domingo, 27 de novembro de 2011

7º Festival Internacional de Cinema de Salvador – Parte 1

Pouquíssima coisa eu pude conferir desse festival promovido pelo circuito Sala de Arte, que trouxe para a cidade filmes recentes e inéditos, além de uma bela retrospectiva do cinema de Andrzej Wajda. Aqui, um primeiro post sobre alguns filmes que conferi.


Budrus (Idem, EUA/Israel/ Palestina, 2010)
Dir: Julia Bacha



Quando a cidade de Budrus, entre a Cisjordânia e Israel, passa a ser alvo das intenções israelenses de delimitação de fronteiras com a construção do Muro da Separação, que passaria por uma importante região da cidade, seus moradores resolveram não ficar calados. Sob a liderança de Ayed Morrar, começam uma manifestação de caráter popular que vai crescendo e ganhando apoio, inclusive, do Fatah e do Hamas, facções palestinas rivais, e também de israelenses sensíveis à situação dos moradores locais.

É esse contexto de enfrentamento que a diretora brasileira Julia Bacha, radicada nos Estados Unidos, documenta em seu filme, tendo a bandeira da manifestação pacífica daquele povo como grande particularidade da história. Os moradores querem impedir que suas oliveiras (árvore sagrada para os palestinos e de onde vem o sustento da região com a comercialização de azeitonas) sejam destruídas. Mas como em todo o confronto, a violência não demora a aparecer, pelo próprio tensionamento dos conflitos, muito embora não seja intenção pegar em armas.

Mas é muito impactante ver civis, dentre eles mulheres e crianças, peitando soldados israelenses e impedindo o trabalho dos tratores que tentam aterrar o lugar por onde passaria o muro. É essa tensão, filmada como puro registro documental in loco, uma das grandes forças do filme.

Ao mesmo tempo, por mais que fique claro o posicionamento pró-manifestantes, o documentário procura ouvir os dois lados da questão, desde os moradores até os militares israelenses, os mesmos que aparecem em confronto direto nas imagens, conferindo nuances necessárias a essa história que se junta a tantas outras que marcam os conflitos no Oriente Médio e sua complexa rede política, social e econômica.


O Moinho e a Cruz (The Mill and the Cross, Polônia/Suécia, 2011)
Dir: Lech Majewski



Numa tomada de licença poética das mais corajosas e belas, o cineasta polonês Lech Majewski usa a pintura A Procissão para o Calvário, do artista flamengo Pieter Bruegel, O Velho, para compor esse seu filme que se concentra na própria feitura do quadro pelo artista (interpretado por Rutger Hauer).

A vida cotidiana de um povoado em Flandres, atual Bélgica, dominada pelos espanhóis no século XVI, é descortinada para compor a ambientação retratada na figura, tendo os próprios moradores locais como modelos. Bruegel observa a todos e parece se apropriar do olhar do filme que invade a vida daqueles “figurantes” e seu dia a dia para dotar de naturalidade sua criação. O filme tem pouquíssimos diálogos e prefere observar o movimento daquelas pessoas no quadro.

Com isso, Majeswki dá a dimensão de humildade e sofrimento que cerca a vida daquelas pessoas, acentuada ainda pela dominação estrangeira que inflige ao povo severos castigos sem motivo aparente. Essa noção de martírio é intensificada, principalmente, na crucificação do filho de Maria (personagem de Charlotte Rampling), simulando assim a paixão de Cristo.

Numa época em que tanto se celebra a tecnologia do 3D, O Moinho e a Cruz tridimensionaliza o espaço somente ao contrapor atores em movimento à frente de imagens ora pintadas à mão, ora compostas de grandiosas paisagens reais ou mesmo criadas virtualmente, mas que simulam as da pintura original, criando um efeito espetacular de composição. Com isso, dota o filme de imensa beleza plástica que se contrapõe ao peso da aflição que ronda essa história.


Triângulo Amoroso (Drei, Alemanha, 2011)
Dir: Tom Tykwer



Os relacionamentos extraconjugais ganham aqui ares inusitados e polêmicos. Isso porque o casal Hanna (Sophie Rois) e Simon (Sebastian Schipper) começam um affair, em separado, com o mesmo homem, Adam (Devid Striesow). Tykwer compõe o relacionamento de um casal em crise ao mesmo tempo em que eles buscam em outra pessoa um pouco mais de emoção em suas vidas.

Mesmo com a pitada singular desse relacionamento triplo, o filme demora demais em estabelecer essas conexões, algumas vezes se detendo em assuntos que pouco contribuem para história (como o caso de câncer sofrido pela mãe de Simon). Talvez a tradução do filme para “triângulo amoroso” dê uma falsa ideia de que essa relação seja o grande foco da história, mas o filme ensaia mais que isso até que ela se concretize.

Tom Tykwer, depois de uma carreira internacional que conta com o ótimo Perfume – A História de um Assassino e o thriller Intriga Internacional, volta a sua Alemanha natal depois do sucesso feito com Corra, Lola, Corra (que acabou lhe abrindo as portas do mercado mundial).

