quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Mostra SP – Parte V



Quando os Animais Sonham (Når Dyrene Drømmer, Dinamarca, 2014) 
Dir: Jonas Alexander Arnby


Mesmo se visto como metáfora das transformações da adolescência, esse filme dinamarquês não consegue ser tão convincente. Isso porque como simples trabalho de gênero, não passa de um reprocessar de elementos de tons fantásticos, tentando extrair horror da história de uma garota que percebe algo diferente no seu corpo e na sua própria essência como ser.

Marie (Sonia Suhl) começa um novo trabalho numa peixaria, tem uma mãe num cadeira de rodas, vítima de doença misteriosa. Ao mesmo tempo em que passa a ser vítima das brincadeiras maldosas de seus colegas de trabalho, descobre sua sexualidade e percebe algo estranho em segredo na sua família. Manchas vermelhas e pelos começam a surgir no seu corpo.

São com esses elementos que o roteiro do filme trabalha, embora as escolhas de conflitos tornam-se as mais banais. O filme prefere transformar sua personagem numa adolescente rebelde, confrontando-se à figura paterna, do que de fato se deter naquilo que é mais evidente: sua transformação. A narrativa ignora aquilo que tem de mais particular. A história parece continuar pelo simples prazer de ver aquela garota se transmutando em besta-fera, vingando-se, aos poucos, de todos aqueles que a fizeram “mal”. E não deixa de haver algo muito moralista nisso.


A Gangue (Plemya, Ucrânia, 2014) 
Dir: Myroslav Slaboshpytskiy


Um das sensações dessa edição da Mostra SP é esse filme ucraniano barra-pesada, cinema irmão dos trabalhos duros feitos atualmente na mãe Rússia. Detalhe: todos os personagens são surdos-mudos e se comunicam através de linguagem de sinais. Não há tradução ou legenda alguma no filme. Aqui, mais que nunca, o corpo é linguagem.

O ambiente é um colégio interno especializado. Um novo estudante é incorporado ao grupo e não demora a perceber o lado cruel (que parece ser o único) de seus colegas. Talvez fosse intenção aqui distanciar-se de uma possível caricatura do deficiente vulnerável, via “tadismo” que leva à pena. A escolha do diretor é apresentar personagens perversos, um estado bruto de crueldade que extrapola a simples prática de bullying ou a maldade que brota em alguns jovens.

Há uma gangue e um líder odioso; eles subornam os outros garotos, vivem se estapeando, promovem brigas para uma plateia assistir; as meninas são prostituídas, há conivência de algumas autoridades do colégio. A Gangue é esse filme que faz questão de ser indigesto, de apresentar um mundo cão que os próprios personagens criaram num ambiente dominado por poucos, embora pareça ser o clima geral com que a maioria compactua.

Uma possível curva dramática pode surgir quando Sergey (Grigoriy Fesenko), o novo aluno, apaixona-se por uma das garotas, arredia e mais interessada em vender seu corpo, especialmente para estrangeiros interessados em levá-la para outro país. Mas esse é um plot engolido pela vontade do filme em escandalizar; uma sequência de aborto é especialmente angustiante. Além da estética do choque, esses atos vis são uma constante que deixa o filme sempre num mesmo tom. Interessante caso em que a violência vista em excesso é capaz de efeito anestésico, via tratamento redundante.

O diretor Slaboshpytskiy dirige muito bem, é preciso dizer. Há uma noção absurda de encenação e espaço, vide os planos-sequência super elaborados que o diretor cria para acompanhar seus meninos-demonizados. Mas mesmo essa escolha narrativa não deixa de denotar certo preciosismo de direção, uma vontade de mostrar serviço com a câmera na mão. E uma vontade também de dar paulada na cabeça do espectador.


Detetive D: O Dragão do Mar (Di Renjie: Shen Du Long Wang, China, 2013)
Dir: Tsui Hark 
 

O produto blockbuster de artes marciais que Tsui Hark produz no contexto do cinema de Hong Kong parece um contraponto interessante aos filmes norte-americanos similares que a indústria empurra goela abaixo na maioria dos países. Hark, ao mesmo tempo que parece combater esse domínio, cria ele mesmo esse tipo de material que só tem a diferença de ser um produto local, injetando ali a história e cultura de seu povo.

Para além do clima geral de filme de ação, o grande problema desse Detetive D: O Dragão do Mar é sua insistência em nunca deixar o espectador piscar, criando um fluxo de ação que nunca para no interior da narrativa. São muitos os conflitos que enfrenta o policial imperial Dee (Mark Chao) – o filme faz parte de uma série de trabalhos anteriores com o mesmo personagem, embora aqui ele seja, cronologicamente, apresentado pela primeira vez como detetive que vai se incorporar à força policial a serviço da Família Imperial chinesa.

Como de hábito nesse tipo de filme, o visual é espetacular em termos de beleza e cuidado estético. O uso excessivo (e nem sempre tão bom) de CGI pode atrapalhar um pouco também. Mas o ritmo narrativo é tão frenético, há tantos diálogos, conflitos, reviravoltas e detalhes, que é difícil acompanhar uma trama tão rocambolesca. O que era pra ser divertido, acaba cansando pelo exagero.


As Maravilhas (Le Meraviglie, Itália/Suíça/Alemanha, 2014) 
Dir: Alice Rohrwacher


Pode demorar um pouco até se compreender que As Maravilhas funciona mais como crônica de um lugar, de uma família rural e sua rotina, do que como conflito posto por um roteiro. Apesar disso, algumas questões surgem ali entre os personagens, tal qual surgem com cada um de nós no nosso dia a dia. Fotografia levemente granulada traz esse tom todo intimista ao filme. É fim do verão.

Há, portanto, esse clima de vida interiorana com seus pequenos encantos naturais, no contexto de uma família simples de apicultores que trabalham juntos para se sustentarem. Desde as filhas mais jovens do casal e uma agregada no lar, todos convivem num mesmo esforço de levar adiante a produção artesanal de mel.

Talvez um centro norteador da narrativa seja um olhar para um grupo de garotas condicionadas a uma realidade estanque. Ainda que exista algo de muito carinhoso ali – o filme está longe de denuncismos –, aquelas meninas são privadas de possibilidades outras para fora daquele universo interiorano. Pai amoroso, mas muito convencido de que elas devem se ater ao lugar, reforça muito bem essa posição rígida.

A chegada da equipe de um programa televisivo que realiza um concurso na região em busca de famílias para retratar parece ser a ponte para a fuga dessa rotina. Desperta principalmente em Gelsomina (Maria Alexandra Lungu), a mais velha das irmãs, o sonho de ver sua vida mudar, através desse contato com um mundo exterior idealizado. No fundo, isso mexe com todos, o que promove uma espécie de pequenos choques de realidade naquelas pessoas, em maior ou menor grau. 

Mesmo que As Maravilhas permaneça sempre num mesmo tom e tenha uma dificuldade para terminar (filme poderia ter uns 10 minutos finais a menos tranquilamente), é fácil aceitar o convite para adentrar um mundo de belezas singelas, ainda que restritivas. Carrega um delicioso sabor agridoce.

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