sexta-feira, 24 de junho de 2016

Cine Ceará – Parte I


Avó (Amama, Espanha, 2015)
Dir: Asier Altuna

Assim como no ano passado, o Cine Ceará exibiu Floreak, filme do país basco, região e cultura pouco conhecida, tanto eclipsada pelo poderio de atração espanhol. Esse ano foi a vez do longa Avó aportar na mostra competitiva, mais um drama familiar, assim como o filme anterior, com destaque para a tradição e as raízes de uma família rural basca.

Todo falado em língua eusquera, o filme nos apresenta uma família que vive num caserío, espécie de grande propriedade rural muito comum na região basca. Há o pai rígido e durão, mantenedor das tradições, em especial na dedicação total à terra, plantio de alimentos e criação de rebanhos, como forma de economia de subsistência. No outro polo, uma das filhas (Iraia Elias) é quem vai questionar o estilo de vida tradicionalista da família, batendo de frente com o pai rude.

O filme é muito rico em simbolismos e remete a um estudo de personalidades marcadas pelo uso de cores fortes. A avó é uma personagem que não diz uma única palavra durante o filme, mas possui uma presença de cena marcante, espécie de entidade ligada à tradição que observa atenta o embate de gerações. Ela tem dons artísticos e, logo no início do filme, aparece pintando três árvores da propriedade de cores diferentes, o que remeteria à personalidade de cada um dos três herdeiros – há ainda outros dois, homens que lidam melhor com as ordens do pai e da tradição.

A árvore e, por conseqüência, a madeira, assim como as cores, são signos constantes a marcar os passos dos personagens, o que acaba tornando o longa muito prescritivo. É como se já estivesse posto, a preceder os personagens, uma espécie de personalidade programada que os faz responder a certos estímulos já previamente codificados, e não como algo que emane deles com naturalidade e verdade. O filme também abusa de certa estética artsy, querendo impressionar a todo instante pela beleza estética das coisas – certo velório, por exemplo, é filmado quase como uma instalação-blasé, que ganha plasticidade, mas perde na emoção.

O filme também apresenta um contraponto com o país basco cosmopolita e moderno, mais uma vez reforçado pela figura da filha que não quer terminar seus dias arando a terra do caserío. Todo o conflito da família passa por essa questão, e o filme quase cai na armadilha de filmar o esfarelamento da família a partir do drama gritado, das brigas ininterruptas que só servem para disparar espinhos entre os familiares.

Avó sai-se melhor quando consegue apresentar uma curva dramática que faz aquelas pessoas se reconhecerem como pertencente a um mesmo núcleo fortemente ligado por laços sanguíneos, apesar de acentuarem e nunca deixarem de lado suas concepções de vida e desavenças. É quando o filme ganha mais em complexidade, e os dramas dos personagens ganham mais força que os meros simbolismos.


Epitáfio (Epitafio, México, 2015) 
Dir: Yulene Olaizola e Rubén Imaz

Pode-se dizer que Epitáfio é como um épico silencioso. O filme remonta ao início do século XVI quando os primeiros conquistadores espanhóis chegaram e desbravaram a região onde hoje se encontra o México. Diego de Ordaz, um dos conquistadores da região, figura real, porém pouco conhecida e menos reverenciada dentre os “heróis” que marcaram seu nome na História de conquista do Novo Mundo, é esse personagem que o filme observa a desbravar o lugar.

Junto com um pequeno grupo explorador, desejam chegar ao topo do vulcão Popocatéptl. Pode espantar que essa paisagem, naquela circunstância, é tomada por um inverno rigoroso, com direito a espessa camada de neve no chão, nevoeiros e frio cortante. Epitáfio apresenta um tour de força para seus personagens, provação que exige grande esforço físico e mental.

Logo de início, o filme já deslumbra o espectador por uma concepção visual muito apurada, fotografia que em nada lembra as cores quentes da geografia mexicana mais exótica. O contraponto da bela paisagem natural com os perigos mortais que ela também oferece está impresso desde as primeiras cenas.

O embate do homem com a natureza inóspita não é algo novo aqui, e o filme tem certa dificuldade para conferir interesse na jornada desses homens para além disso, a despeito de todo o conhecimento posterior que temos da exploração colonizadora europeia e suas devastadoras consequências para os povos nativos. 