Mas não deixa de ser um retorno um tanto frio. O filme tem umas boas pitadas de humor (na verdade, está sendo vendido como comédia romântica!), mas nem sempre funcionam. Há também boas cenas, como a inicial com os fios dos postes, ou a dança com os bailarinos que representam a relação tripla dos personagens. Porém o recheio demora a engatar. O final deixa tudo mais soft ao investir numa virada que parece coisa de novela mexicana, além de uma resolução fácil demais de engolir.

domingo, 20 de novembro de 2011

Curtinhas

A Casa dos Sonhos (Dream House, EUA, 2011)
Dir: Jim Sheridan


O grande problema desse A Casa dos Sonhos é que se trata de um filme de suspense sem suspense nenhum. Jim Sheridan (que já teve bons tempos com Meu Pé Esquerdo e Em Nome do Pai) filma a história de um homem (Daniel Craig) que larga o emprego para se dedicar à escrita de um romance. Na nova casa para onde se mudou, junto com a esposa (Rachel Weisz) e as duas filhas pequenas, começa uma paranoia que envolve o possível assassinato da antiga família que morava naquela casa. A questão é que diretor filma tudo isso como se guardasse um grande segredo, mas que já se encontra perceptível desde o início da história.

Tanto assim, que na metade da narrativa, ele é obrigado a “revelar” o mistério e passa a apostar numa trama mais absurda ainda (como um homem considerado assassino pode permanecer solto por aí, para fins científicos?). Além dos furos de roteiro, a direção de Sheridan não poderia ser mais lugar-comum, coisa da qual ele já estava se aproximando com seu filme anterior, Entre Irmãos (remake de um filme homônimo e já nem tão bom assim da dinamarquesa Susanne Bier). A Casa dos Sonhos, a despeito de sua pouca relevância, ainda tenta reverter a história no seu ato final, tentativa clara de redimir seu personagem para que o espectador saia do cinema aliviado. O efeito é o contrário, deixa-se o cinema frustrado.


Um Sonho de Amor (Io Sono L’amore, Itália, 2009)
Dir: Luca Guadignino


O cinema italiano tem essa tradição em filmar histórias familiares com um pé no melodrama, outro no realismo. Nesse sentido, Um Sonho de Amor se assemelha ao também recente drama italiano Que Mais Posso Querer, muito embora seja bem mais ousado do que esse seu insosso conterrâneo. Em ambos os filmes, mulher casada inicia relacionamento extraconjugal com outro homem. No caso de Um Sonho de Amor, Emma (Tilda Swinton, exercitando sua multiplicidade), de origem russa, renegou seu passado para viver numa família tradicional e de classe abastada. Ao conhecer o melhor amigo de um dos filhos, o belo Antonio (Edoardo Gabbriellini), sua suposta autosegurança é abalada.

Mas antes dar forma a essa relação, o filme consegue criar um panorama bastante rico dos personagens daquela família, driblando possíveis lugares-comuns nesse tipo de história. A própria Emma, apesar de estrangeira, se sente muito bem no seio da família; um dos filhos, mesmo tendo inclinação para piloto de corridas, aceita enfrentar a tarefa de ajudar o irmão mais velho a assumir os negócios da família. A filha lésbica, apesar de ainda esconder seu amor por outra garota, tem o apoio de alguns familiares – inclusive da mãe. Tudo isso ajuda a compor um ambiente sólido, apesar dessas “iminências” que ameaçam a tradicionalidade familiar. Nesse sentido, Emma sabe o quanto seu affair fora do casamento pesa nessa equação. Ao final do filme, o roteiro parece dar uma derrapada terrível, culpando sua personagem pelo adultério, numa saída moralista e rasteira, a fim de por panos quentes sobre a situação. Mas nos angustiantes minutos finais, consegue coragem suficiente para reverter o mal feito e tomar decisões fortes. E termina como um grande filme.


Lola (Idem, Filipinas, 2010)
Dir: Brillante Mendonza


Uma senhora luta contra a ventania para tentar acender uma vela na calçada da rua. Quando indagada sobre o porquê daquela luta, ela explica que seu neto foi assassinado ali no dia anterior. Essa cena inicial de Lola revela não só o tom forte do filme, que inclui ainda a avó do assassino, como já deixa claro a noção de dificuldade que essas duas senhoras terão de enfrentar a partir daí. O filme está muito mais interessado na forma como essas duas senhoras tentam lidar com a situação, não somente na busca pela dignidade de suas famílias, mas também na própria força motriz de sua sobrevivência, e muito menos em focar na resolução e comprovação do crime (o neto preso, por exemplo, só aparece uma única vez no filme, o outro parece foragido).

Não à toa chove e venta muito no filme. A figura frágil daquelas duas senhoras tentam a todo instante resistir o quanto podem às intempéries da natureza e da sociedade, a fim de romper as barreiras que lhe são impostas, em prol da sobrevivência na periferia pobre da capital Manila. Depois de ter ganhado projeção mundial em Cannes (onde apresentou os ótimos Serviço e Execução, ambos filmes porrada como esse aqui), o diretor filipino Brillante Mendonza continua marcando seu estilo seco e observacional, câmera na mão e olhar duro para as mazelas de sua sociedade. Parece não fazer concessões a seus personagens, sujeitos às forças que regem suas vidas no contexto social em que se encontram. Lola (avó em filipino) é um verdadeiro tour de força, um enfrentamento constante que clama por resistência, seja dos personagens ou de nós, espectadores.


