segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Um corpo em um espaço

Fome (Idem, Brasil, 2015)
Dir: Cristiano Burlan


Filme denso e provocador, Fome, do prolífico Cristiano Burlan, parece um filme cheio de nuances e questões, nem sempre fáceis de organizar talvez mesmo pelo caráter aglutinado que parte de uma situação inusitada: o filme é protagonizado pelo crítico e respeitado pesquisador Jean-Claude Bernardet, interpretando aqui, inusitadamente, um morador de rua.

Numa nova fase da carreira, Bernardet prefere estar frente às câmeras, ousar-se em papéis que exigem um lado mais performático/improvisado/subjetivo, em projetos com vontade maior de experimentar mesmo. Talvez estejamos aqui diante de seu melhor trabalho como ator nos últimos anos – depois de assumir o risco em filmes como Pingo D’Água e FilmeFobia, nesse último interpretando a si próprio.

Quando apresentou Fome no último Festival de Brasília, Bernardet falou de certa tradição da deambulação de personagens no cinema, o que resume bem seu papel e a trajetória incerta pelas ruas de São Paulo como mendigo. Empunha um carrinho cheio de quinquilharias, a cata de comida e sossego na metrópole que o filme capta como espaço tão amplo quanto aprisionador, repleto de “perigos” que a própria sociedade impõe a quem habita ali do lado de fora.

O diretor Cristiano Burlan embaralha alguns registros no filme e talvez por isso soe trôpego em alguns momentos. Acompanha esse personagem pela cidade, faz algumas entrevistas com moradores de rua reais e insere uma personagem feminina, uma estudante (Ana Carolina Marinho), que pesquisa a situação desses moradores. O filme divide-se entre a denúncia não de uma situação precária, mas antes da maneira como a sociedade média lida com esses sujeitos aparentemente desamparados nas ruas, mas também aponta para um traço de lirismo, do sujeito/ator que interage com os elementos e situações que cruza o seu caminho, ficcionalizados ou não; esses são os melhores momentos do filme – o encontro com um estranho cantor é um dos mais belos do longa.

No entanto, essa proposição de um recurso multifocal pode acabar minando as provocações que o filme poderia potencializar. No fundo, me parece que Fome resolveria-se muito melhor se se fixasse no âmbito da ficção – mesmo sendo aquele que encosta no mundo real. Não faço aqui uma defesa da ficção pura como algo de valor imanente. Há uma dezena de ótimos filmes, recentes ou não, que misturam registros, passeiam entre ficção e observação do real, em níveis distintos e com resultados incríveis. Mas essa é antes uma observação pontual num filme que, na ânsia inquieta de experimentar, constrói um discurso que muitas vezes soa como aleatório, pouco apurado na narrativa, ou mal posto no filme.

O personagem de Bernardet carrega em si uma personalidade arredia: não se sujeita a coitadismos, não assume postura condescendente e em certo momento, perto do fim do filme, numa cena com o também crítico Francis Vogner dos Reis, “revela” que está na rua porque assim o deseja, cansado da vida de professor universitário que levava. A cena certamente carrega certa graça pelo tom inusitado, pelo diálogo de embate entre os dois, mas nesse ponto o filme rompe mais uma vez com a ficção quando o Jean-Claude Bernardet professor, ensaísta e crítico experiente, homem que acumulou vivências e conhecimentos ao longo de tanto tempo de vida, reconhecido e respeitado no meio cinematográfico brasileiro, emerge na narrativa como de si mesmo, ainda que amparado em um personagem fictício. 

E aí a persona mendigo perde força na narrativa, pois soa como mero capricho no filme, experimento de classe média, personificado por essa figura tarimbada. A fotografia estilizada contrapõe-se ao título que remete à miséria, aos relatos duríssimos e reais de gente que sofre e faz da rua seu campo de batalha cotidiana. Tudo parece ser nublado pela direção conciliadora que o filme passa a promover. Fome é difícil de definir, distende-se em muitas direções e acaba diluindo-se nelas, mas ao menos nos confronta e mobiliza a discutir a relação de um corpo em um espaço, ambos muito peculiares e potentes por aquilo que carregam enquanto significantes de um imaginário real e palpável, mas não menos misteriosos.
 

