quinta-feira, 31 de agosto de 2017

CineBH – Parte III



As Duas Irenes (Idem, Brasil, 2017)
Dir: Fábio Meira


Os caminhos que o longa-metragem de estreia do goiano Fábio Meira seguem apontam quase que para um lugar comum, apesar da trama conter certa peculiaridade: a garota Irene, 13 anos em pleno florescer da juventude, descobre que seu pai tem outra família; e mais que isso, ele possui uma filha da mesma idade e com o mesmo nome dela. As Duas Irenes, no entanto, revela-se um drama sólido a retratar os dilemas da adolescência. Pode até soar banal, mais um filme a moldar esse mesmo processo de amadurecimento juvenil que já vimos tanto em outras histórias e filmes, mas encontra aqui um modo muito bem resolvido, singelo e natural, de lidar com tema espinhoso.

A trama se passa no interior de Goiás e remete a um passado não muito remoto em que mais comumente alguns homens possuíam constituições de família assim um tanto arbitrárias. O filme já começa apresentando a descoberta do segredo paterno por parte da “primeira” Irene e aponta para uma desestabilização familiar capaz de afetar a todos. Porém, após a revelação chocante para a garota, a raiva dela vai cedendo lugar à curiosidade e ela começa a espionar a rotina da irmã desconhecida, iniciando uma aproximação tímida, sem revelar o segredo que conhece.

Se, de início, o filme nos faz supor um embate entre as duas, vemos surgir dali uma amizade possível. É nesse movimento surpresa, de fazer o filme seguir uma rota não esperada, que o diretor e roteirista Fábio Meira consegue fisgar bem o espectador, e faz isso pela via do singelo, da ternura, sem nunca pesar a mão. Poderia muito facilmente apostar na contraposição, no jogo dual de choque – entre as duas irmãs, entre as duas famílias –, mas prefere, acertadamente, dimensionar os dramas e conflitos dos personagens, sem julgá-los.

É aí que o filme aproveita para retratar esse momento de florescimento de uma menina em direção à vida adulta, na melhor tradição dos filmes de coming-of-age. Meira, além do domínio de cena e de criar um clima de vida interiorana muito convincente, filma com muita delicadeza essa história, também sem nunca soar ingênuo.

A Irene da outra família, a “segunda” (Isabela Torres), é um pouco mais atrevida, já namora escondido com os garotos no cinema e é mais extrovertida, não é de levar desaforo pra casa. É com ela que a Irene menos experiente (Priscila Bittencourt) vai romper a barreira da timidez, largar o mundo infantil e testar vivências novas. O mesmo embate que poderia haver entre as duas, por conta das personalidades distintas, é resolvido de modo muito mais sincero porque elas acabam se reconhecendo como amigas confidentes.

Ao mesmo tempo, o filme não se furta da tensão que se estabelece no âmbito familiar, prestes a explodir a qualquer instante, especialmente da “primeira” Irene que descobre de antemão, a nossos olhos, o segredo paterno. Ela continua a guardar muita raiva do pai e não deixa de confrontá-lo dentro de casa, ainda que indiretamente. Mas é no contato com a outra família que ela descobre o privilégio de fazer parte do núcleo familiar mais privilegiado por ele. E encontra na mãe de sua irmã (vivida por uma doce Inês Peixoto) um carinho e cuidado materno que talvez lhe falte em casa. O filme lida, portanto, com essas ausências sentidas e que vão transparecendo as carências de cada uma. 

As Duas Irenes é um delicado e seguro longa de estreia, a fugir dos possíveis lugares comuns do filme de amadurecimento, sem comprometer a plausibilidade da trama, e ainda sem abdicar da singeleza e da sinceridade. Pode não ser um campo original, mas certamente não é tarefa das mais fáceis.

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

CineBH – Parte II


Histórias que Nosso Cinema (Não) Contava (Idem, Brasil, 2017)
Dir: Fernanda Pessoa


Visão muito original e surpreendente de parte de nossa história cinematográfica está contida no filme Histórias que Nosso Cinema (Não) Contava, de Fernanda Pessoa. A cineasta revisita o período clássico da pornochanchada brasileira, mas não está interessada no sexo: através de trechos de filmes importantes da época, associados a um movimento tão criativo do cinema brasileiro, o filme pretende revelar facetas políticas e sociais do país via representação de imagens em obras que eram bastante populares à época.

É um trabalho afiado de montagem, dando destaque a cenas que poderiam passar despercebidas nesses filmes, mas que acabam destacando vislumbres históricos e comportamentais de uma sociedade em dado tempo. Atenção especial para o fato de grande parte dessas obras terem sido feitas entre o final dos anos 1960 e início dos anos 1980, justamente o período da Ditadura Militar.

Daí afloram diversas questões, tais como as arbitrariedades do golpe de Estado, o AI-5, o uso da força policial, o milagre econômico, a industrialização crescente e as oportunidades de trabalho. No plano social, o longa evidencia as disputas de classe, com destaque para as relações entre patrão e empregado, o consumismo espelhado no modelo norte-americano (o carro e a televisão aparecem como modelo de status para quem podia comprar os melhores modelos da época) e, claro, a monetarização do sexo e exploração do corpo feminino.

