Serra
do Ramalho é uma cidade do interior baiano criado pelo regime militar para
abrigar as famílias que foram realocadas de suas terras por conta da criação da
barragem de Sobradinho, no norte do Estado. É ali que os jovens Milla, Gilmar e
Igor vão formar uma família que curtocircuita certos protótipos instituídos
socialmente. Há nessa proposição de A Cidade do Futuro duas
dimensões políticas que se entrecruzam: a vida das famílias marcada pelo
peculiar passado de formação da cidade; e a força afetiva que une o trio
protagonista na criação de laços familiares inusitados.
Há,
portanto, uma política dos afetos a confrontar toda uma política social enraizada
no interior do sertão. Mesmo com suas repreensões e modos de direcionar
costumes e comportamentos, tais aspectos não impedem que novas configurações familiares floresçam como ordem natural das coisas. Faz muito sentido que seja exatamente num lugar como esse que o tipo de luta travada pelos personagens ganhe
lugar, como modo de apontar uma ruptura impensável ali justo quando as circunstâncias são as mais adversas.
Gilmar
e Milla são professores de uma escola secundária, grandes amigos. Ele mantém
uma relação escondida com o jovem Igor enquanto ela troca carícias com uma
menina, embora não esconda seu desejo por meninos também. Ao aparecer grávida,
aparentemente de Gilmar, Milla oferece uma oportunidade para que os três sigam
juntos um caminho de companheirismo e fortalecimento de um laço familiar
incomum, não sem antes sofrem todo tipo de represálias conservadoras por parte
dos moradores locais, as famílias de cada um inclusas.
É
certo que tais caminhos surgem no filme sem grande planejamento. A própria
consolidação desse formato de convivência será alinhada pelos personagens aos
poucos, no decorrer da narrativa, não sem as dúvidas e incertezas, também em
confronto com os valores locais de um lugar onde os preconceitos são sempre
intensificados, enraizados, e com poucas possibilidades de diálogo entre as
pessoas. Além disso, é muito interessante presenciar o manejo de uma
realidade sertaneja isenta dos clichês que esse espaço geográfico costumeiramente
recebe quando representado em tela (nem tudo é seca, pobreza e fome; tem balada, piscina e videogame no
sertão baiano).
Como
narrativa, A Cidade do Futuro é mesmo um tanto direto, mais
elíptico do que lacunar, o que por vezes o torna inconstante. O enredo desenha
um caminho que parece natural e coeso no percurso dos personagens, esse já
tortuoso por si só por conta das escolhas que fazem. Mesmo assim, o filme não
se priva de certos atropelos, como a inclusão das entrevistas com pessoas que
relatam a experiência de expulsão de Sobradinho, sendo o tom documental já tão
presente durante toda a projeção, reiterando uma experiência histórica já
dimensionada antes.
Entre
um arco dramático bem desenhado e a necessidade de não parecer nunca
calculado, A Cidade do Futuro talvez careça de maior força da
surpresa, da pulsão pelas consequências que as atitudes dos personagens
provocam, ou mesmo na vitalidade jovial que existe em Depois da Chuva,
sendo este novo filme tão combativo enquanto proposta que exige postura
afirmativa. É como se o filme estivesse sempre pronto para arriscar, mas se
detivesse a todo instante.
Há
no jogo de encenação de Cláudio e Marília uma concepção muito clara e segura de
tempo narrativo. O timming das cenas nunca é apressado e existe mesmo uma
atenção que a câmera detém nos atores antes ou depois de uma fala ou ação. É como
se o filme perseguisse um sentimento interior dos personagens ao captá-los
nesses momentos de introspecção, na iminência da ação. Apesar disso, falta aos
atores responder melhor a essa abordagem, a esse namoro com a câmera, o que acaba
emperrando também o ritmo do filme.
Há
algo como um entrave ali, uma barreira que não impede o filme de manter uma
coesão estética, mas não o permite se entregar mais. Isso encontra eco nas
atuações um tanto travadas do elenco, algo que os diretores moldaram tão bem no
já citado longa anterior. Talvez o fato dos atores refletirem na tela sua
própria trajetória de vida, ao mesmo tempo em que formatam uma ficção, tenha inibido
uma entrega maior, como que criando um espaço intermediário de representação entre
o naturalismo e o amadorismo. Na tentativa de encontrar seu lugar de
afirmação, A Cidade do Futuro concentra-se no rompimento
social, sem que venha acompanhado de um salto formal.
A Cidade do
Futuro
(Idem, Brasil, 2016)
Direção:
Cláudio Marques e Marília Hughes
Roteiro:
Cláudio Marques
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