sábado, 29 de julho de 2017

O tempo da música

De Canção em Canção (Song to Song, EUA, 2017)
Dir: Terrence Malick 


Nos últimos anos, o cinema de Terrence Malick tem enveredado por um caminho que muitos enxergam entre a abstração e a busca filosófico-existencialista que descamba no nada. A despeito da recepção negativa desses filmes, vistos como pretensiosos demais, o diretor parece pouco se importar com as críticas e recusas a sua nova proposta narrativa e continua investigando os caminhos e pensamentos incertos da alma tumultuada de seus personagens errantes.

Se os filmes dessa fase – que começa com o portentoso Árvore da Vida – parecem pretensiosos demais, talvez uma maneira de se aproximar deles seja através de um pensamento que vai em direção oposta ao da pretensão: apesar de apontar para questões amplas e metafísicas, tais obras não são mais do que investigações pontuais sobre os (des)caminhos de seus personagens. Não querem ser mais do que isso, do que viagens subjetivas ao centro das inquietações de cada um. E, nesse sentido, acredito que Árvore da Vida deva ser posto já em outro patamar, como bola fora da curva, porque se trata de um filme realmente ambicioso, mas que, a meu ver, banca muito bem sua pretensão, estética e tematicamente, conseguindo a proeza de ser redondo, coeso, apesar de parecer hermético (escrevi mais sobre ele aqui), além de fundador de um novo caminho narrativo formatado e explorado por Malick desde então.

Daí que de Amor Pleno, passando por Cavaleiro de Copas até chegar nesse aqui, Malick tenha se encantado pelas possibilidades da investigação das agruras humanas a partir de uma jornada interna de autoquestionamentos. O segundo talvez seja o mais conciso em termos narrativos porque se concentra em um único personagem. Já De Canção em Canção chega perto do filme coral, sem protagonista definido, e intercala seus personagens que se cruzam em meio à rica cena musical em Austin, no Texas, onde acontece um importante festival de música. BV (Ryan Gosling) se envolve com a baixista Faye (Rooney Mara) enquanto seu produtor Cook (Michael Fassbender) se encanta pela garçonete interpretada por Natalie Portman.

De Canção em Canção parece alcançar a saturação desse dispositivo em que a fragmentação narrativa e o entrecorte de um intervalo conturbado da vida dos personagens faz o filme vibrar com interesse pelo modo com que eles caminham por esse terreno arenoso que são suas próprias histórias de vida atuais. Com isso, o filme não precisa se importar muito com o desencadeamento lógico das ações e com as relações muito demarcadas de causa e consequência.


A reflexão existencial, a fragmentação narrativa, cortes bruscos, o homem em embate com o tempo e com a natureza, tudo isso já estava ali no cinema de Malick desde os filmes anteriores, mas tinha roupagem mais definida porque situavam-se em paisagens mais palpáveis. Agora ele abandona contextos maiores (a guerra, a América rural, a América nativa) para se concentrar em conflitos interiores, mas não menos amplos, de gente deslocada no mundo contemporâneo (com curiosa preferência por pessoas de classe social alta, que trafegam perdidas em meio a festas em casarões vistosos, ambientes sofisticados, bebendo e comendo em lugares caros em meio a convidados famosos).

O que, no entanto, pode depor contra a ideia de que o filme não precisa ser encarado como estudo de todo pretensioso é a insistência em recheá-lo com imagens que se querem exuberantes, a traduzir esse estado quase cósmico de autorreflexão, via textura digital ultra cristalina – pejorativamente associada a mensagens de power point edificantes. Até disso De Canção em Canção já parece ter se cansado, ou invista mais na paisagem urbana por onde os personagens trafegam, deixando de lado o aparente tom universalista que cenários naturais possam transmitir, já saturados nos filmes anteriores do cineasta. Ainda assim, as firulas continuam lá, são um caminho sem volta nessa proposta narrativa a que o diretor se apegou. Porém, mais uma vez, é possível entendê-las não como tentativa de ousadia e pirotecnia visual, mas antes como formulação da grandeza exterior que se contrapõe aos anseios de cada um dos indivíduos errantes e suas preocupações pessoais, encolhidos em suas vidas monótonas. 

Os protagonistas de De Canção em Canção experimentam certo estado de suspensão diante das agruras da vida, mas com seus corpos em constante movimento, irrequietos, em busca de algo, de respostas, afetos e abrandamento das dores. A montagem fragmentada ajuda muito a construir essa percepção, ao mesmo tempo em que torna tais angústias tão fugidias e mesmo difíceis de decifrar. Não há nada de muito novo nisso tudo em comparação ao que Malick já nos apresentou até então, mas há de se tentar dimensionar, sem grandes ambições, o interesse por essa formulação etérea que é alguém em busca de si mesmo.