terça-feira, 25 de outubro de 2016

40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo


Estou de volta a São Paulo para matar a saudade da Mostra que eu tanto adoro já que ano passado eu não pude ir. É a festa da cinefilia, dos encontros inusitados com cinema de outras paragens, de todo lugar do mundo, de ver/rever alguns clássicos, se atualizar com o novo, amar e desamar os filmes.  

É certo que a seleção de deste ano poderia estar mais saborosa dos filmes mais badalados do momento, mas enfim, é hora de se jogar nos filmes e buscar as pepitas. De quebra, encontrar os velhos amigos que se reúnem para essa incrível festa em torno da experiência do cinema, espalhada pela cidade.

Como sempre, tentarei escrever sobre alguns filmes que for vendo – e este ano não serão mesmo muitos textos, a vida anda atribulada – além da cobertura para o Jornal A Tarde.

Então sigamos porque o jogo já começou.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

CachoeiraDoc – Parte VII


Jonas e o Circo sem Lona (Idem, Brasil, 2015)
Direção: Paula Gomes


Paula Gomes e equipe percorreram o Estado da Bahia pesquisando e mapeando os circos que se proliferam no interior. Num desses encontros, conheceram Jonas e sua paixão pelo espetáculo mambembe. Quando o garoto vai morar na zona metropolitana de Salvador, distancia-se do circo em que vivia e passa a construir, no quintal de casa, o seu próprio.

Jonas e o Circo sem Lona é o retrato dessa pulsão juvenil que faz parte mesmo do sangue do garoto – sua família tem longa tradição no circo. Ele se diverte ao dar forma a seu espetáculo, ao preparar os números e ensinar os amigos a fazê-los; gosta também de abrir as portas para as pessoas do bairro pobre onde mora e agradar o respeitável público. Mas Jonas está crescendo e outros desafios se impõem ao garoto: estudar, ser alguém na vida, almejar algo melhor. O filme encontra Jonas dividido entre o sonho e a vida concreta, dilema que lhe perturba, observado pelo olhar atento da câmera de Paula.

A diretora não se deixa deslumbrar pela simples vontade do garoto, ainda que reverencie o misto de inocência com seriedade com que ele leva adiante seu desejo. Filma não só as preparações no quintal, mas adentra a rotina da família, aproxima-se da mãe e avó do garoto, acompanha Jonas na escola. Aliás, a mãe é peça fundamental aqui porque é ela a responsável por acordar o jovem e chamá-lo para o mundo real. É ela quem mais lhe cobra uma postura realista e, consequentemente, adulta da vida.

Jonas e o Circo sem Lona sabe ser cru, árido, e mesmo duro, ao não se esquivar dos atritos que atravessam o caminho e as vontades de Jonas – há  uma cena particularmente forte e marcante que envolve o depoimento da professora do colégio, não só sobre os passos do garoto como sobre o próprio filme. Ao mesmo tempo, a obra consegue ser terna e sensível ao se interessar não pelo circo em si, mas pelo brilho no olhar de Jonas quando está imerso em seu mundo de fantasia e atrações.

Há uma proximidade afetuosa entre a diretora, Jonas e sua família que reflete a maneira como o próprio filme se posiciona diante das questões que se impõem ao garoto, fazendo de Paula também uma personagem ali. Mesmo que esteja sempre fora de quadro, ela fala e se dirige diretamente a todos em cena, sempre do modo mais carinhoso – a mãe de Jonas chama-a de “Paulinha”, por exemplo. Esse aspecto doce não deixa de esconder a posição da diretora em prol do menino – o que fica claro, por exemplo, na visita ao circo do tio de Jonas, lugar onde ele adoraria morar (e por ele se enamorar mais uma vez), algo como uma possível opção para ele –, embora Paula saiba entender e respeitar as forças contrárias que se processam no âmbito daquela família. Em alguns momentos, porém, as observações da diretora podem soar um tanto ensaiadas demais – assim como do filme não escapam momentos de maior encenação –, como se já previstas anteriormente, mas sempre abrigadas no campo do afeto.

