De Canção em Canção
(Song to Song, EUA, 2017)
Dir: Terrence Malick
Nos últimos anos, o cinema de Terrence Malick tem enveredado
por um caminho que muitos enxergam entre a abstração e a busca
filosófico-existencialista que descamba no nada. A despeito da recepção
negativa desses filmes, vistos como pretensiosos demais, o diretor parece pouco
se importar com as críticas e recusas a sua nova proposta narrativa e continua investigando
os caminhos e pensamentos incertos da alma tumultuada de seus personagens
errantes.
Se os filmes dessa fase – que começa com o portentoso Árvore da Vida – parecem pretensiosos
demais, talvez uma maneira de se aproximar deles seja através de um pensamento
que vai em direção oposta ao da pretensão: apesar de apontar para questões
amplas e metafísicas, tais obras não são mais do que investigações pontuais
sobre os (des)caminhos de seus personagens. Não querem ser mais do que isso, do
que viagens subjetivas ao centro das inquietações de cada um. E, nesse sentido,
acredito que Árvore da Vida deva ser
posto já em outro patamar, como bola fora da curva, porque se trata de um filme
realmente ambicioso, mas que, a meu ver, banca muito bem sua pretensão,
estética e tematicamente, conseguindo a proeza de ser redondo, coeso, apesar de
parecer hermético (escrevi mais sobre ele aqui), além de fundador de um novo
caminho narrativo formatado e explorado por Malick desde então.
Daí que de Amor Pleno,
passando por Cavaleiro de Copas até
chegar nesse aqui, Malick tenha se encantado pelas possibilidades da
investigação das agruras humanas a partir de uma jornada interna de
autoquestionamentos. O segundo talvez seja o mais conciso em termos narrativos
porque se concentra em um único personagem. Já De Canção em Canção chega perto do filme coral, sem protagonista
definido, e intercala seus personagens que se cruzam em meio à rica cena
musical em Austin, no Texas, onde acontece um importante festival de música. BV
(Ryan Gosling) se envolve com a baixista Faye (Rooney Mara) enquanto seu
produtor Cook (Michael Fassbender) se encanta pela garçonete interpretada por
Natalie Portman.
De Canção em Canção
parece alcançar a saturação desse dispositivo em que a fragmentação narrativa e
o entrecorte de um intervalo conturbado da vida dos personagens faz o filme vibrar
com interesse pelo modo com que eles caminham por esse terreno arenoso que são
suas próprias histórias de vida atuais. Com isso, o filme não precisa se importar muito com o desencadeamento
lógico das ações e com as relações muito demarcadas de causa e consequência.
A reflexão existencial, a fragmentação narrativa, cortes
bruscos, o homem em embate com o tempo e com a natureza, tudo isso já estava
ali no cinema de Malick desde os filmes anteriores, mas tinha roupagem mais
definida porque situavam-se em paisagens mais palpáveis. Agora ele
abandona contextos maiores (a guerra, a América rural, a América nativa) para
se concentrar em conflitos interiores, mas não menos amplos, de gente deslocada
no mundo contemporâneo (com curiosa preferência por pessoas de classe social
alta, que trafegam perdidas em meio a festas em casarões vistosos, ambientes
sofisticados, bebendo e comendo em lugares caros em meio a convidados famosos).
O que, no entanto, pode depor contra a ideia de que o filme
não precisa ser encarado como estudo de todo pretensioso é a insistência em
recheá-lo com imagens que se querem exuberantes, a traduzir esse estado quase
cósmico de autorreflexão, via textura digital ultra cristalina – pejorativamente
associada a mensagens de power point edificantes.
Até disso De Canção em Canção já
parece ter se cansado, ou invista mais na paisagem urbana por onde os
personagens trafegam, deixando de lado o aparente tom universalista que cenários
naturais possam transmitir, já saturados nos filmes anteriores do cineasta. Ainda
assim, as firulas continuam lá, são um caminho sem volta nessa proposta
narrativa a que o diretor se apegou. Porém, mais uma vez, é possível entendê-las não
como tentativa de ousadia e pirotecnia visual, mas antes como formulação da grandeza exterior que se contrapõe aos anseios de cada um dos indivíduos errantes
e suas preocupações pessoais, encolhidos em suas vidas monótonas.
Os protagonistas de De
Canção em Canção experimentam certo estado de suspensão diante das agruras
da vida, mas com seus corpos em constante movimento, irrequietos, em busca de algo,
de respostas, afetos e abrandamento das dores. A montagem fragmentada ajuda
muito a construir essa percepção, ao mesmo tempo em que torna tais angústias tão
fugidias e mesmo difíceis de decifrar. Não há nada de muito novo nisso tudo em comparação
ao que Malick já nos apresentou até então, mas há de se tentar dimensionar, sem
grandes ambições, o interesse por essa formulação etérea que é alguém em busca
de si mesmo.