Epitáfio busca mesmo na jornada particular daquele grupo, partindo quase de uma introspecção e desejos individuais de vitória, o estado de ganância e a obsessão por conquistar novas terras no território desconhecido. Pena que poucas vezes o filme consiga encontrar mais nuances na formatação desses personagens e nos eventuais conflitos que surgem entre eles. Resta então dar voltas em torno das mesmas questões e abusar do tom de cansaço e estafo constante.

terça-feira, 21 de junho de 2016

26º Cine Ceará – Festival Internacional de Cinema Ibero-Americano


Começou na semana passada a 26ª edição do Cine Ceará. Essa é a segunda vez consecutiva que faço cobertura do evento, que tem recorte ibero-americano. A competição reúne filmes brasileiros junto com latinos e ibéricos, apostando na integração.

O cinema mexicano é celebrado com mostra panorâmica de filmes contemporâneos, assim como exibição de O Anjo Exterminador, clássico absoluto de Luis Buñuel.

A cobertura começa no Jornal A Tarde e segue aqui no blog mais detidamente sobre os filmes da mostra principal. O site oficial do evento pode ser acessado aqui. Aos filmes.

Olhar de Cinema – Ranking geral


Minha primeira aventura no Olhar de Cinema, em Curitiba, para além do frio cortante que faz nessa cidade, foi de descoberta de um festival que não tem medo de apostar no novo e de arriscar na sua seleção, o que nos faz investir também na descoberta dos filmes. Há perigos nesse tipo de proposta, como revelou a mostra competitiva, um tanto aquém do esperado. Compensaram a série de filmes clássicos exibidos no festival, um primor de escolha e projeção, também apostando na descoberta e nos clássicos absolutos. Abaixo listo todos os filmes vistos aqui em ordem de preferência.



Entre Cercas (Avi Mograbi, Israel/França, 2016) ***½
O Artista da Fome (Masao Adashi, Japão/Coreia do Sul, 2016) ***½
Operação Avalanche (Matt Johnson, EUA, 2016) ***½
A Última Terra (Pablo Lamar, Paraguai/Holanda/Chile/Catar, 2016) ***
Os Pássaros Estão Distraídos (Diogo Oliveira e João Vieira Torres, Brasil, 2016) ***
Ama-San (Cláudia Varejão, Portugal/Japão/Suíça, 2016) ***
O Estranho Caso de Ezequiel (Guto Parente, Brasil, 2016) ***
A Cidade do Futuro (Cláudio Marques e Marília Hughes, Brasil, 2016) ***
Zud (Marta Minorowicz, Polônia/Alemanha, 2016) ***
Maestá, A Paixão de Cristo (Andy Guérif, França, 2015) **½
A Comunidade (Thomas Vinterberg, Dinamarca/Suécia/Holanda, 2016) **
O Vento Sabe que Volto à Casa (José Luis Torres Leiva, Chile, 2016) **
Eles Vieram e Roubaram Sua Alma (Daniel de Bem, Brasil, 2016) **


Hors-Concurs:


Como Era Verde Meu Vale (John Ford, EUA, 1941) *****
O Caso dos Irmãos Naves (Luis Sérgio Person, Brasil, 1967) *****
O Manuscrito de Saragoça (Wojciech Jerzy Has, Polônia, 1965) ****½
Ninotchka (Ernst Lubitsch, EUA, 1939) ****½
Compasso de Espera (Antunes Filho, Brasil, 1973) ****½
Mouchette – A Virgem Possuída (Robert Bresson, França, 1967) ****

Olhar de Cinema – Parte VI



A Última Terra (La Última Tierra, Paraguai/Holanda/Chile/Catar, 2016) 
Dir: Pablo Lamar


Proposta das mais intensas calcadas na contemplação, A Última Terra nutre-se do esforço que os personagens empreendem por um fio mínimo de história. Um casal de idosos vive numa humilde casa no meio do nada, cercados de florestas e montanhas, a sós no mundo. Ela está morrendo, e ele cuida para que seus últimos dias sejam acalentadores, na medida do possível.

O diretor Pablo Lamar constrói uma narrativa de tempo suspenso, quando o próprio tempo é personagem central ao acentuar sua passagem cândida, mas avassaladora sobre os homens. O tema do tempo que a tudo consome já foi muito explorado antes, e o filme apenas acentua sua força perante a impossibilidade humana de alterá-lo e vencê-lo.