O filme atira para muitos lados, mas não quer em nenhum momento ser um estudo analítico ou intelectualizado sobre essas e tantas outras questões que emergem dali – não há narração em off. Busca, por outro lado, revelar o modo como o cinema, enquanto sistema de representação audiovisual, reflete o país e a cultura de sua época, mesmo a partir dos filmes mais improváveis.

Em Gente Fina é Outra Coisa, de Antonio Calmon, por exemplo, vemos a protagonista, uma dondoca de meia idade, falar para o empregado bonitão: “sabe por que eu fico nua na sua frente? Porque empregado não tem sexo”. São momentos preciosos assim que o filme capta em meio às narrativas sexuais e que acabam revelando dimensões mais profundas de relações sociais vigentes – até os dias de hoje.

De longe, o filme poderia ser uma grande vinheta que opera no sentido de aproximar filmes diferentes a partir de cenas que exploram questões em comum, atravessando um mar de problemáticas, situações e comportamentos ali registrados. É aí que o filme vislumbra um jogo de observação desviante (e necessário) da imagem e da dimensão social via cinema, apesar de não investir muito na ressignificação desse gesto, quando ele basta por si só. Trata-se de uma espécie de revisão histórica sem necessariamente por em crise – os filmes e/ou a História – nem questioná-las. Mas dá a ver o que não se enxerga a princípio.

sábado, 26 de agosto de 2017

CineBH – Parte I



Corpo Elétrico (Idem, Brasil, 2017)
Dir: Marcelo Caetano



Corpos inquietos e o anseio por ser um alguém realizado, em muitos sentidos pessoais, são o que buscam os personagens de Corpo Elétrico, longa-metragem de estreia de Marcelo Caetano. O filme segue as desventuras de Elias (Kelner Macêdo), funcionário de uma empresa de confecção de roupas. Ali, convive com uma série de amigos e está sempre à busca de encontros fortuitos com outros homens.

De forma muito livre e bem-humorada, Caetano nos apresenta um microcosmo formado por esses amigos e sua rede de relações afetivas em aberto que se concentram em torno de Elias. O filme prefere dispensar o conflito definidor da narrativa clássica convencional e se deixar levar pelas muitas possibilidades e desencontros que cruzam os caminhos dos personagens. E é claro que se aproximam dele pessoas muito abertas às experiências sexuais de muitos interesses – em Corpo Elétrico integram-se no grupo desde drags queens que fazem shows na noite até amigos héteros de Elias, como o colega da fábrica que está prestes a se casar com a noiva.

Sem um problema narrativo a ser “resolvido” pelo filme, Corpo Elétrico busca somente captar um estado de espírito de um grupo de pessoas vivendo suas vidas com as batalhas rotineiras de sempre, trafegando pela periferia de São Paulo. Em meio a isso tudo, Elias pula de caso em caso alimentando sonhos maiores de realização – talvez de quietude, tal qual a ânsia pelo mar que ele mesmo almeja logo num dos primeiros diálogos do filme.

Elias não é mais um espírito livre em busca de afirmação sexual – ele e seu grupo de amigos parecem muito bem resolvidos nesse sentido. Seus anseios são outros, e universais. Olhando mais a fundo, a ânsia de Elias é por uma realização pessoal mais profunda que talvez ele mesmo não saiba exatamente como alcançar – como também acontecia com os personagens de um dos melhores curtas de Caetano, Na Sua Companhia.

Corpo Elétrico é menos um filme militante da causa queer – ou pelo menos diretamente ele não o é porque a definição seria mais propícia para o tipo de entendimento de um universo que está procurar romper as amarras das convenções conservadoras de sexo e gênero. O filme não se ergue ao propósito de defender tal causa, ainda que, pelo simples fato de por em tela tais personagens, universos e culturas, acabe o fazendo transversalmente. Via questões sociais e relações desiguais de trabalho, o filme dimensiona a vida e a convivência dessa gente.

O filme faz um belo par com Tatuagem, de Hilton Lacerda, especialmente pela maneira com que ambos estabelecem um universo muito particular em que os personagens estão livres a expor e experienciar seus desejos e anseios amorosos e sexuais, pulsar de tesão e se entenderem como amigos, companheiros, apesar das diferenças. O longa de Caetano, porém, pode representar um passo à frente de Tatuagem porque no filme pernambucano o microcosmo daquela trupe de teatro, de algum modo, os cerca de companheirismo e proteção – ainda que rusgas nasçam dali.

Aqui, ao contrário, o ambiente é o da fábrica, das ruas de um bairro periférico paulistano, e não algo que possa, de alguma forma, “proteger” ou acolher aqueles sujeitos pela própria noção de refúgio que o grupo passa a representar. É ali naquele espaço marcado por outros atravessamentos, tão fluidos e frágeis, que o filme grita suas reivindicações de amor livre como algo necessário e urgente. Se Corpo Elétrico faz isso é pela simples exposição de corpos desejosos que, à flor da pele, querem se encontrar no mundo. 

E Marcelo Caetano, com sua direção precisa e naturalista, constrói um caminho dos mais humanamente bonitos de se acompanhar enquanto o filme se desenrola. Filma aquele curso de vidas com a maior naturalidade do mundo, é agradável de ver e de acreditar. Não se trata mais de demarcar um território, mas de se entender no fluxo de tempo que passa para todos. Elias vê os dias correrem, mas quer, ele mesmo, deixar de correr sem destino para assentar e acalmar, mesmo que seja vencendo as ondas do mar.

