas diferentes marcas autorais um multiplicidade de posturas de fazer cinema e ver o mundo, e interessante ver também que como o país produz e consome produtos mais populares, como esse A Gaiola Dourada.

Como comédia a mais tradicional, o figura se ancora na própria tradição desse cinema mais industrial francês, já que essa é uma coprodução entre os dois países. Passa-se quase totalmente em terras francesas onde uma família de pais portugueses se estabeleceu, fundou um núcleo familiar, mas carrega consigo as marcas da sua cultura de origem. A coisa se complica quando eles recebem uma herança milionária de um parente português que os obrigaria a voltar a morar em Portugal para receber a bolada. 

É o mote certo para render situações as mais divertidas com uma série de tipos esquisitos que o filme propõe acompanhar. O problema é quando esse tom cômico surge da forma mais banal possível, intensificando estereótipos, especialmente pátrios, e tentando fazer rir com o trivial e certa ridicularização dos personagens. Não é um filme que ofende muito, mas aposta numa comédia mais boba. Dado o enorme sucesso de bilheteria que fez na França e em Portugal, não é difícil perceber um produto popularesco.