Em certo sentido não há nada de muito novo nesse tipo de história, para além de acentuar o momento crucial da vida daquela senhora: a saída do mundo dos vivos. É a rigidez da encenação que garante a A Última Terra a força de uma experiência de introspecção e de certa transcendentalidade naquele último momento, acentuado pela imponência da natureza soberana a cercar aqueles dois, também a lembrar que morte é a ordem natural das coisas; e, talvez por isso, a situação seja tomada de beleza também.

Trata-se mesmo de um filme irmão do conterrâneo Hamaca Paraguaia, tanto temática como esteticamente. Por muito pouco, Lamar não mira na comiseração ao retratar a dor da perda e o pesar pela falibilidade da vida, pela proximidade da ausência, traços que lemos no rosto expressivo do ator Ramón del Rio. Há muita dignidade nesse tipo de retrato, sem pieguismos baratos, apesar da percepção de que há toda uma exasperação e sofrimento contidos ali naquele homem.

A brasileira Vera Valdez é quem interpreta a esposa inválida. Atriz teatral que acompanha a explosiva trupe de José Celso Martinez Correia, do Teatro Oficina, surge aqui em outra chave, totalmente mais contida, doando todo seu corpo frágil a aguardar a morte. É a mesma serenidade que o filme pega emprestado como um todo. Não há espaços para catarse, que só se expressa num momento final envolvendo uma grande fogueira. É como se só a natureza pudesse ser capaz de gritar a dor, sendo ela mesma quem acalma e acolhe aqueles que partem e os que ficam.


A Comunidade (Kollektivet, Dinamarca/Suécia/Holanda, 2016) 
Dir: Thomas Vinterberg


Filme que encerrou os trabalhos no Olhar Cinema, A Comunidade é como que uma investida do cineasta dinamarquês na percepção de uma possível convivência coletiva, microcosmo de uma tendência política que vigorou em certas partes do mundo no pós-Guerra e ameaçou o modo de vida capitalista.

Estamos na Dinamarca relativamente rebelde dos anos 1970 quando um casal se muda para uma nova casa, espaçosa e cara. Em pouco tempo eles se vêm cercados de outras pessoas “alocadas” ali como forma de diminuir as despesas, mas logo se vêm vivendo como em uma comunidade de amigos em que as decisões são tomadas em conjunto; há assembleias e tudo se decide através do voto.

Se o diretor formata esse espaço de convívio incomum logo no início do filme e rapidamente apresenta os personagens que formarão essa grande família de tendências hippies, ainda que um tanto conservadoras, o próximo passo é desviar a atenção para a crise conjugal que acomete o casal protagonista. Anna (Trine Dyrholm) é uma jornalista que aceita bem esse novo estilo de vida, enquanto seu marido Erik (Ulrich Thomsen) parece um tanto reticente quanto a isso. Professor universitário, ele se envolve com uma aluna bem mais nova que ele.

O casamento abala-se; a filha do casal é quem mais sofre com esse desentendimento, sendo a que observa tudo calada, temendo o fim da relação. E a coisa se complica mais quando decidem trazer a moça para fazer parte daquela comunidade, é esse o espírito de acolhimento. Com as cartas postas à mesa, a ideia de coletivo também é sacudida porque os interesses se confrontam cada vez mais.

Seria o caso do filme complexificar as relações com a entrada dessa nova personagem ali, e também colocar em xeque o próprio ideário de convivência compartilhada intimamente por todos. Porém, através desse movimento de centrar a atenção no drama conjugal, Vinterberg não só desperdiça uma série de personagens interessantes que povoam aquele ambiente, como também passa a investir no dramalhão mais gritado que envolvem as brigas e desentendimentos do casal.

É realmente muito desanimador como o filme utiliza a história de uma comunidade que prega o bem comum e propõe um tipo de convívio igualitário e respeitoso a fim de reprocessar velhas proposições conservadoras e mesmo machistas, afinal é a esposa – a mulher mais velha, portanto – quem mais vai sofrer as consequências, mentais e emocionais, nessa história toda. 