A Casa (La Casa Muda, Uruguai, 2010)
Dir: Gustavo Hernández


É impressão minha ou esse A Casa tem problemas sérios de roteiro? Ou melhor, a escolha em fazer um filme todo em um único plano-sequência parece sabotar seu próprio roteiro, como forma de promovê-lo como o primeiro filme de terror filmado em um único take (pelo menos, aparentemente). Então, seria um grave problema de direção. Na história, pai e filha chegam, no cair da noite, a uma casa no meio do nada; eles são contratados para limpar e arrumar a propriedade que será vendida posteriormente. Mas à noite, o pai é atacado e a filha é perseguida por algo/alguém desconhecido. É certo que o filme começa estabelecendo um clima de tensão constante, se aproveitando muito da escuridão do lugar (e consegue fazer um contraste forte com a luz das lamparinas que os personagens carregam) e do uso dos sons e ruídos do ambiente.

No entanto, o filme vai apostar numa explicação de contornos psicológicos na sua parte final que põem a jovem numa situação complexa e surpreendente. Mas os envolvidos no projeto revelam uma aposta duvidosa ao filmar de forma contínua um fluxo de acontecimentos que parece necessitar, implicitamente, de alguns lapsos. Daí se questiona: o que a câmera capta é aquilo que a moça vê ou o que nós vemos? Mas se existe uma mudança drástica na percepção com que os próprios personagens enxergam os acontecimentos misteriosos e sangrentos dos quais eles mesmos são protagonistas, como a perspectiva da imagem pode ser a mesma? (existe somente uma pequena mudança nos minutos finais da narrativa). Em A Casa, forma e conteúdo não parecem falar a mesma língua.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Ranking da Mostra Cinema Conquista – Ano 7


Depois de terminada a Mostra Cinema Conquista e de ter visto todos os filmes exibidos na programação principal no Centro de Cultura Camilo de Jesus Lima, segue abaixo a lista de filmes em minha ordem de preferência. Curtas se mostraram bem melhores do que a seleção de longas. Quem concordar ou discordar que atire o primeiro comentário:


Longas-metragens


Riscado
Transeunte
Terra Deu, Terra Come
Um Lugar ao Sol
Na Quadrada das Águas Perdidas
Estamos Juntos
O Homem que Não Dormia
O Jardim das Folhas Sagradas
Elvis e Madona


Curtas-metragens nacionais

Qual Queijo Você Quer?
Uma Primavera
Céu, Inferno e Outras Partes do Corpo
Náufragos
Tela
Julie, Agosto, Setembro
Sala de Milagres
Acabou-se
Braxília
De Lá Pra Cá
A Morte das Velas do Recôncavo
Olho de Boi
Um Outro Ensaio
Doce de Coco
Cavalo
A Peruca de Aquiles
Calma, Monga, Calma!


Curtas-metragens baianos

Ser Tão Cinzento
Curandeiros do Jarê
Vento Leva, Vento Traz
Premonição
Cine Jequié
Lemon Lips
Cellphone
Lindeiras
Memória Urbana
A Morte de D.J. em Paris
Jardim de Plástico
Breve Passeio


quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Mostra Cinema Conquista – Diário #9


Tela (SC/BR, 2010)
Dir: Carlos Nader


Mais um curta desconcertante nesta Mostra. Tela põe em cheque não só o lugar do espectador na sala de cinema, mas também do personagem que vai ao cinema e se depara com um filme sobre uma plateia, assim como ele, assim como nós. Além disso, tem um forte assento na metalinguagem e usa isso para, de imediato, questionar a própria ideia de recepção da obra de arte (neste caso a obra fílmica), no sentido de como aquilo que vemos na tela pode mexer conosco, e de formas diferentes dos outros espectadores.

Quando o personagem de Luis Miranda percebe que o filme na tela é uma reprodução de uma platéia no cinema, ele não consegue ficar impassível, enquanto todos os outros na sala (inclusive sua namorada) parecem atentos à projeção. Discute-se assim, a ideia de filme “cabeça”, seja lá o que isso for, mas também a necessidade de sempre se ter uma explicação lógica para tudo que vemos. Sonho se mistura com realidade e isso tudo se confunde com filme projetado. Tela, da forma mais generalizante, é sobre como lidar quando a imagem de um espelho te desafia, sendo que esse mesmo espelho está apontado para você.


Calma, Monga, Calma! (PE/BR, 2010)
Dir: Petrônio de Lorena


Um clima policial com pitadas de horror é o que esse estranho Calma, Monga, Calma! procura estabelecer, por vezes se utilizando da linguagem da reportagem televisiva para contar a estranha história dos ataques que uma provável mulher-fera vem realizando na noite recifense, em especial atacando homens em cinemas pornôs ou casas noturnas. Alguns dizem se tratar de uma mulher gorila, como quem se transforma em besta.