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

11º Mostra CineBH


Abençoadas Minas Gerais que me levam, pela terceira vez este ano, a cobrir mais um festival de cinema, agora na capital Belo Horizonte. Começou há alguns dias a 11ª edição da Mostra CineBH, que abriga ainda o Brasil CineMundi, um dos maiores e mais importantes encontros de coprodução internacional realizado no país.

Foram selecionados 22 projetos de longas-metragens brasileiros em fase de desenvolvimento ou pré-produção para serem apresentados e discutidos durante o encontro. Durante a cerimônia de encerramento, um júri especializado escolherá o melhor desses projetos que receberá um prêmio em serviços para auxiliar na execução do filme.

Como sempre, programação segue caprichada, com filmes aguardados em pré-estreia, clássicos a (re)ver, e outras preciosidades a se descobrir. O cineasta (e outrora crítico de cinema) Pierre Léon é o homenageado desta edição, figura pouco conhecida da cinefilia brasileira, mas que ganha um panorama caprichado de seus filmes no festival.

O tema da vez é Cinema de Urgência, colocando em pautas filmes que respondem (ou responderam) às instabilidades sociopolíticas de seu tempo. Na abertura foi exibido o ótimo Corpo Elétrico, filme solar e libertário de Marcelo Caetano, já em cartaz nos cinemas brasileiros (e que vocês não deviam deixar de ver). 

Como sempre, faço cobertura do evento para o jornal A Tarde e tentarei escrever mais detidamente sobre alguns filmes para o Moviola Digital. Segue o baile do cinema.

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Cine Ceará – Parte VI


Últimos Dias em Havana (Últimos Días en la Habana, Cuba/Espanha, 2017) 
Dir: Fernando Pérez


Último filme a participar da mostra competitiva do Cine Ceará, Últimos Dias em Havana, do veterano cineasta Fernando Pérez, reverbera discussões muito próximas às de Santa e Andrés, ambientadas agora no tempo atual. Estão lá, mais uma vez, como algo muito caro aos cineastas cubanos, questões como a validade ou não de abandonar a ilha e o estilo de vida que o sistema político vigente impõe aos cidadãos. E tal como no filme anterior, há um embate um tanto quanto contraposto entre os dois protagonistas do filme que vivem sobre o mesmo teto, numa casa no bairro Centro Habana.

Diego (Jorge Martínez) é um homem solitário que vive prostrado numa cama por conta das complicações com a AIDS. Quem lhe assiste é o introspectivo Miguel (Patricio Wood) que não vê a hora de conseguir o visto para o Estados Unidos e deixar a ilha de vez. Sonha acordado com a possibilidade de refazer a vida em um país capitalista. Diego, por sua vez, se opõe e mesmo passando dificuldades, defende a vida e a permanência no lugar.

Olhando de perto, essa dita contraposição vai se revelar falsa no decorrer do filme porque, no fundo, Diego não quer mesmo é pensar na possibilidade de viver sem o amigo ao lado, solitário que é (são), ainda que mantenha com ele um relacionamento de amor e ódio. Não passa pela sua consciência política – pelo menos não explicitamente – defender o sistema sociopolítico da Cuba atual por questões morais particulares, mas antes encontrar ali um apego capaz de confrontar as ideias do amigo que ir para longe.

É muito através do olhar de Miguel que o filme nos faz ver um retrato muito cru sobre as durezas e pequenas alegrias da cultura e dos modos de vida cubanos, colocando em xeque as posições antagônicas sobre a validade de seguir morando na ilha, com todos os problemas e restrições que fazem parte do cotidiano local. O roteiro, no entanto, não apela para o tom dramático, preferindo apostar na leveza e no bom-humor, apresentando uma série de outros personagens que cruzam o caminho dos dois, cada qual lidando de modo diverso com os planos de futuro. O michê que Diego insiste que Miguel traga para ele se torna um improvável amigo e confidente, e que revela, por trás do estereótipo, alguém que também pensa em como melhorar de vida, sem precisar sair de Cuba.

Não bastasse a verve irreverente de Diego, homossexual assumido, cheio de disposição, falastrão de língua afiada – mais um contraponto em relação ao taciturno Miguel – outros personagens vão se somar a esse núcleo. Morando numa espécie de prédio com várias casas vizinhas por andar, o filme constrói uma rede de (poucas) amizades ao redor deles – e de onde surgem algumas desavenças também, ninguém é de ferro –, o que alarga as possibilidades de discussão da rotina do povo cubano humilde. A chegada da sobrinha de Diego, mais tagarela ainda que o tio, desencadeia outras discussões, como a maternidade precoce, mas também descamba nas perspectivas de futuro dela e do jovem namorado, também eles com posições diferentes sobre a permanência em Cuba. 

A agenda do filme coloca claramente em pauta a relação desses personagens com o regime político da ilha e os dilemas morais e ideológicos que envolvem a vida no país. Mas segue além da mera disputa de opiniões, preferindo encontrar nesses encontros e nas pequenas batalhas diárias modos de ver a situação sem apelar para polarizações fáceis e caricatas. Fernando Pérez é certamente hoje o mais proeminente dos cineastas cubanos em atividade. Esse tom geral ganha enorme fluidez nas suas mãos, o que faz de Últimos Dias em Havana um belo filme duro e divertido, agridoce em essência. 

