quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Festival de Brasília – Parte II



Música para Quando as Luzes se Apagam (Idem, Brasil, 2017)
Dir: Ismael Caneppele


Roteirista de Os Famosos e os Duendes da Morte, de onde ele ainda mantém o apreço pelo universo juvenil, Ismael Caneppele parte de um princípio de experimentação, mais processual do que visual, na sua estreia de direção de um longa-metragem. Música para Quando as Luzes se Apagam, apesar do sentido etéreo que muitas de suas imagens sugerem, propõe uma investigação da intimidade da jovem Emelyn que, por vezes, se reconhece como Bernardo.

Ela ocupa o lugar desse corpo e mente que, antes de buscarem se entender no mundo a partir de um gênero sexual definido, querem mesmo é curtir a liberdade de ser aquilo pelo qual o corpo responde com o fluxo de juventude que vem junto com isso. Ao invés de seguir o caminho do puro documentário de observação, Caneppele quis somar outras camadas em seu filme sem que isso elimine, de todo, o gesto de observar. Para tanto, insere no cotidiano de Emelyn a figura de uma mulher, vivida pela atriz Julia Lemmertz, que passa a acompanhar aquele cotidiano e iniciar conversas com a jovem, aproximando-se também de sua família e amigos.

A primeira cena do filme é uma imagem amadora em que Lemmertz aparece de um lugar alto para fazer um plano geral da pequena cidade onde Emelyn vive, em Lajeado, no Rio Grande do Sul, sugerindo que a atriz está chegando ali naquele instante. Em nenhum momento do filme saberemos o que ela de fato representa para Emelyn e para o espectador enquanto instância narrativa e em que medida ela performatiza uma personagem ou incorpora a si mesma – ou uma mistura das duas coisas. De início, dá a impressão de ser quase como uma nova amiga que vai sanando a curiosidade de saber os detalhes da vida da outra, seus anseios e desejos pessoais; e é claro que elas estabelecem, muito facilmente, uma relação de afeto e companheirismo visível e sincero, chegando ao lugar da confidência.

Nesse sentido, o casting de Lemmertz como essa mulher que adentra a vida e o cotidiano de Emelyn é ideal como rosto conhecido de atriz veterana que incide diretamente sobre uma realidade sensível, para além de ser uma estratégia narrativa original e funcional. No entanto, ao promover esse encontro, mas deixando de lado, ou diluindo sem especificidade, o que significa a presença desse corpo antes estranho naquele ambiente familiar e íntimo, de um universo que se abre com tanta generosidade e que toca em questões tão delicadas como as de identidade sexual, o filme perde muito da força que esse encontro poderia expandir a partir das questões de interrelação, seja no intermédio dos gêneros feminino/masculino, seja nas proposições e marcas da ficção e do documentário.

Muito se fala hoje e se celebram os filmes que se movimentam por essa fronteira de registros no cinema, especialmente o brasileiro. Mas pouco se problematiza na forma como essa fronteira é tensionada e explorada, até por existirem muitas maneiras para se fazer isso, com consequência e programas de efeitos distintos. Música para Quando as Luzes se Apagam parece que vai ensaiar um passo nessa direção, mas se deixa distrair para algo certamente mais latente - o senso de liberdade e movimento que a protagonista apresenta - ainda que isso faça o filme girar ao redor de uma questão que não problematiza muita coisa. 

Mas o filme prefere se encantar pela proposta conceitual da coisa, sem muita preocupação com o alcance e os resultados disso, como se se hipnotizasse frente à beleza da juventude livre que Emelyn de certa forma representa e expande em tela. O filme vai focar um pequeno conflito na terça parte da trama, quando Emelyn precisa enfrentar uma espécie de desilusão amorosa e encontra consolo no colo da Lemmertz amiga. Fora isso, tudo é muito plácido, harmonioso, e o filme se restringe ao deslumbre por conta do fluxo de vivacidade e pelos caminhos de uma aproximação carinhosa e recíproca, por mais que todo esse processo seja muito bonito enquanto abertura para uma quase transcendência do indivíduo; eu quase ia dizendo “descoberta do sujeito”, mas bate forte a impressão de que Emelyn não está muito interessada nesse movimento neste momento.

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