O filme mantém escondida, a todo o momento, a identidade desse algoz, assim como filma sutilmente seus ataques, reforçando assim o clima de mistério. Uma pena que a narrativa se mostre por demais confusa, sem um personagem que guie o enredo ou alguma outra peça central da trama. Não sabemos quem ela é, de onde saiu e por que ataca as pessoas; e o filme vai terminar sem essas respostas. A investigação policial é mal desenvolvida, assim como a escolha de perguntar às pessoas na rua (em imagens que parecem reais) o que acham daquela situação. Ou seja, é confuso, sem foco, mal resolvido e quando menos se espera, acaba. Frustrante.


O Homem que Não Dormia (Idem, Brasil, 2011)
Dir: Edgard Navarro



Apesar de ter uma carreira bem consolidada de curtas e médias-metragens, de onde se destaca SuperOutro (até então seu melhor trabalho, um grito inteligente de anarquia), o baiano Edgard Navarro ganhou maior visibilidade ao sair cheio de prêmios (seis, no total) do Festival de Brasília de 2005 pelo seu bem acabado Eu Me Lembro, estréia do diretor no longa-metragem. Justo por isso, seu mais novo trabalho, O Homem que Não Dormia, trazia uma certa expectativa.

O filme, que encerrou a Mostra Cinema Conquista este ano, foi bastante aplaudido no final, embora a reação geral de confusão era perceptível pelos comentários pós-sessão. Existe muito de anarquia no filme, além de uma vontade latente em contar sua história, mas muita coisa morre na praia porque nem só de intenções vive o cinema.

Parece até que a distinção dos prêmios recebidos anteriormente subiu à cabeça do realizador que, para seu novo projeto, não se preocupou tanto com o foco de sua narrativa, embarcando numa espécie de egotrip autoral, uma vez que o filme tem muito da verve polêmica e escrachada que acompanha Navarro por toda a sua produção, inclusive fazendo parte de sua própria pessoa.

E essas são, na verdade, grandes qualidades, mas neste filme gera uma narrativa confusa e sem liga, como se a todo momento houvesse a impressão de alguma coisa está faltando, apesar das várias boas ideias espalhadas. O mais interessante é descobrir que a história acompanhava Navarro há mais de trinta anos, para só agora ganhar forma.

Numa cidade do interior baiano, cinco pessoas vivem atormentadas por um mesmo pesadelo que não os deixa dormir, envolvendo um barão, um tesouro escondido e trovões. Quando um peregrino (Luiz Paulino dos Santos) chega à cidade, as pessoas o reconhecem como o personagem do sonho, agora um tanto mudado, homem fadado a nunca dormir, perambulando pelo mundo como um andarilho.

Dito assim, parece tudo no seu lugar. Mas Navarro embaralha as histórias dos personagens, apresentando-os a partir de certos estereótipos (o padre sem fé, a mulher de vida livre, a esposa infiel do coronel, o louco torturado pelos militares, o epilético). Apresenta também os flashs da “lenda” do barão que traiu seus companheiros para ficar com um tesouro, acabando por amaldiçoá-lo a peregrinar pelo mundo eternamente sem dormir. Na mesma medida em que muita coisa fica sem explicação (e isso nem é o grande problema), há uma despreocupação em contextualizar a história e a trajetória dos personagens, tornando tudo muito solto no filme.

Existe ainda uma atmosfera que se quer anárquica porque é explícita. O diretor faz questão de dar destaque ao nu, com closes das genitálias de seus atores, numa tentativa de “chocar”, mas que peca por soar gratuita e muitas vezes forçada. É quase infantil na sua forma de chamar atenção. Em Eu Me Lembro, por exemplo, esse nu existe, mas é apresentado com muito mais naturalidade dentro da narrativa, possui uma razão de ser. Talvez seja esse um ranço do qual Navarro não consegue fugir.

Por outro lado, é interessante notar como a marca visual do cineasta, bastante evidente em Eu Me Lembro, retorna aqui na textura limpa e rebuscada da fotografia, dessa vez ganhando ares mais sombrios e, por vezes, até exagerados. A constituição do ambiente interiorano também é dos mais felizes (não à toa já recebeu prêmio por sua direção de arte).

Em O Homem que Não Dormia as diatribes de Navarro, dessa vez, parecem gratuitas e pouco estimulantes. De provocação por provocação, o cinema já está cheio, e a produção brasileira precisa menos de invenções e mais de consciência criativa. Vontade e vigor, Navarro parece ter de sobra, basta aliar isso a sensatez. Que ele durma bem para pensar no próximo projeto.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Mostra Cinema Conquista – Diário #8


Náufragos (SP/BR, 2010)
Dir: Gabriela Amaral Almeida e Matheus Rocha


Mais um curta instigante, dessa vez trabalhando com noções de fantasia. A diretora Gabriela Amaral (a mesma de Uma Primavera), agora com a parceria de Matheus Rocha, conta a curiosa história de dona Odete, senhora que vive sozinha com o marido e a empregada, e passa a presenciar coisas estranhas em casa. Em especial, existe algo estranho com a cama da mulher que parece atrair pessoas e objetos; o próprio marido é tragado para debaixo da cama logo no início do filme. É aí que a dimensão fantástica da história aponta para as fragilidades e mazelas da velhice, e passamos a questionar o que realmente é real e o que é invenção/fantasia em tudo aquilo.