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Autopancadaria

Esquadrão Suicida (Suicide Squad, EUA, 2016)
Dir: David Ayer


O mundo pop-nerd viva em alvoroço desde o anúncio da adaptação para os cinemas da HQ do Esquadrão Suicida, aposta da Warner/DC Comics no filme pancadaria do momento, depois de uma campanha de marketing repleta de hype em cima do projeto – a lógica do sucesso do filme comercial não pode abdicar da propaganda. Como muitas vezes acontece quando a expectativa é muito grande, o filme revela-se uma bela decepção pela própria incapacidade de domar o material que tem em mãos.

Se o lance agora é apostar em atmosferas sombrias e adultas, com boas doses de violência e pitadas de humor negro e deboche, o grande “atrativo” de Esquadrão Suicida estaria na sua premissa bad ass: reunir pessoal mal encarado e da pesada, mas com habilidades especiais, que os tonariam aptos a proteger o país – mais uma vez o tema da segurança nacional como mote. Temos ali a reunião dos anti-heróis, pessoas perturbadas e/ou criminosos encarcerados, reunidos como os piores entre os maus, a fim de formar uma coalizão para proteger a nação dos perigosos meta-humanos, aqueles com poderes especiais como o Superman, por exemplo – que sempre ajudou a salvar a Terra, diga-se.

Assim, o próprio conceito do filme já nasce sem muita originalidade e razão de ser, tornando-se dependente de certa boa vontade do público para ser aceito. Mas o filme não se contenta com esse “escorregão” e desenvolve tão mal seus personagens e sua trama que Esquadrão Suicida não demora para se revelar uma bagunça sem fim e irremediável.

Todo o hype em relação ao filme concentrava-se muito nos personagens, que acabam sendo ao mesmo tempo a força e a perdição do filme. São muitas histórias para apresentar, personagens que ficam pelo meio do caminho, outros que caem de paraquedas na trama, muitos flashbacks para explicar motivações e comportamentos dos novos justiceiros, o que torna a trama inchada e desproposital.

A versão do Coringa construída em/por Jared Leto era a mais alardeada e é a mais decepcionante pela forma cabotina com que aparece e pelo adendo que representa na história. Sobra espaço para a Arlequina de Margot Robbie triunfar. Ela tem boa presença, as melhores tiradas, mesmo que isso pareça ensaiado como forma do filme gritar “girl power” e, de quebra, sensualizar a personagem. Enquanto isso, o Pistoleiro (Will Smith) firma-se como protagonista na história, deixando para trás figuras mais interessantes como El Diablo (Jay Hernandez), e outros menos, como o Capitão Bumerangue (Jai Courtney) e o Crocodilo (Adewale Akinnuoye-Agbaje). 

No fundo, Esquadrão Suicida parece um filme de pretexto para reunir personagens bizarros e intoleráveis, dotá-los de habilidades incomuns a fim de promoverem pancadaria na cidade, com o objetivo primordial de exibir esses mesmos personagens e suas excentricidades atrevidas com gosto de anarquia e curtição, casualmente tendo de salvar o mundo de ameaças mais terríveis do que eles já representam. 

E até a construção vilanesca que marca o perigo que eles têm de enfrentar é autoinfligido: a Magia (Cara Delevingne), poderosa feiticeira que se apossa do corpo de uma arqueóloga, seria mais uma integrante do grupo, mas não consegue controlar seus poderes e a vontade de libertar o irmão e dominar o mundo, ou algo perto disso. É como um tiro que não acertou o alvo, representação mais do que fiel do próprio Esquadrão Suicida.

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Os nós da mente

A Loucura Entre Nós (Idem, Brasil, 2015)
Dir: Fernanda Fontes Vareille


Dentro do hospital psiquiátrico Juliano Moreira, em Salvador, a diretora Fernanda Vareille mira sua câmera nos pacientes que ali fazem tratamento. Eles vivem encarcerados por trás das grades e das perturbações psicológicas que sofrem, em níveis distintos para cada um.
  