Não adianta que Vinterberg inclua lá no início do filme uma cena em que todos eles vão tomar banho em um lago totalmente pelados, filmados com muita liberdade. É o tipo de cena que grita “olha como somos modernos e corajosos”, quase como uma desculpa pelo que virá depois. Não parece, de fato, que A Comunidade queira pregar e defender o socialismo e os modos de vida coletivos com afinco, mas se utiliza de seus pressupostos para retroceder.

domingo, 19 de junho de 2016

Olhar de Cinema – Parte V


A Cidade do Futuro (Idem, Brasil, 2016)
Dir: Cláudio Marques e Marília Hughes


Serra do Ramalho é uma cidade do interior baiano criado pelo militares para abrigar as famílias que foram realocadas de sua terra por conta da criação da barragem de Sobradinho. É ali que Milla, Gilmar e Igor vão formar uma família que curto-circuita certos protótipos instituídos socialmente. Há nessa proposição de A Cidade do Futuro duas dimensões políticas que se entrecruzam: a vida das pessoas marcada pelo peculiar passado de formação da cidade; e a força afetiva que une os personagens na criação de laços mais fortes de convivência.

Há, portanto, uma política dos afetos a confrontar toda uma política social enraizada no interior do sertão, que mesmo com suas repreensões e modos de direcionar costumes e comportamentos não impedem que essas novas configurações floresçam através de uma ordem natural das coisas. Faz muito sentido que seja exatamente em Serra do Ramalho que esse tipo de luta travada pelos personagens ganhe lugar, não como modo de afirmação pré-concebida, mas como forma de acatar a força do desejo dos personagens.

Gilmar e Milla são professores de uma escola secundária, grandes amigos. Ele mantém uma relação escondida com o jovem Igor enquanto ela troca carícias com uma menina, embora não esconda seu desejo por meninos também. Ao aparecer grávida, aparentemente de Gilmar, Milla oferece uma oportunidade para que os três sigam juntos um caminho de companheirismo e fortalecimento de um laço familiar incomum.

É certo que esses caminhos surgem no filme sem grande planejamento, e mesmo a consolidação desse formato de convivência será alinhado e abraçado pelos personagens aos poucos no decorrer da narrativa, não sem suas dúvidas e incertezas, também em confronto com os que o cercam naquele lugar onde os preconceitos são sempre intensificados, enraizados.

Como narrativa, A Cidade do Futuro é mesmo um tanto direto, mais elíptico do que lacunar, o que por vezes o torna inconstante. O enredo desenha um caminho que parece natural e coeso no percurso dos personagens, esse já tortuoso por si só pelas escolhas que eles fazem em face do enfrentamento de códigos tão conservadores. Mesmo assim, o filme não se priva de certos atropelos, como a inclusão das entrevistas com pessoas que relatam a experiência de expulsão de Sobradinho, sendo o tom documental já tão presente durante toda a projeção.

Entre um arco dramático bem desenhado e a necessidade de não parecer nunca calculado, A Cidade do Futuro talvez careça de maior força da surpresa, da pulsão pelas consequências que as atitudes dos personagens provocam, ou mesmo na vitalidade jovial que existe em Depois da Chuva, sendo este novo filme tão combativo enquanto proposta que exige postura afirmativa. É como se o filme estivesse sempre pronto para arriscar, mas se detivesse a todo instante.

Há algo como um entrave ali, uma barreira, que não impede o filme de manter uma coesão estética, mas que não o permite se arriscar mais. E isso encontra eco nas atuações um tanto travadas do elenco, na maneira como os atores buscam refletir na tela sua própria trajetória de vida, ao mesmo tempo em que formatam uma ficção, portanto um espaço como que intermediário de representação, entre o naturalismo e o amadorismo. Na tentativa de encontrar seu lugar de afirmação, A Cidade do Futuro concentra-se no rompimento social, sem que venha acompanhado de um salto formal.


Eles Vieram e Roubaram Sua Alma (Idem, Brasil, 2016) 
Dir: Daniel de Bem


A ideia de um cineasta como coletor de imagens não é necessariamente nova – é possível lembrar de um filme como Os Catadores e Eu, de Agnès Varda, para citar um exemplo que vem de imediato à mente. Para o cineasta gaúcho Daniel de Bem, em seu primeiro longa-metragem, essa proposição vira não só pesquisa de linguagem como também matéria-prima de seu primeiro filme, como que uma autoficção.

Há ali um jovem com sonhos de ser cineasta experimentando com a câmera e buscando captar o máximo de imagens, aleatórias ou não, da vida de pessoas próximas, sem grandes objetivos ou razões estudadas. Essa é a própria proposta a que se arvora Daniel de Bem nesse filme, assim como as imagens que ele(s) produz(em) fazem parte também da tessitura do filme.