A dupla de diretores sabe como ninguém criar atmosfera de tensão (porque nada se explica no filme), assim como de inquietação, já que alguns detalhes surgem como pontos de interrogação. O que representaria mesmo aquele programa de ginástica na televisão? Quais as verdadeiras intenções da empregada? Náufragos encontra-se no campo das estranhezas, e por isso mesmo estimula o espectador a se situar entre aquelas circunstâncias, embora exista uma coesão bem pertinente na narrativa. Pode ser lido como uma triste metáfora da vida em estado de estagnação.


Doce de Coco (CE/BR, 2010)
Dir: Allan Deberton


No interior do Ceará, família vive da produção e venda de cocada de coco. Diana é a única garota da família, trabalha com a mãe na feitura dos doces. Um dia no rio, é assediada por um garoto da região e vai ter sua vida mudada por disso. O filme é mais um conto em que personagem atravessa a fronteira entre infância e vida adulta, neste caso de forma abrupta, assim como o corte seco que revela a situação da menina tempos depois daquela experiência no rio.

O diretor Allan Daberton filma com muito cuidado essa passagem, mas o filme vai cometer seu maior pecado no final, na tentativa de redimir sua personagem a partir de uma saída frágil e rasteira de roteiro. Existe ainda um tom melancólico, assinalado por uma trilha sonora triste e chorosa no pianinho, que pretende criar um clima de “peninha” pela garota. E isso estraga grande parte da sutileza que vimos anteriormente.


Um Lugar ao Sol (Idem, Brasil, 2009)
Dir: Gabriel Mascaro



Um Lugar ao Sol é o típico documentário que vale muito pelos depoimentos que coleta, muitas vezes deixando o espectador embasbacado pelo que acabou de ouvir. A proposta é conversar com pessoas que moram em coberturas de grandes edifícios das cidades do Recife, São Paulo e Rio de Janeiro, característica inconfundível daqueles com alto poder aquisitivo, esses que concentram grande parte da renda econômica do Brasil.

Poucos deles se dispuseram a falar. Das 125 coberturas catalogadas num livro a que o diretor Gabriel Mascaro teve acesso, somente nove famílias e moradores concederam entrevistas para o diretor.

O resultado, por vezes, é assustador. Como quando uma senhora se diz privilegiada porque ali ela estaria “mais pertinho de Deus”, ou o casal que diz “ver tudo de cima”. A prepotência que essas colocações poderiam ter, na verdade, não existe no tom da fala deles. É como uma colocação natural, estão falando do seu dia-a-dia, até porque aquela é a realidade em que estão imersos. A relação que eles possuem com a cidade é outra da que estamos acostumados.

Mas por trás disso, existe todo um discurso de distanciamento social de uma classe que parece ver isso sem nenhuma problematização. Um dos entrevistados chega a dizer que morar num edifício é “socializante”, porque um mesmo espaço vertical suporta várias moradias. Mas ao mesmo tempo, todos eles dizem prezar pelo tamanho espaçoso e pela privacidade que essas moradias lhes oferecem, fator justamente de distanciamento social. É aí que percebemos a fragilidade do discurso.

Interessante destacar certo traço do cinema documental contemporâneo no filme ao investigar determinado objeto a partir de um ponto de vista específico. Nesse caso, Um Lugar ao Sol se propõe a um contato com a mentalidade de uma classe alta-alta, demonstrando toda sua fragilidade de pensamento burguês, sem cair na “obrigação” de ter de ouvir o outro lado. O filme tem um propósito bem claro, e tenta focar nesse aspecto.

Mas mesmo assim, o documentário não consegue aprofundar demais no tema proposto, uma vez que a questão da moradia, no Brasil, é assunto capcioso. O próprio documentário se acomoda em sua proposta apostando somente nas falas de seus entrevistados, sem ousar demais narrativamente. O fato de serem poucos os depoimentos conseguidos também nos faz pensar que alguns têm coisas mais interessantes (e reveladoras) a falar que outros.

Mas, de qualquer forma, Um Lugar ao Sol marca o valor de discutir um tema a partir de um ponto de vista inicialmente duvidoso, mas que revela uma perspectiva não só interessante, mas também necessária de se ouvir.

Mostra Cinema Conquista – Diário #7


Sala de Milagres
(BA/BR, 2011)
Dir: Cláudio Marques e Marília Hughes


A romaria de Bom Jesus da Lapa, tradicional no interior da Bahia e um das maiores festas católicos do Brasil, é o tema de Sala de Milagres, que documenta um dia na cidade durante o evento religioso. E seu maior trunfo é revelar as várias facetas que ali se encontram, sejam elas sagradas ou profanas. Talvez por isso, faça tanto sentido que Edgard Navarro (diretor de O Homem que Não Dormia) abra o filme, olhando diretamente para a câmera, e seja o narrador das cartas em que os fiéis pedem e agradecem a Deus as dádivas.