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Cine Ceará – Parte V



O Homem que Cuida (El Hombre que Cuida, República Dominicana/Porto Rico/ Brasil, 2017)
Dir: Alejandro Andújar


Ano passado o mesmo Cine Ceará buscou revelar filmografias pouco conhecidas da América Latina, mas errou na pontaria. Trouxe como novidade exótica o novelesco Salsipuedes, representante do Panamá. Neste ano, o alvo foi melhorado, e a República Dominicana esteve bem representada com O Homem que Cuida, de Alejandro Andújar. O filme pode mostrar um pouco a cara do cinema que é feito por lá – outro filme dominicano já havia estreado no Brasil antes, o bom Dólares de Areia, com Geraldine Chaplin no elenco. Não é, portanto, filmografia a se subestimar.

O filme de Andújar tem clara proposta de discussão social e tensionamento de classes contada a partir da história de Juan (Héctor Aníbal), um homem que trabalha como caseiro na casa de praia de um rico figurão perto da ilha de pescadores de Palmar de Ocoa. Juan é um funcionário de confiança dos patrões e zela para que a enorme casa fique sempre limpa e bem cuidada, e também para que ninguém de fora circule por ali, o que significa, por exemplo, enxotar os funcionários das outras casas ou moradores locais, impedindo-os de ficarem bebendo no deck da propriedade. É um empregado exemplar.

O filme transcorre no período de poucos dias quando o filho do patrão, o jovem Rich (Yasser Michelén) chega acompanhado de um casal de amigos festeiros, sendo a moça uma moradora local que eles acabaram de conhecer pelo caminho. É nesse ambiente que se desnudam mais claramente as relações de poder, ainda que Juan seja tratado com certa intimidade, de certa forma também convidado para a festinha particular que se desenrola durante aqueles dias. Ali emergem, com muita naturalidade, as pequenas distinções entre os personagens e acentuam-se as contraposições: patrão vs. empregado, pobres vs. ricos, brancos vs. negros. Tudo isso exposto nas sutilezas de comportamento e ações dos personagens.

Juan é o tipo taciturno e sério. Carrega a dor de ser apaixonado pela ex-mulher que o abandonou e já está grávida de outro homem. Encara seu emprego como um refúgio, ainda que viva de seguir ordens, tendo de fazer os caprichos do filho mimado do patrão. É claro que as coisas começam a desandar, e Juan, como sempre, terá que cuidar para que tudo permaneça como antes. Até ele mesmo.

Mais do que a estranheza de Juan em relação ao amigo folgado de Rich e sobre a dualidade entre acatar e domar as ordens do patrãozinho, mais forte é o embate dele com María (Julietta Rodriguez), a moradora local que se torna namoradinha casual do amigo. Ela é pobre, moradora da ilha, pele escura. Adentra o filme com pose de dona do pedaço, mas não engana Juan que já a conhece da vila. O próprio filme vai desfazer essa imagem e mostrar que ela é também usada por aqueles homens que só querem diversão descompromissada. Aos olhos de Juan, ela está falseando um lugar que não lhe pertence de fato, e ele não esconde o incômodo com a postura e comportamento atrevido da moça, tal qual uma patricinha acomodada. A partir desse embate, o filme tece bons comentários sobre as posições sociais que ocupamos, como nos vemos neles e como enxergamos e julgamos os lugares que o outro ocupa ou é permitido ocupar.

O filme dominicano, país com pouca tradição cinematográfica, demonstra maturidade para tratar dessas questões, sem nunca soar panfletário, e Andújar é um diretor competente para ditar ritmo e segurar um filme que se passa quase que completamente em um mesmo ambiente. Há todo um cuidado de fotografia e direção de arte que nos faz crer naquele ambiente ao mesmo tempo em que o isola, lugar onde muita coisa de errado pode acontecer. 

Falou-se nos debates acerca do filme que ele poderia muito bem se chamar “O Caseiro”, esforço de uma tradução mais clara e objetiva para o português. Mas “O Homem que Cuida” consegue expressar além do âmbito profissional, pois Juan não cuida só da casa. Ele é convocado para resolver todos os problemas que surgem, precisa estar a postos a tratar dos empecilhos, especialmente aqueles que Rich provoca, mas não consegue dar conta depois. O Homem que Cuida tensiona essas posições que não são necessariamente novas no cinema. Mas produz um estudo muito rico de relações de poder, via espaço de trabalho, sustentado por situações completamente verossímeis. O final é especialmente duro no sentido de não abrir concessões e preferir ser fiel ao desenho moral que os personagens apresentam durante o filme, demonstrativo da dificuldade de se romper as barreiras que nos cercam.

domingo, 13 de agosto de 2017

Cine Ceará – Parte IV


Pedro Sob a Cama (Idem, Brasil, 2017)
Dir: Paulo Pons


Numa cena rápida no início do filme, o protagonista Mariano (Fernando Alves Pinto) está buscando emprego como executor de serviços gerais e o empregador lhe pergunta: “você é bom em consertar coisas?”. Esta é, em escala maior, a grande provação de Mariano: tentar desfazer os equívocos e desastres que o destino lhe pôs no caminho, ou pelo menos recolar as coisas sobre os trilhos. Há oito anos um desentendimento numa festa acabou vitimando a esposa dele, grávida. Agora ele tenta reatar os laços com a família que havia ficado para trás.

