sexta-feira, 30 de junho de 2017

CineOP – Parte III


No Intenso Agora (Idem, Brasil, 2017)
Dir: João Moreira Salles


De longe, No Intenso Agora, filme mais novo do cineasta João Moreira Salles, que encerrou esta 12ª Mostra de Cinema de Ouro Preto, trata-se de obra das mais politizadas a investigar o caráter e os meandros dos movimentos revolucionários em fins da década de 1960 em lugares distintos do mundo. Mas no fundo é também uma grande investigação sobre a natureza e estatuto da própria imagem documental. Com este filme, trabalha somente em cima de imagens de arquivo do período, ressignificando-as e buscando encontrar nelas modos de falar do hoje como sempre se dá nesses casos. O filme possui, portanto, uma dupla função: é ao mesmo tempo resgate histórico e também estudo metalingüístico.

Moreira Salles já havia feito algo parecido e talvez até mais potente em termos de reflexão sobre o documentário na sua obra-prima Santiago, lançada há dez anos. As memórias pessoais e ponderações íntimas também estão contidas em seu novo filme, tais como abundavam naquele, mas agora ele amplia seu escopo de alcance por tratar de questões que permeiam uma memória coletiva através de fatos marcante da história recente da humanidade, via condução memoralística.

Nessa investigação historico-pessoal sobre imagens feitas na segunda metade dos anos 1960 quando o mundo estava convulsionado por manifestações revolucionárias, o cineasta parte de imagens que sua própria mãe registrou em viagem à China quando Mao Tsé-Tung já havia implantado o regime comunista no país asiático. Dali passa para cenas das greves gerais do maio de 68 na França, pelas manifestações da Primavera de Praga, na então Tchecoslováquia, e também no Brasil quando se enfrentavam os desmandos e arbitrariedades da Ditadura Militar.

Através de depoimento em off, o cineasta cria, ele mesmo, uma série de reflexões e ideias sobre essas imagens e sobre o ideal revolucionário, num verdadeiro trabalho de arqueologia da imagens, misturado com percepções muito pessoais do que aqueles acontecimentos significam para ele e de como eles o entendem em seus respectivos contextos.

Longe de um tom professoral, como pode soar de início, o diretor é sempre mais sagaz quando investe na análise mais subjetiva das coisas. Em dois momentos isso fica mais flagrante e rico: a observação feita sobre o movimento do rapaz que joga uma pedra contra os policiais; e aquele em que arrisca comentários sociais sobre a maneira como se filma um bebê e sua babá. 

É bem plausível ler nas entrelinhas que um filme sobre as revoluções populares ocorridas há cerca de 50 anos atrás é também um modo de comentar, indiretamente, o Brasil de hoje, a onda de manifestações e agitações que tomaram conta do Brasil com mais intensidade desde 2013 até então. Esse tipo de camada e complexidade que o filme ganha com tal interpretação, que não está diretamente posta no filme, só torna No Intenso Agora um rico objeto de análise, tanto por aquilo que nos faz ver dessas imagens tão antigas, quanto das possibilidades de leitura que se abrem sobre elas, mas também sobre como elas são manipuladas e pensadas.

segunda-feira, 26 de junho de 2017

CineOP – Parte II



Rosemberg – Cinema, Colagem e Afetos (Idem, Brasil, 2017)
Dir: Cavi Borges e Christian Caselli


Há algo de desafiador na tarefa de realizar um documentário sobre um dos grandes nomes do cinema de invenção brasileiro contando com depoimentos do próprio documentado. Isso porque o cinema de Luiz Rosemberg Filho segue a mesma proposição de seus colegas de geração que desafiaram normas e códigos cinematográficos para fazer algo único, transgressor, estando ele à margem mesmo daqueles que faziam cinema como ele, mas tinham outra posição no campo do cinema brasileiro, como é o caso de Rogério Sganzerla.