São essas camadas que se interligam e interagem em Eles Vieram e Roubaram Sua Alma, e são mesmo muito instigantes enquanto força da pulsão não da imagem em si – que às vezes é mesmo esvaziada, pouco significativa, talvez por sua aleatoriedade, por sua fragmentação ou desimportância mesmo –, mas principalmente pelo gesto de captá-las, encontrá-las e persegui-las, o que significa também perseguir as pessoas que podem lhas oferecer. 

O filme é muito curioso enquanto dobra narrativa e metalinguística, porém peca muito em não se sustentar enquanto interesse humano. Nesse sentido, é um filme frio, ainda que nada calculado. É difícil embarcar quando o próprio processo de construção narrativa não mira com clareza em algo concreto. É tão fácil se encantar por certas imagens e personagens que cruzam aquele caminho tanto quanto é desejável que eles sejam mais um possível foco de interesse que pode se concretizar ou não.

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Olhar de Cinema – Parte IV


Zud (Idem, Polônia/Alemanha, 2016)
Dir: Marta Minorowicz

Há muito filmes nessa edição do Olhar de Cinema que preparam bem todo um terreno, uma proposta de encenação, mas não conseguem deslanchar com isso, apesar de não fazerem feio. Zud é esse filme médio que se parece muito com outros já vistos por aí sobre personagens em regiões inóspitas, mas dificilmente encontram vida própria para além do movimento em torno das mesmas questões.

A diretora polonesa Marta Minorowicz vai buscar nas estepes da Mongólia a história de Sukhbat, garoto de 11 anos que vive com o pai. A vida é humilde, a sobrevivência é dura e eles cuidam de cavalos. O menino vai participar de uma corrida regional e precisa aprender a domar o cavalo mais bravio do lugar.

Estão lá, sem muita surpresa, elementos já muito associados a esse tipo de história: a vida selvagem sendo domada ou assumida, a natureza soberana que dita os movimentos dos homens, a câmera trêmula documental que observa o cotidiano, a sensação de uma comunhão bem inscrita com aquela paisagem e os personagens.

Se existe uma tentativa de fugir de um suposto olhar exótico, Zud se sai bem, assim como evita a comiseração diante de uma realidade crua, ainda que aos personagens é dado muito mais afeto e dignidade do que problemas, conflitos e pesos que os levariam a limites ou escolhas difíceis – e isso pode apontar para um olhar diferencial da cineasta perante esse tipo de narrativa.

Em certo sentido a carga dramática vem da própria relação com um mundo já posto e reprocessado diante deles, mesmo para o garoto, e no qual ele encontra um espaço de crescimento e formação, sem que o filme seja necessariamente uma história de coming of age.


O Artista da Fome (Danjiki Geinin, Japão/Coreia do Sul, 2016) 
Dir: Masao Adashi


Ao contrário de Zud e de vários filmes vistos aqui no festival, O Artista da Fome é um dos poucos que investem numa energia e pulsão que explodem na tela de forma a causar estranheza e pesar, tanto afasta quanto nos ressignifica a história que desenha: um jovem homem resolve sentar na sarjeta e fazer greve de fome, sem motivo aparente, sem intenções escusas.

As reações são as mais variadas, de adesão e repulsa, por parte de quem passa por ali. A coisa ganha dimensões maiores quando um garoto publica a foto do “ato subversivo” e viraliza na internet. É o passo para a carnavalização da greve, o espetáculo midiático e o aflorar de sensibilidades. O próprio filme parece ser afetar por isso, enlouquecendo no melhor dos sentidos ao, de repente, mudar o tom da narrativa, indo da comédia escrachada e surreal, às vezes com toques de pornografia, e até mesmo apontando para os dramas existenciais de alguns personagens.

O filme tem clara inspiração na obra homônima de Kafka, mas inserido em um contexto social distinto. De longe e sem conhecimento profundo da cultura japonesa, certa bizarria que vemos no longa pode ser realocada aqui como algo inerente à propensão ao exagero do povo nipônico – o que me faz lembrar muito de um filme tão porra-louca como Glória ao Cineasta!, de Takeshi Kitano, que se permite tanta zoação. 