A criança que a mulher carregava na barriga é Pedro, esse do título que se refugia sob a cama. Ele sobreviveu, mas nasceu com a sequela da mudez. O pai nunca o conheceu porque depois da tragédia Mariano desapareceu da vida de todos, inclusive do filho que a esposa tinha de outro relacionamento anterior, o agora adolescente Mani (Konstantinos Sarris). Quando Pedro descobre sobre o retorno do pai, que nunca viu, desvenda a casa para onde ele se muda e sorrateiramente passa a “invadi-la” e se refugia, silenciosamente, debaixo da cama do homem sem que ele perceba.

É claro que o retorno de Mariano reabre cicatrizes do passado e revira de ponta cabeça o emocional de todos. A tentativa de reaproximação de Mariano esbarra na agressividade de Mani, nessa fase difícil de mudanças que é a adolescência, e na mudez de Pedro, que faz o tipo do garoto esperto e introspectivo, daqueles observadores, atento ao que se passa ao redor sem chamar muita atenção para si – ele costuma se comunicar com os outros através de um celular preso ao pescoço onde digita mensagens. Parte do filme nos chega a partir do seu olhar um tanto quanto neutro diante da situação.

O diretor Paulo Pons esforça-se para manter uma pegada intimista e aquela doçura que tem o cuidado de não esbarrar no drama rasgado. Porém, o filme escorrega quando precisa amarrar as pontas do roteiro que soam inverossímeis em tantos momentos, capazes de tirar o espectador desse clima que o filme vai construindo.

Outros personagens e situações soam caricatas, como o comportamento da cunhada de Mariano no início do filme, ou a atitude da avó (vivida por Betty Faria) que tenta impedir o contato de Mariano com os netos – o que rende uma cena deplorável com os “capangas” da avó surgindo do nada numa praça e “prendendo” Mariano antes dele conseguir se aproximar do filho pequeno. E há ainda o grande mistério de como Mariano nunca percebeu uma criança dormindo debaixo de sua cama em tantas noites.

Tais deslizes de roteiro, entretanto, poderiam ser relevados se não fossem constantes. E se não se somasse a isso a necessidade de uma direção mais segura – câmera na mão mal usada é o que mais incomoda –, ainda que o tom do filme mantenha-se acertadamente no campo da melancolia. É como se o tempo todo houvesse um esforço para fazer o filme engatar e encontrar a firmeza da condução, via intimismo, mas somente poucas vezes ele alcança esse lugar com propriedade – a cena da conversa entre Mariano e Mani na porta de casa, por exemplo, é bem boa nesse sentido. 

Aliás, os atores que interpretam esses dois personagens são os que se saem melhor em cena. Fernando Alves Pinto segura em si grande parte da dor enraizada e da dificuldade de expurgar as culpas que esse homem carrega, fazendo aqui um bonito paralelo com o personagem que ele mesmo interpretou em Para Minha Amada Morta, de Aly Muritiba. Enquanto isso, o jovem Konstantinos faz de Mani um garoto sempre prestes a explodir, o que sacode o filme, inclusive por ele partir para cima de um comumente pacato Mariano, injetando gás em certos momentos que poderiam ser mais numerosos. Falta esse fôlego maior a Pedro Sob a Cama e uma mão mais firme de direção.

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Cine Ceará – Parte III


Santa e Andrés (Santa y Andrés, Cuba/França/Colômbia, 2016)
Dir: Carlos Lechuga


Santa e Andrés atravessa certo momento histórico de Cuba, ali no início dos anos 1980, para contar uma história de amizade. Ou vice-versa. A relação de amizade que surge entre os dois personagens, postos em lados ideologicamente antagônicos da questão política, é o que move a trama desse filme que carrega sua dose de polêmica, muito por ter sido impedido de se lançar comercialmente no país uma vez que faz dura crítica ao regime comunista ainda vigente.

Depois de tanto tempo, Cuba ainda carrega a chaga de ser esse país dividido que causa sentimentos opostos entre aqueles que o defendem ou não, algo que atravessa irremediavelmente posições morais e políticas – e o cinema cubano não deixa de retratar isso constantemente, como pudemos ver no outro corrente cubano apresentado no Cine Ceará. No momento histórico em que corre o filme, o regime comunista comandado por Fidel Castro segue bem estabelecido no país e já havia posto em prática uma política camuflada de perseguição contra homossexuais. Também havia um controle sobre escritores, artistas ou qualquer intelectual que pensasse criticamente os caminhos políticos do país.

E o protagonista do longa carrega essas duas alcunhas – ou podemos dizer, pesos. Escritor homossexual, Andrés (Eduardo Martinez) vive recluso no interior do país vigiado e controlado pelas forças policiais do regime. Não pode sair dali e muito menos continuar a escrever seus livros de teor “subversivo”, pois foi na tentativa de escrever um assim no passado que ele foi preso e condenado a viver como numa prisão em regime aberto, sempre sob custódia. Com a realização de um Fórum para a Paz ali perto de onde ele vive, o regime contrata a assistente social Santa (Lola Amores) para vigiá-lo mais de perto e impedir qualquer tipo de comunicação dele com estrangeiros ou alguma forma de manifestação de sua parte.