É muito fácil falar de circo e apelar para um caminho romântico em que noções como os de “sonho”, “magia”, “imaginação” e “infância” surjam como protótipos intrínsecos a essa experiência e vivência, de quem faz o espetáculo e de quem o assiste, uma espécie de relação óbvia e incontornável. Pois Jonas e o Circo sem Lona beira essas questões, mas tem uma bússola moral que não desvirtua o filme em prol de um pieguismo simplista: o aspecto da vida real, esse que bate à porta e cobra do sujeito uma postura no mundo. O filme sabe que o verdadeiro espetáculo que não pode parar é o de crescer e amadurecer.

CachoeiraDoc – Parte VI


Sem Título #2: La Mer Larme (Idem, Brasil, 2015)
Direção: Carlos Adriano


Carlos Adriano continua sua investida por um cinema poético-biográfico enquanto faz alguns ensaios em forma de filme que parece dizer muito sobre ele em momento específico de vida – naquilo que ele próprio intitula de “apontamentos para uma AutoCineBiografia (em Regresso)”.

A série “Sem Título” já está na sua terceira investida, depois de um primeiro curtíssimo e inusitado ensaio, seguido de um terceiro mais verborrágico. São filmes muito particulares porque remetem a uma figura recorrente: um velhinho sorridente que aparece em flash nos filmes. Trata-se de Bernardo Vorobow, ex-companheiro de Carlos Adriano, falecido há pouco tempo. São filmes memoralísticos, mas nunca óbvios.

Aqui o mar é figura recorrente, mais a música “La Mer”, composição francesa de Charles Trénet. O cineasta reúne uma série de imagens antigas de mares, extraídos de filmes dos primórdios do cinema, e uma série de versões dessa mesma composição musical e as rearranja de modo muito fragmentado, inventivo. É como um videoclipe estendido de saudade e celebração, nunca de pesar e tristeza – como já não era em Sem Título #1.

Há uma proposta clara de reiteração e reapresentação desses pedaços de imagens e sons, picotados e resgatados no tempo, e que certamente devem fazer muito sentido para o diretor, porém que nem sempre encanta as plateias. O filme carrega na duração – são 31 minutos desse dispositivo narrativo em looping – que parece mesmo ter o objetivo de alcançar um paroxismo perigoso.

Feito por um cineasta cuja persona é muito curiosa e sempre muito próximo do experimental e da inquietação, Sem Título #2: La Mer Larme pode deixar de ser visto como um mero capricho para poder se encarado como mais uma forma de representação de saudade e celebração de uma vida que pulsou ali perto – e um dos ícones que se repetem no filme é um coração bombeando sangue, fruto de uma radiografia de Vorobow que morreu por complicações cardíacas. 

Há sentido nessas imagens, mesmo na sua aleatoriedade e insistência, assim como há uma emoção. No entanto esta corre o risco de se perder pela necessidade de reinvenção. O filme anterior da série, por exemplo, não passava de dez minutos e tinha a mesma leveza, lançando mão do mesmo arranjo cinematográfico – Fred Astaire e Ginger Rogers bailando ao som de um fado alegre. Na tentativa de não se repetir aqui, Carlos Adriano mais afasta do que aproxima.

CachoeiraDoc – Parte V


Orestes (Idem, Brasil, 2015)
Direção: Rodrigo Siqueira



Apesar de fazer parte de nossa história recente e sangrenta, a Ditadura Militar no Brasil ainda tem sido muito pouco discutida, revirada, entendida em seus pormenores pela sociedade de modo geral. No cinema, ela tem marcado uma presença ainda tímida porque insiste em ser registrada de modo engessado – seja na forma de revelar depoimentos dos envolvidos, seja na exposição gráfica da tortura, de modo que um filme como Noite Escura da Alma, por exemplo, é super necessário pela denúncia mesmo que faz em termos locais, como se na Bahia a coisa ainda estivesse sendo discutida em estágio inicial em termos de se dar a conhecer, tanto social como cinematograficamente mesmo.