O filme é todo marcado pela leitura de algumas dessas cartas com a voz doce de um Navarro apaziguador, já que existe muita sinceridade nas palavras dos fiéis. O filme mostra desde a aglomeração das pessoas nas grutas e nas ruas, vindo em busca de graça divina, até as atrações que acontecem ao entorno, como os banhos de rio, o encontro nos bares ao som do arrocha e do pagode característicos do interior baiano e as casas noturnas. O filme observa calmamente aquela realidade, sem grandes interferências (não entrevista ninguém), pois crê, felizmente, na força de suas imagens. Elas dizem muita coisa sobre a fé e a realização pessoal e a busca por isso.


Cavalo (SP/BR, 2010)
Dir: Joana Mariani


A animalização do ser humano a partir da perspectiva da exploração. Cavalo é um retrato amargo de um morador de rua e aparentemente um doente mental (vivido por Milhem Cortaz) que é usado por um homem como burro de carga para levar seu carrinho enquanto ele cata papel. O homem é tratado como um cavalo, brutalizado e pouco cuidado, sua condição é de miséria humana.

E se o explorador pode ser facilmente acusado e vilanizado, o filme vai conseguir criar uma complexidade para seus atos, mas sem nunca redimi-lo. Esse tipo de cuidado com os personagens e sua dimensão dramática só reforça o grau de humanidade da história, para além de ser bem fotografado e filmado. No entanto, existe uma tentativa de criar uma sensação de liberdade no momento final que parece apontar para uma solução muito simples de uma situação bem mais complicada. É aí que o filme perde pontos.


Elvis e Madona (RJ/BR, 2010)
Dir: Marcelo Laffitte



A maior ousadia e originalidade de Elvis e Madona se encontra em sua sinopse: travesti se apaixona por lésbica. Acaba por aí. O longa-metragem de estreia de Marcelo Laffitte chega a ser vergonhoso na forma caricatural com que trata seus personagens. Mas o maior pecado do filme é um roteiro completamente mal cuidado, com péssimos diálogos e escolhas narrativas equivocadas, claramente falseadas para compor determinados climas que a história precisava.

Mesmo assim, a reação do público presente no Centro de Cultura era de empolgação e divertimento (chegando a aplaudir três vezes em cena aberta), muito embora outras tantas pessoas saíram indagando como um filme, que mais parece saído de um sitcom televisivo (ouvi isso de umas quatro pessoas), foi parar na seleção da Mostra, fora os que abandonaram a sessão antes de terminar, constrangidos.

Se existe uma luta, não só no Brasil, no sentido de combate ao preconceito sexual, Elvis e Madona tenta dar um passo a frente ao assumir como protagonistas um casal tão insólito quanto este. A travesti Madona (Igor Cotrim) conhece por acaso a motoboy e fotógrafa nas horas vagas Elvis (Simone Spolidoro). A química entre eles é imediata, um relacionamento próximo é inevitável. Pena que a narrativa siga caminhos tão ridículos, colocando muito dessa “coragem” a perder.

Madona, por exemplo, começa o filme sendo assaltada em casa pelo explorador e seu antigo affair João Tripé (Sérgio Bezerra). No outro dia, chega ao salão de beleza onde trabalha e quando conta a todos o ocorrido, eles resolvem fechar o salão para dar um banho de produção em Madona. Pronto, ela parece já ter esquecido que Tripé roubou todas as economias que ela estava guardando para um esperado espetáculo musical que sonha em produzir e estrelar.

É esse tipo de detalhe que tanto enfraquece a narrativa, o que só revela as fragilidades de um roteiro que insiste em criar situações que soam falsas. Exemplo claro é quando Elvis apresenta Madona a sua família. A mãe dela (Maitê Proença), em especial, se revela uma megera retrógrada, para na cena final do encontro, como que por passe de mágica, se revelar orgulhosa da filha (!?!). O então a atmosfera policialesca decorrente das ameaças de Tripé que, além de encerrar o filme da forma mais lugar-comum possível, pouco convence.

A narrativa tenta ainda se engajar num discurso social uma vez que Elvis vende suas fotografias tiradas nas ruas para um jornal (e Tripé não vai demorar em aparecer em uma delas, envolvido com tráfico de drogas). Mas o pior mesmo é quando Elvis chega a dizer que ela quer ser fotojornalista para “mostrar a realidade do país pra ver se muda alguma coisa”. Basta só saber se esse tipo de simplismo é fruto da ingenuidade do roteirista (o próprio Laffitte) ou não passa mesmo de ignorância. O problema é que o próprio discurso fílmico parece endossar essa perspectiva idealizada do jornalismo (e o filme vai mostrar isso da forma mais sensacionalista quando Elvis conseguir um “furo de reportagem” fotográfico).

Sendo uma das grandes atrizes hoje no cinema nacional, é difícil entender o que Simone Spoladore faz num filme desses (na verdade, do ano passado pra cá ela já entrou em outras furadas, como nos péssimos Insolação e Não Se Pode Viver sem Amor). Poucas vezes ela consegue driblar o texto ruim, mas se esforça. Igor Cotrim nem isso consegue, criando sua Madona com os trejeitos mais clichês possíveis, todo caras e bocas. Elvis e Madona parece dar tiros no próprio pé a todo instante. Sabota um projeto que tinha muito de coragem, mas não passa de uma boa ideia inicial.

domingo, 13 de novembro de 2011

Mostra Cinema Conquista – Diário #6


A Peruca de Aquiles (RJ/BR, 2010)
Dir: Paulo Tiefenthaler


Artistas vão ao morro em busca de drogas. Chegando lá são confundidos com policiais à paisana e se vêem em maus bocados. Boa ideia a desse curta, embora realização não seja das melhores. A despeito da caricatura dos traficantes e dos artifícios de roteiro para que seu argumento funcione (como a forma encontrada para que se dê a confusão de identidades), A Peruca de Aquiles só ganha pontos no conceito visual, muito bem tratado, em especial a boa fotografia.