Não à toa o filme abre com imagens da recente catástrofe causada pelo acidente em Fukushima, e isso parece muito sintomático como representação de uma sociedade caótica e adoecida, tão marcada pelos traços da modernidade e da ultratecnologia. O protagonista, apesar de peça fundamental ali, acaba sendo o estopim para que uma série de personagens circulem ao seu redor, revelando os traços mais pitorescos e grotescos daquela gente; mais curioso do que tentar entendê-lo é observar como as pessoas comportam-se diante de tal situação. Apontando a predisposição para o bizarro, O Artista da Fome é um corpo estranho que não deixa de ser o retrato da idiotia de um país.

domingo, 12 de junho de 2016

Olhar de Cinema – Parte III



Os Pássaros Estão Distraídos (Idem, Brasil, 2016) 
Dir: Diogo Oliveira e João Vieira Torres


Em primeiro momento, Os Pássaros Estão Distraídos é mais um filme de observação do cotidiano. Há toda uma placidez na maneira como mostra o dia a dia pacato, sem muita turbulência, do solitário José Mauro, apesar das dores na barriga de um senhor de idade. O próprio letreiro que anuncia o título demora a aparecer na tela como se o filme tivesse se esquecido dele – e nós também –, tão absorto está naquela imersão de tempo tão particular.

Para “abalar” a rotina de José Mauro, ele está em processo de mudança para outro apartamento no prédio ao lado. As quinquilharias da casa precisarão ser realocadas em um espaço menor. Hilda é quem cuida dele como a um filho há muitos anos, o que revela um laço afetivo muito forte entre os dois. Uma terceira pessoa que entra na narrativa é o jovem filho de José Mauro, não por acaso um dos diretores do filme, que chega para ajudar na mudança. A dinâmica que surge entre eles é repleta de afetos, o que torna o filme muito familiar.

Confesso que o filme melhora para mim um tempo depois de tê-lo visto. A impressão de já ter assistido a algo assim, nesse mesmo tom e com narrativa semelhante, produzindo uma reflexão sobre a passagem do tempo, é forte, mas há dois elementos de encenação que passam a interessar e enriquecer mais a proposta: as conversas ao telefone que pontuam uma série de situações desse dia a dia e a maneira como a câmera parece estudar milimetricamente os espaços.

O filme trabalha muito a voz off dos personagens conversando ao telefone. É através desses diálogos que conhecemos as relações entre eles e identificamos ali um pouco da personalidade de cada um, na maneira de tratar o outro, na inflexão da voz. É uma maneira curiosa e eficiente de apresentar e desenvolver personagens, dispositivo tão espontâneo quanto sincero, além de reforçar o lado afetivo que geralmente exala naturalmente desse tipo de interação.

Junto a isso, a câmera dos diretores não está interessada em captar necessariamente as expressões das pessoas, embora eventualmente faça isso, nem em acompanhar fielmente as conversas ao telefone – algumas são claramente incluídas na pós-produção de som. A câmera se comporta como se vasculhasse aquele ambiente onde, por acaso, aquelas pessoas habitam, sendo agora um lugar provisório, pois a mudança já se insinua.

Para o espectador pode parecer simples essa troca de residências, ainda mais para outro lugar tão perto. Mas é justo o trabalho de câmera que faz refletir a forma como nos afeiçoamos aos espaços, ainda que eles sempre pareçam ainda um tanto misteriosos mesmo depois de tempos. O processo de deslocamento exige uma mexida na memória, enquanto o tempo passa e exige que nos habituemos a novos ambientes e recordações.


Maestà, A Paixão de Cristo (Maestà, la Passion du Christ, França, 2015)
Dir: Andy Guérif


Se a Paixão de Cristo já foi tantas vezes filmada no cinema, também alegorizada em tantas outras narrativas com personagens que passam pelo processo de via crucis, esse curioso filme francês é mais uma dessas representações com forte apelo das artes plásticas. O filme reproduz os painéis que o artista sienense Duccio di Buoninsegna fez, no início do século XIV, sobre a Paixão de Cristo.

Vindo o diretor das artes plásticas não é difícil entender o interesse por uma proposta mais inusitada e arrojada. Estilizado ao extremo – os figurinos têm cores fortes, assim como o cenário e os elementos de cena são todos muito vistosos –, o filme é capaz de captar nossa atenção facilmente desde o primeiro frame.

Maestà compõe um painel em que os episódios da Paixão são representados num quadro maior que daria conta de toda a velha narrativa sobre os últimos dias de Cristo e sua elevação aos céus, cada uma em painéis diferentes, não necessariamente organizados cronologicamente. Os personagens saem de um quadro e reaparecem em outro distante, e geralmente há movimentação de pessoas em quadros distintos ao mesmo tempo.