Orestes é como um passo adiante na maneira como se utiliza a linguagem cinematográfica como potência para criar um emaranhado narrativo que dê conta da complexidade do assunto, sem cair em lugares-comuns, sem ser taxativa e resoluta, antes como gesto de inquietação e provocação, mas com um alcance enorme do que o tema pode nos provocar como discussão atual. Ainda mais porque, a partir dos regimes ditatoriais e das duras “leis” que o regiam, o filme versa também sobre conceitos mais amplos como os de “justiça” e “democracia”.

Orestes consegue fugir do lugar comum da mera denúncia e nem se esperava esse tipo de filme de quem fez um longa tão curiosamente intrincado como Terra Deu, Terra Come. Rodirgo Siqueira embaralha histórias e registros, ficções e ficcionalizações dessas ficções, nas bordas do documentário e da encenação.

A narrativa parte do mito grego de Orestes, peça em trilogia escrita por Ésquilo. Ali, o protagonista é julgado pela morte da mãe que teria assassinado antes o pai; julgado por um júri popular, Orestes é inocentado pelo voto de Minerva. Conta-se que esse episódio foi fundamental para a instituição da democracia na sociedade grega. De posse dessa história, Siqueira promove aqui um julgamento simulado de Orestes, como se vivesse nos dias atuais. Paralelamente, ele coloca em um mesmo espaço pessoas que tiveram parentes próximos vítimas de violência urbana – alguns favoráveis à pena de morte, outros não – e promove uma espécie de psicodrama para que eles lidem com seus fantasmas. 

Não é tarefa fácil amarrar essas pontas, mas o filme consegue mesmo atualizar a discussão sobre o estado atual de um país com leis frágeis e brechas para o exercício da crueldade e da injustiça social, associando a violência urbana a uma sequela que herdamos dos tempos de chumbo. Certamente é o tipo de filme que merece ser revisto com atenção para por em ordem as tantas questões e registros que Siqueira consegue amalgamar ali, mas que não deixa de revelar a sua força já na primeira visita a ele.

domingo, 16 de outubro de 2016

CachoeiraDoc – Parte IV


A Noite Escura da Alma (Idem, Brasil, 2015)
Dir: Henrique Dantas


Se o tema Ditadura Militar já foi vista em alguns filmes da safra recente brasileira, o retrato de uma Bahia nos tempos de regime é raramente mostrado em tela. Noite Escura da Alma tenta preencher essa lacuna com um retrato duro, mas necessário desse período da História baiana. Também propõe uma construção narrativa que envolve depoimentos documentais com performances experimentais. O resultado é uma experiência forte como panorama histórico, ainda que um tanto questionável como proposição estética.

O diretor já havia realizado outros trabalhos que envolviam os desmandos cruéis da Ditadura, mas de forma localizada. Obras como Ser Tão Cinzento e Sinais de Cinza – A Peleja de Olney Contra o Dragão da Maldade mostram como o governo ditatorial perseguiu o cineasta Olney São Paulo.

Agora, Dantas expande seu olhar para toda uma cena de militância e pelas ações cruéis do regime militar na Bahia. Entrevista uma série de pessoas que viveram aquele período e guardam memórias duríssimas do tempo de militância e das atrocidades que eram cometidas contra os presos políticos.

De pessoas conhecidas, como o sociólogo Juca Ferreira, até a cineasta Lúcia Murat, passando por um conjunto de pessoas de esferas diferentes da sociedade, o filme constrói um painel rico que dá conta de mapear certas atividades não só da militância baiana contra a Ditadura, mas da própria repressão do Estado.

