sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Caminhos de estranheza

Ventos de Agosto (Idem, Brasil, 2014)
Dir: Gabriel Mascaro
***½


Com Avenida Brasília Formosa, Gabriel Mascaro filma um espaço peculiar e sua gente, seus desejos e anseios, na esteira do cotidiano. Agora com Ventos de Agosto, a intenção parece ser a mesma. Mas indo um passo além nesse novo trabalho, Mascaro consegue injetar elementos incomuns que tornam o filme um corpo estranho na atual produção independente brasileira.

É assim que Ventos de Agosto nos parece enganar com suas belíssimas imagens colhidas numa vila de pescadores no interior de Alagoas. A vida passa calma por lá, e o filme acompanha o cotidiano sem pressa da jovem Shirley (Dandara de Moraes) e seu namorado Jeison (Geová Manoel dos Santos). Ela ouve punk rock e quer ser tatuadora, ele pesca frutos do mar e transporta os cocos colhidos naquela região.

São dois personagens quase em contraposição: enquanto ela só está ali para cuidar da avó doente, ele parece pertencer àquele lugar, ali finca suas raízes. Os sonhos de futuro são diferentes para essas pessoas que estabelecem uma relação muito forte – emocional, econômica, física – com aquela região, um lar. Mas essa “historinha” será abalada por dois movimentos surpreendentes que o filme insere na narrativa.

Primeiro porque inclui ali a estranha visita de um homem que procurar gravar, com seus equipamentos, o som do vento – e venta muito naquela região –, e também o barulho do mar, uma espécie de “respirar” das entranhas do oceano. Vivido pelo próprio Gabriel Mascaro, esse personagem desvirtua um tipo de história que parecia ser somente de observação.

Mas há um segundo elemento desvirtuador, inesperado: Jeison encontra o crânio de um homem no mar e depois um corpo em decomposição na praia. Fascinado por aquele fenômeno, tenta acionar as autoridades para dar fim ao morto, mas acaba ele mesmo por criar certa afeição pelo corpo putrefato, cuidando-o para que seja velado e enterrado.

É aí que o filme consegue ampliar sua visão de mundo e tornar-se universal (mais do que a beleza do cotidiano de gente simples já consegue ser, fotografado lindamente, também por Mascaro). O tema da morte e da falibilidade do corpo adentra o filme como um mistério insondável, que atiça os personagens e faz questionar o espectador.

Ventos de Agosto marca-se pelos desvios narrativos que o tiram de certa zona de segurança, um caminho por demais tradicional da contemplação, já trilhado por muitos filmes recentes. Elimina o risco de filmar uma geografia habitada por gente simples de forma exótica, exploratória. Prefere o caminho do bizarro, capaz de tirar o chão do espectador, ainda que esteja calcada no fluxo natural das coisas. 

E essa natureza bravia em captação parece, ela mesma, vigiar os caminhos incertos que descortinam a vida dos homens. Sob ventania e mar bravio, a rotina desses personagens confronta-se com os mistérios da natureza. Apesar da presença da morte, há algo de pulsante ali, seja no ruído insistente que o vento provoca, seja na respiração gutural do mar. E também nos corpos jovens que seguem no fluxo da pulsão e do destino incerto.

2 comentários:

Wallace Andrioli Guedes disse...

Cara, concordo plenamente com seu texto. Fui vendo o filme e pensando: "putz, mais um filme contemplativo!"... rsrs. Mas a inserção desses elementos dão um outro ar à coisa toda.

Rafael Carvalho disse...

É justo isso o que torna o filme tão peculiar, Wallace. Pessoal de Pernambuco é perspicaz.