O filme trabalha, de imediato, a dicotomia entre os opositores e defensores do regime, muito embora, mais adiante, vai revelar, através de Santa, uma personagem com mais nuances que poderá também questionar o tratamento que é dado a Andrés. Ela, na verdade, é uma novata na função, não está ali fazendo aquele serviço por questões ideológicas e pessoais, mas sim executando um trabalho rotineiro, cumprindo uma ordem. E é na aproximação entre os dois, não necessariamente romantizada pelo filme, que os dois revelam mais de si e de seus dilemas.

É certo que em alguns momentos o filme apela para a caricatura, especialmente quando chega mais perto do final e os superiores de Santa começam a pressioná-la para vigiar Andrés com mais dureza, inclusive tentando arrancar segredos dele por intermédio dela. Falta um tanto de ritmo a partir da segunda metade da narrativa também porque o filme fica dando voltas ao redor de disputas e pequenos conflitos entre eles ou a partir da vida e rotina de cada um – como, por exemplo, a relação amorosa/sexual e mesmo agressiva que Andrés leva com um estranho rapaz que vive no povoado mais próximo. Já a dimensão dramática que Santa ganha, a partir da descoberta de assuntos dolorosos de seu passado, é mais bem resolvida na trama. O desfecho da história, no entanto, também carrega certas fragilidades ao desenhar o destino dos personagens. 

O diretor Carlos Lechuga não se furta, portanto, de apontar tais pontos controversos do sistema político cubano e das decisões e posturas que foram defendidas ali naquele momento. O filme chegou a ser censurado nos cinemas do país porque tais questões ainda não foram de todo passadas a limpo – apesar de Fidel já ter vindo publicamente para confessar que, de fato, o regime perseguiu homossexuais no passado. Mas as questões ideológicas vão continuar cercando a ilha cubana de posições antagônicas e grande parte dos discursos que forem traçado sobre o cotidiano e a História do país. Lechuga é um jovem cineasta (esse é seu segundo longa) e carrega consigo uma visão crítica dos que olham para trás sem receio de enfrentar as cicatrizes que marca(ra)m a vida dos que ali habitam.

terça-feira, 8 de agosto de 2017

Cine Ceará – Parte II



Ninguém Está Olhando (Nadie nos Mira, Argentina/EUA/Espanha/ Brasil/Colômbia, 2017)
Dir: Julia Solomonoff


Julia Solomonoff já trouxe para o Cine Ceará seu trabalho anterior, El Último Verano de la Boyita, filme vencedor da edição de 2010. Agora ela retorna com Ninguém Está Olhando e perfaz uma bela mudança de ares. Abandona o cenário campestre do interior da Argentina e agora ruma para uma paisagem cosmopolita fora do país de origem, aportando na terra de oportunidades que é Nova York.

Ela abandona também um lugar comum de certo cinema latino que investiga, via naturalismo, mais uma história de coming-of-age para ser mais original no novo filme: acompanha as desventuras de um jovem ator argentino que tenta carreira nos Estados Unidos. Nico (Guillermo Pfening) fazia uma novela de sucesso em Buenos Aires, mas por motivos pessoais, que envolvem um relacionamento mal resolvido com seu produtor, decidiu tentar a sorte longe dali.

Sem muito dinheiro e pagando aluguel em apartamento compartilhado com outras pessoas, sua primeira fonte de renda é trabalhando como baby sitter, inicialmente dos filhos de amigas que tem na cidade americana, além de bicos como garçom e afins. É a vida quase cotidiana de um imigrante latino, ainda em volta com burocracias legais e visto de permanência a expirar.

Importante saber também que a própria diretora mora atualmente em Nova York, e o filme não deixa de refletir os desafios que ela mesma enfrentou, passando pelas observações e convivência com outros latinos, artistas ou não, a partir de uma comunidade que se integra ali.

Ninguém Está Olhando busca desnudar certo mercado e ambiente da indústria audiovisual, que no país americano ganha outros níveis de concorrência, agressividade e exigência – Nico, por exemplo, loiro de olhos claros, enquadra-se mais num biótipo europeu do que latino, algo que a indústria já estereotipou há algum tempo. Mas no fundo, o filme é também uma história de pertencimento uma vez que Nico parece o tempo todo desconfortável com as pequenas batalhas que empreende em busca de realização profissional, sempre à espera de uma oportunidade que alavanque sua carreira, mas que demoram a vingar. Viver ali parece um calvário, um lugar que se lhe mostra pouco acolhedor, e o filme é marcado por um tom melancólico que passa pela expressão cansada de Guillermo Pfening sem apelar para exageros dramáticos.

Em certa medida, o filme gira muito ao redor dos mesmos dilemas e dificuldades de sempre enfrentadas por ele, o que torna a narrativa um tanto redundante e que patina pelos mesmos conflitos. No geral, a direção de Solomonoff exprime competência e dita ritmo ao filme, muito também pela gama de outros personagens que circundam a vida de Nico. A visita inesperada de um amigo argentino, também ator, com quem Nico trabalhava na televisão portenha, gera bons momentos que potencializam o desconforto do protagonista, tendo de fingir estar e viver bem para não ter de demonstrar fracasso.