O documentário baiano A Loucura Entre Nós, que estreia essa semana nos cinemas brasileiros, tem o cuidado sensível de observar e dar voz a quem muitas vezes negamos a razão. Está longe de simplesmente pregar o traço de “lucidez” na loucura que os pacientes trariam consigo, espécie de clichê às vezes visto na representação de pessoas com esse quadro psicológico.

Felizmente o filme também não ignora a existência de casos mais graves de esquizofrenia e não deixa de pontuar que pode ser até mesmo perigoso para a diretora e equipe andarem desacompanhados por aqueles corredores, já que alguns pacientes podem apresentar comportamento agressivo. Há ainda os pacientes com discurso aleatório e desconexo, pessoas que vivem um grau menor de lucidez.

Enfim, trata-se de uma nuance difícil de apreender pela própria diversidade de comportamentos e casos particulares da doença. Mas o documentário é feliz em revelar dignidade no contato com o outro nessa posição de fragilidade, imprimindo respeito e demonstrando atenção pela história daquelas pessoas, num ano em que o cinema brasileiro lançou a ficção Nise – Coração da Loucura, de Roberto Berliner, acentuando a importância do trabalho da Dr. Nise no tratamento humanista do paciente esquizofrênico.

Ao partir nessa jornada, mais interessada numa apreensão do subjetivo, o documentário observa com grande atenção aqueles pacientes de um local específico . No entanto, a narrativa caminha no sentido de se afeiçoar a duas mulheres em condições diferentes de doença mental e que acabam colocando em questão muito do que significa estar naquela condição. Elizangela e Leonor tornam-se os faróis que guiam o filme.

São personagens que evoluem mesmo no decorrer da narrativa. A opção de não entrevistar nenhum médico, especialista ou algum representante da administração do hospital reforça esse caráter humanista e subjetivo, apreendido nas falas das personagens, e de outros pacientes, que acabam jogando luz sobre vários aspectos de uma dura rotina: as delicadas e doídas relações entre paciente e família, a solidão que atravessa o cotidiano, o companheirismo e as rixas entre os próprios pacientes, a aceitação de si e do outro. 

Quando uma das personagens canta a tristíssima Lágrimas Negras, canção imortalizada na voz de Gal Costa, enquanto realiza um trabalho manual qualquer, o filme abre-se para a dureza de uma vida cercada de limitações, sejam elas autoimpostas, socialmente “aceitáveis” ou mediadas pela condição patológica de quem convive por entre os limites da razão. A loucura emerge não como característica que rotula, mas como um embate constante para não se perder e para não se deixar perder de vista. Há quem nela sucumba e quem na multidão se infiltra, querendo ser mais um entre tantos, dignos de levar a vida adiante.

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Meu mundo em perigo

Mãe Só Há Uma (Idem, Brasil, 2016) 
Dir: Anna Muylaert


Depois de tanto sucesso e tamanha discussão em torno de questões sociais de um Brasil em transformação promovida pelo seu filme anterior, o ótimo Que Horas Ela Volta?,  Anna Muylaert não parou e já lançou seu novo trabalho, o provocador Mãe Só Há Uma, mais uma vez tendo passado pelo Festival de Berlim este ano.

Se a questão da maternidade parecia um caminho a ser traçado aqui, dando certa continuidade às discussões do longa precedente – e ainda mais com esse título, que, de certo modo, contraria a versão em inglês do título do filme anterior, “A Second Mother” ou “Uma Segunda Mãe” –, ainda que fosse um assunto transversal na trama, coexistindo com uma série de outros tópicos, em Mãe Só Há Uma a cineasta e roteirista acrescenta outro mote que parece mais forte, e de certo modo muda a direção que a narrativa passa a seguir: a questão do gênero e das identidades sexuais.