O filme claramente propõe um exercício de olhar e escuta, na medida em que cada espectador escolhe para onde ver, quais detalhes apreciar, onde dedicar sua atenção – quase como acontece no teatro –, compondo assim cada qual sua própria maneira de se apropriar de uma narrativa já conhecida. No cinema, Jacques Tati é quem melhor já nos proporcionou modos de acompanhar ações diversas num mesmo quadro com esse mesmo princípio de observância – numa obra-prima como Playtime – Tempo de Diversão, por exemplo. 

É bonito e deslumbrante como experiência estética, rico como percepção pictórica e também de mise-en-scène, mas Maestà passa como mero experimento de encenação que parece agradável enquanto dura, mas só.

sábado, 11 de junho de 2016

Olhar de Cinema – Parte II



Entre Cercas (Bein Gderot, Israel/França, 2016) 
Dir: Avi Mograbi

O cinema do documentarista israelense Avi Mograbi é conhecido pela forma como expõe cruamente o enfrentamento direto que dá o tom dos conflitos políticos na região do Oriente Médio. Entre Cercas começa como esse tipo de filme: uma câmera invade ou se confunde com a massa em meio a uma situação de discussão tumultuada. São emigrantes africanos que buscam asilo político em Israel, mas são postos em um campo no meio do Deserto de Neguev enquanto esperam resposta oficial.

No entanto, Mograbi propõe aqui outro tipo de encenação documental cujo com foco recai sobre indivíduos e sua história pessoal diante desse cenário de asilo político em busca de acolhimento em terra estrangeira. Para isso, propõe a algumas dessas pessoas uma série de exercício teatrais baseados no Teatro do Oprimido – cujos parâmetros foram criados pelo brasileiro Augusto Boal.

Num galpão improvisado, o grupo de refugiados expõe seus conflitos internos em conseqüência dos conflitos políticos através da liberação da palavra, do corpo, mas principalmente pelo jogo de ter de encenar sua própria vivência, os problemas e questionamentos que eles enfrentam naquele momento tão delicado. Mais interessante ainda é quando eles precisam interpretar o outro lado, numa espécie de autocrítica, apesar de estarem em situação de vulnerabilidade.

É como um processo de terapia em grupo via teatro que nos faz entender melhor de onde aquelas pessoas vieram e o que buscam, sem que o filme precise lançar mão da forma mais tradicional de conhecer a história de luta que existe por trás de cada rosto. Essa também não deixa de ser um modo de enfrentamento consigo mesmo, com sua história e com os rumos da vida em meio a situação chave, prisioneiro entre fronteiras.


O Vento Sabe que Volto à Casa (El Viento Sabe que Vuelvo a Casa, Chile, 2016) 
Dir: José Luis Torres Leiva

No início da década de 1980, na ilha de Meulin, um jovem casal apaixonado fugiu para nunca mais serem encontrados. O relacionamento era desaprovado pelas famílias por serem de origens diferentes, uma delas de sangue indígena. Um diretor de cinema percorre as ilhas chilenas para saber mais da história e descobrir se alguém conhece essa lenda a fim de realizar um filme sobre isso.

Mas logo daremos conta que não passa de pretexto. Um bom pretexto para se chegar em outro lugar: conhecer gente e se inteirar de suas próprias narrativas pessoais. O filme apresenta grande interesse no material humano que encontra no caminho e por isso não deixa de pertencer à tradição do road movie. O casal desaparecido serve como mero ponto de partida que permite uma penetração nos rincões do Chile, seu povo humilde.

Por isso que o diretor do filme, José Luis Torres Leiva, convida um amigo, o também cineasta chileno Ignacio Agüero, para “interpretar” esse homem que percorre a ilha em busca de histórias. Há algo de ficcional nessa busca na medida em que Agüero tenta sustentar o interesse pelo lendário casal, mas procura sempre extrair mais das pessoas que ele encontra pelo caminho.

No entanto, apesar de trabalhar esse dispositivo engenhoso, que nunca chama muita atenção para si, Torres Neiva nem sempre consegue gerar tanto interesse por essas pessoas. São poucas as que realmente carregam uma força maior – a senhora que esquece os nomes dos filhos é a melhor dessas personagens. Agüero visita uma escola para “fazer casting” para seu filme, mas as conversas que se dão ali não saem do básico – infelizmente ele não é Coutinho. 