Mas no fim das contas, o curta tenta trazer valor para o trabalho do ator, conferindo potência e importância à encenação (a cena em que o protagonista usa a peruca do título e recita seu texto coroa corretamente essa proposta). Existe ainda uma tentativa de dar um certa cutucada a essa mesma classe artística e seu contato com o mundo das drogas (como usuários, diga-se), conferindo um ar policial ao curta. Mas assim ele pouco funciona porque o pouco cuidado na construção dos personagens impede a formação dessa atmosfera. Esse é seu verdadeiro calcanhar.


Olho de Boi (BA/BR, 2011)
Dir: Diego Lisboa


Um garoto pobre e sua relação com a fé. Olho de Boi usa um conto moral para reforçar a ideia de crença religiosa a partir do imaginário infanto-juvenil, inserida numa comunidade periférica de Salvador. O menino acuado e ameaçado pelos garotos mais velhos depois de ganhar de presente um sapato usado (mas de grande utilidade) é o cerne da história. Muito bem produzido, o curta só peca pelo moralismo da conclusão de sua história.

Algumas outras coisas incomodam na narrativa, como a caricatura com que a figura dos pais do garoto é construída, sempre expansivos e grosseiros, ou mesmo a composição exagerada do Preto Velho de Carlinhos Brown. Mas o pior mesmo é o tom final que correlaciona a falta de fé (ou de crença suficiente) às consequências da violência e da dor. O curta até se esforça para não ser somente uma lição de moral religiosa, através da potencialidade da imaginação, mas ainda assim não consegue fugir de seu destino moralista. A menos que se pense na necessidade de abandonar a crença religiosa como entidade salvadora que deve guiar nossas ações. Mas o próprio filme não parece comprar essa ideia.


Terra Deu, Terra Come (MG/BR, 2009)
Dir: Rodrigo Siqueira



A Morte é figura presente em Terra Deu, Terra Come. O documentário aporta numa comunidade remanescente quilombola, o Quartel do Indaiá, distrito de Diamantina, no interior de Minas Gerais e tenta resgatar as tradições antigas daquele povo. O documentário parece resgatar um espaço mítico que demonstra uma relação peculiar daquela gente com a ideia de finitude da vida.

O filme começa com imagens incríveis do velório de um homem de 120 nos de idade. Seu Pedro é quem conduzirá a cerimônia de cortejo fúnebre e enterro, se tornando figura central da narrativa. Os diretores aproveitam para extrair desse senhor a forma com que eles entendem e lidam com a morte, assim como com a ideia das forças não-humanas que fazem mal ao homem, ou que com ele faz pactos (e fica a dúvida se João Batista, o morto, para viver 120 anos, não seria um deles). Tudo isso dota a história de um tom místico dos mais interessantes (e também respeitosos).

Mas entre os momentos que marcam os passos do funeral (que se concentram no início e fim do filme), o diretor Rodrigo Siqueira aproveita para explorar as histórias e crenças antigas daquele povo, que vieram trabalhar nas minas de garimpo, e que guardam ancestralidade com africanos conhecidos como vissungos, resgatando inclusive o dialeto banguela, sendo seu Pedro um dos poucos que ainda dominam esses conhecimentos.

Já ouvi dizer que o filme promove uma mistura de Jean Rouch com Guimarães Rosa. Nada mais pertinente. O tom etnográfico se mistura ao universo interiorano e humilde de um povo que carrega riqueza na tradição que guarda, inclusive pela linguagem um tanto embolada que eles falam (não à toa o filme é todo legendado, embora não seja necessariamente difícil de entender a fala dos personagens).

Mas o final do filme guarda ainda uma surpresa quando a narrativa revelar sua verdadeira faceta de intersecção entre documentário e ficção (e aí faz mais sentido que o filme comece com uma fábula contada por seu Pedro sobre a figura da Morte e de sua função de levar as pessoas embora dessa vida). Aí, a encenação, que já aparecia no decorrer da narrativa a partir das histórias de seu Pedro (por vezes incorporando-as, inclusive, usando uma máscara de papelão), reforça ainda mais a atmosfera metafísica e fabular do filme, ajudada por uma fotografia forte e contrastante entre claro e escura. E ainda realça a linha entre verdade e recriação.

De qualquer forma, seja documentário ou ficção, Terra Deu, Terra Come é uma forma, antes de tudo. Mostra um caminho possível para revelar diante da câmera as relações entre vida e morte, bem e mal, homem e aquilo que está acima dele. O desconhecido, portanto.

sábado, 12 de novembro de 2011

Mostra Cinema Conquista – Diário #5


Um Outro Ensaio (RJ/BR, 2010)
Dir: Natara Ney


Um Outro Ensaio começa lançando um olhar bastante redentor para sua protagonista, uma deficiente visual. Ela é casada com um homem sem a deficiência e revela uma independência incrível nos afazeres domésticos da mesma forma que transita nas ruas com muita desenvoltura. O texto do curta, ao focar na convivência dos dois, acaba expondo também a intimidade do casal, num clima isento de moralismos, tipo de tom sempre bem-vindo.