A trama gira em torno do conhecido episódio, tão noticiado à época, da mulher que sequestrou um bebê na maternidade e o criou como seu filho. Muitos anos depois, a farsa foi descoberta e o menino, já adolescente, teve de ir morar com sua família biológica enquanto a falsa mãe foi parar na cadeia. No filme, quem encarna esse garoto é Pierre (Naomi Nero), típico adolescente rebelde. Ele toca numa banda de rock, é aluno relapso, frequenta festas onde beija meninos e meninas; pinta as unhas e o contorno dos olhos, além de usar cinta-liga por baixo da calça.

É o retrato de uma nova geração de jovens que renegam rótulos sexuais, que estão experimentando novas maneiras de se relacionar com os de sua idade, de se descobrir na ânsia dos desejos, sem traumas e neuras, apenas curtindo a vida adoidado. É esse jovem que será engolido por um turbilhão de sentimentos quando descobre a verdade sobre sua origem. Mas Muylaert parece menos interessada em destrinchar os fatos e pormenores relativos ao fato e ao engano da mãe, e mais em apresentar um mundo em transformação quando a vida do rapaz já estava em movimento natural por conta da idade, dos percalços, descobertas e questionamentos da adolescência.

Narrativamente, o filme segue a estilística do cinema objetivo e direto que Muylaert vem articulando nos seus trabalhos, sem invencionices de linguagem. Funcionava muitíssimo bem em Que Horas Ela Volta? quando ela tinha em mãos questões sociais e comportamentais do brasileiro médio que reverberavam muito bem no público e amparava-se nas próprias mudanças visíveis de nosso cotidiano. Agora, diante de um dilema comportamental atravessado pela redefinição do lar e dos laços familiares, Mãe Só Há Uma ainda soa como um ensaio para algo mais consistente enquanto discussão sobre gêneros e pertencimentos, muito embora não precisemos cobrar do filme postura tão assertiva sobre essas questões.



Muylaert tenta complexificar seus personagens que lidam com suas novas angústias, sem que o filme nunca queira oferecer respostas para dramas tão complicados. Dessa forma, a cineasta demonstra mais liberdade para observar os atropelos na vida de seus personagens, abusando inclusive de elipses temporais que fazem saltar a narrativa para um tempo em que alguma coisa já mudou ou está em curso, mas inevitavelmente onde as relações já se encontram dilaceradas pelas circunstâncias.

Somos levados a abraçar os conflitos de Pierre, como figura central da trama, mas o filme também não deixa de dimensionar o comportamento dos novos pais, vividos por Matheus Nachtergaele e Daniela Nefussi (que, espertamente, também interpreta a mãe adotiva do garoto). Eles buscam maneiras de conquistar o filho que há tanto tempo buscavam. Há ainda o irmão mais novo, também com seus problemas amorosos de adolescente imberbe, pego de surpresa pela nova reconfiguração dentro de casa.

Os momentos em que esses personagens são postos em atrito são certamente os melhores do filme, quando eles patinam por terreno arenoso na medida em que são quase forçados a se encontrarem. O tempo passa e é como se eles fossem obrigados a encarar certas situações e posturas na busca incessante para que o outro o(s) aceite em sua real condição – de um lado Pierre como figura transgênera e filho de outra família, e no polo oposto os pais como agentes progenitores legítimos, mas também figuras amorosas. 

Há um momento catártico quando Pierre explode e devolve com verdades toda a pressão que vem sentindo para ser alguém que ele não é – enquadrado num gênero tradicional, filho de uma família estranha. Porém, os maiores acertos do filme estão na fluidez com que esses conflitos são postos na tela em detalhes mínimos, sem preocupação de elucidá-los ou encerrá-los – o que não é necessariamente um problema em si, como comprova a sutileza do arco narrativo do próprio Que Horas Ela Volta?. Mãe Só Há Uma é possivelmente o filme mais aberto da cineasta até então, fazendo pulsar já nos minutos finais um percurso que ainda é de inquietação e afirmação dos desejos mais pessoais, contra todos e um pouco junto deles.