A comparação pode não ser justa pela capacidade descomunal e experiência que o mestre brasileiro tinha para extrair ricos depoimentos de seus entrevistados, e ele também não precisava de dispositivo algum para isso. Torres Neiva tenta, mas o filme acaba girando ao redor das mesmas perguntas, com as mesmas respostas e efeitos pouco marcantes.

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Olhar de Cinema – Parte I



Operação Avalanche (Operation Avalanche, EUA, 2016)
Dir: Matt Johnson
 

O tema da Guerra Fria e as especulações sobre as farsas e alfinetadas entre Estados Unidos e a então União Soviética já renderam filmes densos e provocativos, além de uma série de análises de especialistas. O diretor norte-americano Matt Johnson transforma essa polêmica em paródia política no espirituoso Operação Avalanche, filme que abriu com entusiasmo a programação do Olhar de Cinema, em Curitiba.

O longa é estruturado como falso documentário que acontece na segunda metade da década de 1960 quando se intensifica a corrida espacial, e as missões de ambas as potências pretendem chegar primeiro à lua. Acompanhamos um time de agentes da CIA que, disfarçados de uma equipe de cinema, pretendem encontrar um agente soviético infiltrado. Mas vão acabar embarcando na louca aventura de forjar as imagens da chegada do homem à lua.

Há um carisma inicial gerado por esse grupo um tanto atrapalhado, o que faz o filme se inclinar para um humor um tanto bobo, mas que funciona como proposta mesmo de formatar um tom descontraído. Há momentos deliciosos como quando eles visitam o set de filmagens de Kubrick em 2001 – Uma Odisseia no Espaço justo para copiar a maneira com que a equipe reproduz a superfície lunar: piscadela de olho para o famoso boato de que foi o grande cineasta norte-americano que filmou as “verdadeiras” cenas da conquista humana na lua, ludibriando o mundo.

O filme aposta muito na dinâmica entre essa equipe destrambelhada, em especial nas investidas e ideias improvisadas do “líder”, Matt Johnson, vivido pelo próprio diretor do filme que tem esse mesmo nome. Na verdade, todos da equipe interpretam, dentro do filme, as funções que eles assumem, de fato, por trás das câmeras, nessa farsa sobre a construção de uma farsa, dessa vez histórica, global – ou seria o cinema a maior farsa da história da humanidade?

Talvez justamente por essas camadas sobrepostas de encenação e falseamento, e pela própria história que decide contar, o filme possa ser lido como uma espécie de estatuto da imagem cinematográfica enquanto essa mentira a 24 quadros por segundo, falseamento natural que a imagem sempre será, caso não nos limitemos a enxergar o filme somente como pura comédia despretensiosa – o que não é nenhum mal a priori.

Por trás da chacota, o filme se formata através de um intricado jogo de imagens que não escondem o seu “amadorismo”, mas que também não deixa escapar nenhum detalhe importante para contar bem a história. Podemos enxergar no engano da imagem granulada a textura “real” que marca uma época, mas também o artifício que faz dela confiável perante os olhos do espectador atual que embarca nesse jogo perigoso e prazeroso de crer na fabulação das imagens. 

O trajeto que leva esses jovens à realização da proeza cinematográfica – e em certo sentido cinéfila – também está repleto de conspirações políticas, conchavos, segredos sobre os segredos, o que transforma o filme, na sua parte final, numa espécie de thriller de espionagem com um pouco mais de empolgação – uma dada sequência de perseguição de carro é magistralmente orquestrada e encenada. Operação Avalanche capricha nessa reprodução de época e da farsa, sem se deslumbrar com ela.

quinta-feira, 9 de junho de 2016

5º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba


Mais um debut meu num festival de cinema Brasil afora. Dessa vez aporto em Curitiba para o Olhar de Cinema, que chega em sua quinta edição já se firmando como um dos mais interessantes eventos de cinema do país.

Curadoria arrojada, sem medo do risco e da experimentação, recheada de filmes de encher os olhos, tanto os que fazem um panorama muito interessante da produção contemporânea – todos inéditos no Brasil – quanto a bela seleção de clássicos.

Como tem sido praxe, faço cobertura para o Jornal A Tarde, mas tentarei escrever o máximo possível sobre os filmes em separado aqui no blog. O site oficial do evento pode ser acessado aqui.

Que venham o frio e os filmes!