Não parece haver lugar, portanto, para um documentário tradicional de entrevistas e registros puramente ilustrativos sobre algo que pulsa em outra modulação, e que pertence a um fluxo de pensamento muito pessoal do cineasta. Com isso, a dupla de diretores Cavi Borges e Christian Caselli encontra na noção de “cinema de colagem” – defendida pelo próprio cineasta em depoimento no início do filme – um conceito aplicável e faz de Rosemberg – Cinema, Colagem e Afetos também um processo de composição de imagens que se alinham para dar forma e sustentação ao pensamento de cinema e de vida apresentada pelo cineasta.

Os diretores contam com o depoimento em off de Rosemberg, falando sobre sua obra e trajetória, mas preenche a tela com um jogo de imagens que entrecorta e edita cenas icônicas de seus filmes com diversas outras imagens e intervenções. É uma maneira inteligente de dialogar com a proposta de cinema tão peculiar do diretor, sem ter a pretensão de fazer um mero filme de depoimentos. É certo que de início algumas dessas sobreposições soam um tanto infantis, como as animações misturadas às cenas, mas logo o filme afia o prumo e passa a dar mais atenção ao processo de costura dessas imagens.

As poucas imagens que o filme capta de Rosemberg o mostram em casa, muito tranquilamente – ou quando dirige suas atrizes no filme e peça Dois Casamentos. O que mais importa aqui são o pensamento e as reflexões do diretor que vai enumerando questões e as experiências com cada um dos seus filmes – e talvez ao seguir essa cronologia o filme esteja operando em um modo mais clássico e um tanto conservador de se fazer um documentário sobre um cineasta. 

Para ele, o cinema é uma “carta de amor ao outro”, como define mais ao fim da projeção. O fluxo de imagens que Rosemberg promove em seus filmes ganha vivacidade e irreverência muito bem traduzidas pelos dois diretores e coloca em questão o lugar tão pouco destacado de Rosemberg e da importância de seus filmes – e de (re)descobri-los – no panorama atual de revisão do cinema de invenção.

sexta-feira, 23 de junho de 2017

CineOP - Parte I


Desarquivando Alice Gonzaga (Idem, Brasil, 2016)
Dir: Betse de Paula


Desarquivando Alice Gonzaga, de Betse de Paula, parece o filme ideal para abrir a programação da CineOP, já que a protagonista que dá nome ao filme diz ter “mania de arquivo”. Ela é filha de Adhemar Gonzaga, diretor e empreendedor que fundou o primeiro estúdio e produtora de cinema do Brasil, a icônica Cinédia, em 1930.

Foi ali que surgiram os primeiros grandes sucessos do cinema brasileiro, como O Ébrio (1946), de Gilda de Abreu, protagonizado pelo cantor Vicente Celestino. Foi a Cinédia também que acolheu diretores fundamentais como Humberto Mauro, que ali faria Ganga Bruta (1933); e ainda houve a passagem de Mário Peixoto e seu mítico Limite (1931) – escolhido como o melhor filme brasileiro de todos os tempos segundo votação recente da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine).

Alice, desde criança, sempre foi encantada pelo mundo do cinema e se envolveu com o trabalho do pai na Cinédia. Ali se dedicou, em grande medida, a cuidar dos arquivos e de toda a memória do estúdio.

Desarquivando Alice Gonzaga acompanha a personagem enquanto ela apresenta o cuidadoso e rico arquivo com filmes, recortes de jornais e revistas, documentos, catalogações, enfim, todo tipo de material que faz parte da memória do estúdio e, consequentemente, do cinema brasileiro.

Existe certo amadorismo na construção narrativa do filme, na maneira mesmo como a diretora filma esse encontro. É uma sorte que a personagem seja tão espirituosa e falastrona, cheia de histórias e curiosidades para contar, também dona de opiniões seguras. O próprio ritmo do filme parece acompanhar a profusão de informação e ideias que Alice tem a oferecer, ainda que soe desarticulado muitas vezes. 

Mas o filme é um curioso retrato sobre a dificuldade da preservação da memória do cinema brasileiro, ainda mais se pensarmos que o trabalho de Alice é movido por uma paixão muito particular e de traços familiares. Está longe das instituições e do papel do próprio Estado em fazer esse trabalho, tão necessário a outros focos de produção na história do cinema nacional.