Em contraponto a esse tom derrotista que paira sobre a rotina de Nico, o filme tem a delicadeza de pontuar os enlaces afetivos – como as conversas via skype com a mãe, vivida pela sempre ótima Mirella Pascual – e também amorosos. Mesmo se relacionando com outros homens em Nova York e depois de terminar um relacionamento promissor, Nico não consegue esquecer o affair que deixou na Argentina e que continua a assombrá-lo e persegui-lo. 

Ninguém está Olhando possui a qualidade dos bons dramas sobre gente quebrada: o traço da melancolia, sem passar a mão na cabeça dos seus personagens e ser condescendente para satisfazer os ditames do final feliz, mas também sem pesar a mão sobre eles, reservando-lhes carinho e dignidade.

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Cine Ceará – Parte I



Uma Mulher Fantástica (Una Mujer Fantástica, Chile/Alemanha/ Espanha/EUA, 2017)
Dir: Sebastián Lelio


O caminho de aceitação de uma pessoa transgênero perpassa primeiro por um autorreconhecimento enquanto tal e depois pela necessidade de assim ser visto/a pela sociedade. Pior é quando esse imperativo da aceitação externa chega de modo abrupto. Esse é o maior drama da protagonista de Uma Mulher Fantástica, filme do chileno Sebastián Lelio, que abriu a competição do Cine Ceará.

Marina tem um relacionamento com um homem mais velho. Um mal súbito e um acidente caseiro o leva a óbito e, de repente, ela precisa se afirmar diante da família e amigos dele. Ao mesmo tempo, tem de provar que não foi culpada pela morte do homem amado, uma vez que o relacionamento dos dois era visto com desconfiança e eles estavam sozinhos em casa.

O filme parece magnetizado pela figura dessa mulher em processo de luto e também de provação diante de uma sociedade tão hostil para um transexual. Seu comportamento inicial é de interiorizar as dores, suspeitas e receios que sua simples presença causa nas pessoas, ainda que sempre resista a todo tipo de negação que lhe é demonstrada. É no campo da batalha íntima que o filme trabalha, mesmo quando a personagem se contrapõe mais raivosamente contra seus inimigos. Ela só quer poder ir ao velório e enterro do homem que amava e seguir sem ter vergonha do que viveu, a despeito das opiniões duvidosas.

No filme anterior de Lelio, o ótimo Glória, uma mulher também buscava se firmar no mundo. Ela era mais velha, sempre esteve dedicada a seu trabalho, mas passava a ensaiar uma aproximação amorosa, até perceber o quanto a busca por um companheiro é difícil nessa idade. Em Uma Mulher Fantástica, Marina também lida com o lado emocional, mas soma-se aí o peso de ser vista como uma aberração ou não merecedora de respeito dos demais. São, portanto, filmes que colocam personagens femininas em situação de provação.

A atriz Daniela Vega é de fato uma mulher trans e segura muito bem o filme que não deixa de questionar um tipo de estereótipo muito colado a essas pessoas, geralmente associado ao sexo, à marginalidade e à prostituição. Mariana, por sua vez, trabalha como garçonete, estuda canto lírico e apresenta shows em bares e restaurantes à noite. Mas não deixa de ouvir da ex-mulher de seu companheiro esta pergunta: “ele te pagava?”, justo porque esse imaginário está muito arraigado na sociedade e ainda lhe é negada a possibilidade de viver amor sincero com outra pessoa qualquer.

Há um esforço para se traduzir, em alguns momentos, certo sentimento de inadequação e deslocamento da personagem, tanto diante da situação inusitada que vive e também diante da afirmação da própria identidade. Uma dessas imagens é bem forte: ela é atacada pelo filho do companheiro falecido – ele já tinha filhos com outra mulher – e por alguns amigos, posta dentro de um carro onde sofre uma série de agressões. Ali eles envolvem desajeitadamente a cabeça dela em fita adesiva, o que causa uma deformação na sua expressão facial. É muito significativo esse momento porque a “distorção” corporal está, pejorativamente, muito associada ao corpo de uma pessoa trans. Ao se olhar no espelho dessa maneira depois do susto, Marina é contraposta com uma imagem aberrante, uma que querem lhe impor. E é esse tipo de estranhamento sobre si mesma que ela sempre terá de enfrentar.

No entanto, o filme perde um pouco a força quando insiste nessas metáforas que o tomam de assalto e querem refletir a insegurança dela com o corpo e a condição trans. Se sai melhor quando investe nos devaneios dela. Num desses momentos, ela se vê liderando uma equipe de dançarinos que performatizam uma coreografia estilizada e profissional numa boate, e um corte brusco nos leva à realidade da protagonista que volta para casa embaixo de chuva. Isso porque Uma Mulher Fantástica abre espaço para as fantasias da personagem nesse momento de calvário e foge um pouco do aspecto mais realista que domina as produções do diretor – daí também uma segunda leitura para o título do filme – como quando, em muitas situações, ela vê a figura do companheiro morto. 

O filme, por pouco, não cai no discurso piedoso do coitadismo em relação a todo preconceito que a protagonista sofre, mas sabe confortá-la sem abrir mãe da crueza de um mundo que lhe é tão opositor. Nesse mesmo caminho, o longa põe em pauta um tema tão atual e necessário como a transgeneridade sem soar meramente panfletário, e é nesse tratamento tão balizado que reside a maior força do filme.

domingo, 6 de agosto de 2017

27º Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema


Terceiro ano consecutivo que Fortaleza me acolhe em seu mais importante festival de cinema: o Cine Ceará. O evento celebra o rico cinema de recorte ibero-americano e chega agora em sua 27ª edição. A abertura acontece no charmosíssimo Cineteatro São Luiz com a exibição de Uma Mulher Fantástica, do chileno Sebastián Lelio.