Além da força dos depoimentos, muitos deles praticamente inéditos no cenário histórico, uma das estratégias do filme é lançar mão de performances subjetivas que simulam experiências abstratas como o silêncio, o medo ou o destemor. De formação como artista plástico, Dantas traz para o seu filme uma construção visual experimental quer tenta dar conta da dimensão emocional e psicológica daqueles episódios de violência e barbárie. Em algumas dessas cenas, esse tipo de dispositivo narrativo acaba por simplesmente comentar como imagem e som aquilo que está sendo dito, o eu torna a experiência redundante.

Todo filmado à noite, no Forte do Barbalho, lugar que funcionou como porão e cárcere dos presos políticos em Salvador, A Noite Escura da Alma assume desde o início a atmosfera sombria e pesada que o tema exige. É o tom ideal para contar uma faceta de uma história pouco contada, justo quando, nos tempos atuais de grande comoção política, ela precise sair das sombras.

sábado, 15 de outubro de 2016

CachoeiraDoc – Parte III


Aracati (Idem, Brasil, 2016)
Dir: Aline Portugal e Julia De Simone 
 


Aracati atravessa tema muito caro às questões de (des)ocupação de espaço e que já tem sido abordado em alguns filmes: cidades e/ou pequenas comunidades que desaparecem para dar lugar a grandes empreendimentos, como represas ou fábricas. É o progresso chegando, e com ele vêm os questionamentos de “para quem?” e “a custo de quê?”. Apesar de apontar para essas proposições sociopolíticas, Aracati busca o registro da melancolia poética para dar conta de uma paisagem bruscamente ressignificada.

Neste caso, estamos na região do interior do Ceará, o Vale do Jaguaribe. O filme busca perseguir a rota do vento Aracati, num movimento que sai do litoral e adentra o interior do Estado. Filmar o vento se torna aqui um curioso, além de corajoso, ponto de partida, espécie de abstração que, mesmo na tentativa de ser seguida à risca, ganha outros propósitos porque o vento não aparece sozinho na paisagem.

Trata-se, talvez, e no bom sentido, de uma bela desculpa para olhar uma região e algumas de suas implicações na relação com outros elementos - tecnológicos, humanos. O filme se esclarece todo por imagens – não há narração ou letreiros explicativos – e a imagem surge aqui como força não só estética, mas como modo de expressão que interpela a observação.

A entrega a esse tipo de registro faz ver, para além da beleza – mesmo que à natureza se misturem máquinas e engrenagens, inseridos ali pelo homem – o espaço em modificação, sem que o filme soe de algum modo denuncista. Ao contrário, é muito plácido e guia o espectador por um caminho de contemplação e descoberta, ainda que também de questionamentos.

Existe um formalismo que se apresenta no enquadramento rígido, no plano longo e na contemplação dos espaços. De início, pode distanciar e parecer frio demais, excessivamente preocupado com a forma, mas aos poucos o filme te ganha não só pelas belas cenas, mas pela compreensão do tipo de mudança brusca que aquele lugar sofreu.

Quando o elemento humano entra de modo mais concreto na narrativa – penso que ele sempre esteve ali, pelo menos atrás da câmera, mesmo que como sujeito que vem de fora – o filme cresce um pouco mais. Os homens da terra, antigos moradores das redondezas que já parecem deslocados naquele espaço tão pouco afeito à presença humana, são interpelados pela equipe de filmagem e acrescentam novos componentes ao filme: desde as questões sobre o que seria real ou não, os limites da ficção, a possibilidade do surreal e mesmo o repensar do lugar do Ceará no mapa do Brasil, tudo isso com muita graça. São momentos de rara beleza e espontaneidade que surpreendem pela complexidade com que se envolvem na narrativa. 

É como se essa presença natural do ser humano trouxesse consigo um componente fabular, pondo em questão a própria natureza realista daquele lugar – e todo aquele maquinário das fábricas e torres eólicas não seriam, justamente, marcas “de outro mundo”, alienígena? Dessa forma, Aracati torna-se uma bela experiência de despreendimentos e descobertas, ainda que sobre uma sensação de perda pelo o que aquele lugar se tornou.