domingo, 6 de maio de 2018

A Cidade do Futuro (2016)



Serra do Ramalho é uma cidade do interior baiano criado pelo regime militar para abrigar as famílias que foram realocadas de suas terras por conta da criação da barragem de Sobradinho, no norte do Estado. É ali que os jovens Milla, Gilmar e Igor vão formar uma família que curtocircuita certos protótipos instituídos socialmente. Há nessa proposição de A Cidade do Futuro duas dimensões políticas que se entrecruzam: a vida das famílias marcada pelo peculiar passado de formação da cidade; e a força afetiva que une o trio protagonista na criação de laços familiares inusitados. 

Há, portanto, uma política dos afetos a confrontar toda uma política social enraizada no interior do sertão. Mesmo com suas repreensões e modos de direcionar costumes e comportamentos, tais aspectos não impedem que novas configurações familiares floresçam como ordem natural das coisas. Faz muito sentido que seja exatamente num lugar como esse que o tipo de luta travada pelos personagens ganhe lugar, como modo de apontar uma ruptura impensável ali justo quando as circunstâncias são as mais adversas.

Gilmar e Milla são professores de uma escola secundária, grandes amigos. Ele mantém uma relação escondida com o jovem Igor enquanto ela troca carícias com uma menina, embora não esconda seu desejo por meninos também. Ao aparecer grávida, aparentemente de Gilmar, Milla oferece uma oportunidade para que os três sigam juntos um caminho de companheirismo e fortalecimento de um laço familiar incomum, não sem antes sofrem todo tipo de represálias conservadoras por parte dos moradores locais, as famílias de cada um inclusas.

É certo que tais caminhos surgem no filme sem grande planejamento. A própria consolidação desse formato de convivência será alinhada pelos personagens aos poucos, no decorrer da narrativa, não sem as dúvidas e incertezas, também em confronto com os valores locais de um lugar onde os preconceitos são sempre intensificados, enraizados, e com poucas possibilidades de diálogo entre as pessoas. Além disso, é muito interessante presenciar o manejo de uma realidade sertaneja isenta dos clichês que esse espaço geográfico costumeiramente recebe quando representado em tela (nem tudo é seca, pobreza e fome; tem balada, piscina e videogame no sertão baiano).


Como narrativa, A Cidade do Futuro é mesmo um tanto direto, mais elíptico do que lacunar, o que por vezes o torna inconstante. O enredo desenha um caminho que parece natural e coeso no percurso dos personagens, esse já tortuoso por si só por conta das escolhas que fazem. Mesmo assim, o filme não se priva de certos atropelos, como a inclusão das entrevistas com pessoas que relatam a experiência de expulsão de Sobradinho, sendo o tom documental já tão presente durante toda a projeção, reiterando uma experiência histórica já dimensionada antes.

Entre um arco dramático bem desenhado e a necessidade de não parecer nunca calculado, A Cidade do Futuro talvez careça de maior força da surpresa, da pulsão pelas consequências que as atitudes dos personagens provocam, ou mesmo na vitalidade jovial que existe em Depois da Chuva, sendo este novo filme tão combativo enquanto proposta que exige postura afirmativa. É como se o filme estivesse sempre pronto para arriscar, mas se detivesse a todo instante.

Há no jogo de encenação de Cláudio e Marília uma concepção muito clara e segura de tempo narrativo. O timming das cenas nunca é apressado e existe mesmo uma atenção que a câmera detém nos atores antes ou depois de uma fala ou ação. É como se o filme perseguisse um sentimento interior dos personagens ao captá-los nesses momentos de introspecção, na iminência da ação. Apesar disso, falta aos atores responder melhor a essa abordagem, a esse namoro com a câmera, o que acaba emperrando também o ritmo do filme.

Há algo como um entrave ali, uma barreira que não impede o filme de manter uma coesão estética, mas não o permite se entregar mais. Isso encontra eco nas atuações um tanto travadas do elenco, algo que os diretores moldaram tão bem no já citado longa anterior. Talvez o fato dos atores refletirem na tela sua própria trajetória de vida, ao mesmo tempo em que formatam uma ficção, tenha inibido uma entrega maior, como que criando um espaço intermediário de representação entre o naturalismo e o amadorismo. Na tentativa de encontrar seu lugar de afirmação, A Cidade do Futuro concentra-se no rompimento social, sem que venha acompanhado de um salto formal.


A Cidade do Futuro (Idem, Brasil, 2016) 
Direção: Cláudio Marques e Marília Hughes
Roteiro: Cláudio Marques