Uma
Mulher Fantástica (Una Mujer Fantástica, Chile/Alemanha/ Espanha/EUA,
2017)
Dir:
Sebastián Lelio
O
caminho de aceitação de uma pessoa transgênero perpassa primeiro por um autorreconhecimento
enquanto tal e depois pela necessidade de assim ser visto/a pela sociedade. Pior
é quando esse imperativo da aceitação externa chega de modo abrupto. Esse é o
maior drama da protagonista de Uma Mulher
Fantástica, filme do chileno Sebastián Lelio, que abriu a competição do Cine Ceará.
Marina
tem um relacionamento com um homem mais velho. Um mal súbito e um acidente
caseiro o leva a óbito e, de repente, ela precisa se afirmar diante da família
e amigos dele. Ao mesmo tempo, tem de provar que não foi culpada pela
morte do homem amado, uma vez que o relacionamento dos dois era visto com
desconfiança e eles estavam sozinhos em casa.
O
filme parece magnetizado pela figura dessa mulher em processo de luto e também
de provação diante de uma sociedade tão hostil para um transexual. Seu
comportamento inicial é de interiorizar as dores, suspeitas e receios que sua
simples presença causa nas pessoas, ainda que sempre resista a todo tipo de negação
que lhe é demonstrada. É no campo da batalha íntima que o filme trabalha, mesmo
quando a personagem se contrapõe mais raivosamente contra seus inimigos. Ela só
quer poder ir ao velório e enterro do homem que amava e seguir sem ter vergonha
do que viveu, a despeito das opiniões duvidosas.
No
filme anterior de Lelio, o ótimo Glória,
uma mulher também buscava se firmar no mundo. Ela era mais velha, sempre esteve
dedicada a seu trabalho, mas passava a ensaiar uma aproximação amorosa, até perceber o
quanto a busca por um companheiro é difícil nessa idade. Em Uma Mulher Fantástica, Marina também lida
com o lado emocional, mas soma-se aí o peso de ser vista como uma aberração ou não
merecedora de respeito dos demais. São, portanto, filmes que colocam personagens
femininas em situação de provação.
A
atriz Daniela Vega é de fato uma mulher trans e segura muito bem o filme que
não deixa de questionar um tipo de estereótipo muito colado a essas pessoas, geralmente associado
ao sexo, à marginalidade e à prostituição. Mariana, por sua vez, trabalha como
garçonete, estuda canto lírico e apresenta shows em bares e restaurantes à noite.
Mas não deixa de ouvir da ex-mulher de seu companheiro esta pergunta: “ele te
pagava?”, justo porque esse imaginário está muito arraigado na sociedade e ainda
lhe é negada a possibilidade de viver amor sincero com outra pessoa
qualquer.
Há
um esforço para se traduzir, em alguns momentos, certo sentimento de
inadequação e deslocamento da personagem, tanto diante da situação inusitada
que vive e também diante da afirmação da própria identidade. Uma dessas imagens
é bem forte: ela é atacada pelo filho do companheiro falecido – ele já tinha
filhos com outra mulher – e por alguns amigos, posta dentro de um carro onde sofre
uma série de agressões. Ali eles envolvem desajeitadamente a cabeça dela em fita
adesiva, o que causa uma deformação na sua expressão facial. É muito
significativo esse momento porque a “distorção” corporal está, pejorativamente,
muito associada ao corpo de uma pessoa trans. Ao se olhar no espelho dessa
maneira depois do susto, Marina é contraposta com uma imagem aberrante, uma que
querem lhe impor. E é esse tipo de estranhamento sobre si mesma que ela sempre terá de enfrentar.
No
entanto, o filme perde um pouco a força quando insiste nessas metáforas que o
tomam de assalto e querem refletir a insegurança dela com o corpo e a
condição trans. Se sai melhor quando investe nos devaneios dela. Num
desses momentos, ela se vê liderando uma equipe de dançarinos que performatizam
uma coreografia estilizada e profissional numa boate, e um corte brusco nos
leva à realidade da protagonista que volta para casa embaixo de chuva. Isso
porque Uma Mulher Fantástica abre
espaço para as fantasias da personagem nesse momento de calvário e foge um
pouco do aspecto mais realista que domina as produções do diretor – daí também uma
segunda leitura para o título do filme – como quando, em muitas situações, ela
vê a figura do companheiro morto.
O
filme, por pouco, não cai no discurso piedoso do coitadismo em relação a todo
preconceito que a protagonista sofre, mas sabe confortá-la sem abrir mãe da
crueza de um mundo que lhe é tão opositor. Nesse mesmo caminho, o longa põe em
pauta um tema tão atual e necessário como a transgeneridade sem soar meramente panfletário,
e é nesse tratamento tão balizado que reside a maior força do filme.
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