E o Chile é justamente o país homenageado da vez, que já recebeu nos últimos dias uma mostra com filmes de destaque, entre recentes e clássicos. E há ainda uma justíssima homenagem ao grande diretor de fotografia e homem de cinema que é Walter Carvalho.

Como de praxe, faço cobertura para o Jornal A Tarde, mas tentarei escrever mais detidamente sobre os filmes aqui. 

Dessa vez participo também como membro do júri Abraccine, promovido pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema, presente em tantos festivais, que elege os melhores longas e curtas em competição. Portanto, que venham os filme.

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Ser menos

O Filme da Minha Vida (Idem, Brasil, 2017) 
Dir: Selton Mello


Sem dirigir um filme para cinema há seis anos, quando fez o ótimo O Palhaço – sucesso de crítica e público, nosso representante ao Oscar –, Selton Mello retorna agora à função com O Filme da Minha Vida. Sua estreia como diretor tinha sido com o também competente Feliz Natal. É muito curioso perceber que seus dois primeiros longas tinham pontos de referência muito claros: o primeiro emulava declaradamente o cinema de John Cassavetes, com uma mistura inusitada do impressionismo de uma Lucrécia Martel; já o segundo tinha um quê de Wes Anderson, com seu visual kitsch-estilizado e quadros muito bem compostos visualmente. Agora, o diretor tenta encontrar um caminho mais seu, um rumo próprio, ainda que altamente estilizado e muito peculiar a esse projeto, justamente no filme que se revela o menos inspirado dos três.

Talvez a explicação para tal “desencontro” esteja mesmo na origem do projeto: adaptado do livro do escritor chileno Antonio Skármeta, intitulada Um Pai de Cinema, O Filme da Minha Vida não esconde o quanto modesto essa história quer ser, a não ser pelo aspecto visual a gritar e chamar atenção para si.

O livro de Skármeta já era singelo per si, uma história curta, pequena, mas não menos cheia de meandros, questões afetivas e familiares. E não há nada mal em ser modesto e prezar pelos contos mínimos; o problema maior é que o próprio filme não parece aceitar essa sua condição. A exuberância técnica, principalmente da fotografia assinada pelo grande Walter Carvalho, não acompanha o tamanho do filme, que poderia encontrar melhor dimensão para desenvolver seus conflitos, até porque tudo que compõe essa narrativa tem o seu valor destacado: o texto é preciso, os atores estão todos ótimos em cena, há graça e humor, afeto e paixão envolvidos.

Mello encontra na história de Tony Terranova (Johnny Massaro) uma forma de idealizar uma trajetória que não necessariamente possui algo de especial, mas simplesmente reflete a vida de um jovem se abrindo para a fase adulta. Ele acabou de retornar à sua cidade interiorana de origem depois de completar os estudos superiores fora. Culto e de temperamento introspectivo, começa a dar aulas no colégio infantil. Mas vive tomado pelo remorso de ter visto seu pai (Vincent Cassell), um francês aventureiro, abandonar a cidade e a família para voltar a sua França natal no exato dia em que Tony retornou ao lar.


Inconformado e à procura de rastros do paradeiro do pai, Tony segue sonhando e amadurecendo, e o filme acompanha uma série de outras relações que lhe surgem no caminho: a paixonite que começa a nutrir pela bela Luna (Bruna Linzmeyer), o comportamento cada vez mais soturno da mãe, os contratempos com seus imberbes alunos, passando pelos desejos carnais (dele e dos alunos), além da aproximação com um velho amigo do pai, Paco (vivido pelo próprio Selton Mello). Em certa medida todos esses pequenos encontros funcionam, narrativamente, como despiste que circula ao redor do grande conflito em torno da figura paterna e também o mistério que paira sobre o porquê dele ter ido embora tão repentinamente. E a mesma singeleza que permeia a história é também a forma como o filme trata a resolução de tal caso, já no meio da projeção, e pouco constrói depois disso, a não ser pela pequena resolução dos micro-conflitos em relação aos demais personagens.

O longa parece muito mais obcecado e interessado em provocar um impacto visual memorável, a busca pela beleza constante a cada plano. O capricho pode acabar gerando sacrifícios. Corre-se o risco de soar pretensioso, como se quisesse provar competência técnica a todo custo, no limite da afetação visual, ainda que a “intenção de querer ser bonito” não seja de todo um mal a se renegar. Ou, o que é ainda mais grave, funcionar como despiste impressionável para esconder as vias de uma trama que nem sempre emplaca – e mesmo que empaca, especialmente depois da resolução envolvendo o destino do pai.

No meio disso tudo, no entanto, há a competência cênica de Selton Mello que ainda consegue manter a balança em equilíbrio e ditar certo ritmo para que o filme não se torne enfadonho. Há algo de maturidade aí, de qualquer forma, que faz jus à trajetória que ele vem apresentando até aqui. Se espremer bem, sai bem pouco da trama de O Filme da Minha Vida e é uma pena que sempre queiram fazer mais daquilo que se propõe a ser menos.