Se essa primeira metade sugere uma certa concessão a essa mulher, pois devemos acreditar em toda sua independência, a segunda parte do filme vem para mudar essa perspectiva e complexificar a discussão sobre as possibilidades e limitações dos deficientes visuais. Mas faz isso através de um golpe de roteiro que parece sabotar o início do filme, apostando numa solução que pretende ser defendinda como uma possibilidade necessária e viável, se esforçando bastante para deixar o espectador feliz ao fim da sessão. Pergunto-me somente se as coisas parecem tão fáceis como o filme tenta demonstrar.


Céu, Inferno e Outras Partes do Corpo (RS/BR, 2010)
Dir: Rodrigo John


Assim como faltam mais curtas de animação nessa edição da Mostra (esse é o único, na realidade), falta também muito do vigor e da criatividade desse curta nos outros representantes. Céu, Inferno e Outras Partes do Corpo vem marcado pela estranheza, pela inquietação, justamente suas maiores qualidades. Nele, cães com feições e comportamentos humanos (ou seriam humanos agindo como cães?) povoam um mundo caótico, como se a narrativa do filme pertencesse a outra realidade, inteiramente subjetiva. O traço tradicional da animação reforça ainda mais esse caráter de devaneio.

Uma chave possível de interpretação pode recair sobre a relação entre paixão e loucura, pois o cão protagonista parece estar vivendo uma ressaca de amor depois de ser dispensado pela companheira da qual não consegue parar de pensar. Por isso seu mundo (um universo particular) soa totalmente descabido, desregulado, fora de órbita. Mas o peso desse estado de “fossa” é quebrado por um humor negro gritante (personagem coloca o coração pra secar no varal e guarda o cérebro na geladeira antes de sair de casa, entre outras bizarrices), quando por fim, cai no escatológico e no grotesco. É a confirmação de que, por (muitas) vezes, vivemos num mundo cão.


Transeunte (RJ/BR, 2010)
Dir: Eryk Rocha



A trajetória de seu Expedito (Fernando Bezerra), um senhor de idade, sem esposa ou filhos, morando agora sozinho depois da morte recente da mãe de 81 anos, parece ser a história ideal da decadência e desolação que marcam o fim da vida de alguém. Pois o grande mérito de Transeunte é justamente expor o contrário, transformando a rotina desse personagem num caminho de autoaceitação e felicidade prováveis, na medida do possível e a passos lentos.

Não se trata aqui de superação, é muito mais que isso. Expedito vai aprender a conviver com suas limitações de idade, seu ritmo próprio e sua condição solitária. E o grande mérito do filme é respeitar enormemente esse personagem, sem nenhum traço de piedade por sua condição. Na verdade, existe muito carinho por esse senhor errante que passa grande parte do tempo caminhando pelas ruas do Rio de Janeiro.

Expedito anda, ouve as pessoas, observa, sempre como um anônimo na multidão. Começa o filme num estado de melancolia por conta da morte da mãe e vai passando por uma lenta transição de estado de espírito, revelando um olhar mais terno para a vida, apesar das suas limitações. E são muitos os momentos que representam isso. Numa cena, por exemplo, ele vê uma garota enviando uma mensagem de amor por celular; poderia ver aquilo com amargura, mas ri com isso. Ou então os jogos de futebol que deixam de ser conferidos pelo radinho e passam a ser presenciais, com toda a emoção que uma torcida no estádio proporciona. Mas nada é tão bonito e surpreendente como os minutos finais, uma grande redenção para o personagem.

Nesse sentido, é interessante perceber a força de uma fotografia em preto-e-branco sem nenhum traço de tristeza ou mesmo carregada. Pelo contrário, revela uma luminosidade forte, de algo vivo, nunca entristecedora. Em alguns momentos a proximidade da câmera com o ator granula a imagem, mas na maior parte das vezes existe muita luz no filme.

Eryk Rocha, filho de Glauber, estreia aqui no longa ficcional depois de três documentários (Rocha que Voa, Intervalo Clandestino e Pachamama) e filma com planos fechadíssimos, o que só reforça a relação de intimidade e observação que o filme mantém com o protagonista e sua rotina, acompanhando-o aonde ele for, sem interferências.

No entanto, as duas horas de projeção fazem o filme parecer maior do é, até mesmo pela sua atmosfera contemplativa. O ritmo lento, na verdade, faz muito sentido para a história desse homem de rotina arrastada, mas Transeunte seria mais palatável se fosse um pouco mais enxuto, principalmente na sua primeira metade.

Só por não tratar seu protagonista com “peninha” e comiseração, Transeunte já valeria o esforço de um filme que exige um tanto de atenção do espectador. Como exercício fílmico, reforça a técnica a serviço da história que quer contar, essa de demonstração de dignidade que Expedito nos oferece, sem amargor, sem reprovação.