sexta-feira, 3 de junho de 2011

Solene mistério

Estrada Perdida (Lost Highway, EUA/França, 1997)
Dir: David Lynch


Num sentido muito prático para mim, as experiências sensoriais de um filme de David Lynch devem se sobrepor às explicações lógicas de suas histórias, embora a busca por essas chaves de interpretação são sempre bem-vindas. Nesse sentido, Estrada Perdida parece se destacar um ponto a mais na filmografia do cineasta pelo extremo rigor com que ele lida com os elementos fílmicos, alcançando resultados intensos sempre em prol do bizarro e do misterioso.

Fred Madison (Bill Pulman, no provável melhor papel de sua carreira) é um músico, vive com a bela e misteriosa Renée (Patricia Arquette) e recebe em casa uma fita de vídeo que mostra ele e a esposa dormindo em seu quarto; eles não fazem ideia de quem possa ter filmado aquilo. Mas esse, claro, é apenas um começo para uma trama repleta de mistérios e reviravoltas.

Mas fica evidente o desconforto da pessoa de Fred mesmo antes do incidente, como se ele fosse atormentado por alguma coisa que nunca chega a ser explicitado (como muita coisa já que estamos falando de um filme de Lynch). Enquanto isso, Renée surge como uma beldade que parece temer o marido, a pesar de seu jeito femme fatale.

A reviravolta que acontece logo após a um assassinato bastante brutal dá uma reviravolta também na cabeça do espectador, com a narrativa que parte para caminhos bastante tortuosos, e por isso mesmo, sempre surpreendentes naquilo que será o próximo passo dos personagens (principalmente quando o casal parece se transmutar em outras pessoas).

Mas como disse anteriormente, menos importa as razões para tais resoluções, e mais a força das imagens que Lynch cria. Há todo um tom solene no filme que avança a narrativa com bastante placidez (a própria luz do filme parece muito etérea). Nos momentos mais aterrorizantes, isso faz com que a apreensão seja elevada a níveis bem altos, como as aparições do homem baixinho com rosto pálido, em especial numa festa, ou, depois de um pesadelo, quando Fred acorda, olha para a mulher e vê o rosto do mesmo homem pálido no lugar do rosto dela.

Lynch filma tudo isso com muito refinamento, planos muito bem trabalhados, ao mesmo tempo em que transparece simplicidade ao fazer isso, ou pelo menos sem chamar atenção para um certo estilismo. É esse rigor de encenação que tanto chama atenção, em prol de uma narrativa muito marcada pelo sensorial.

Nesse sentido, há um uso espetacular da trilha sonora como reforço para essa atmosfera enigmática. Um exemplo é a já citada cena do encontro de Fred com o sujeito esquisito na festa. Nesse momento, o som diegético da música no local desaparece enquanto eles conversam, dando lugar ao acorde sombrio da trilha que reforça toda a apreensão e terror que emana da cena (com o diálogo sendo algo de assombroso). Além disso, a banda sonora traz algumas músicas bem encaixadas, como David Bowie na abertura como a densa I’m Deranged, ou Marilyn Manson cantando I Put a Spell on You, numa versão punk.

David Lynch nos presenteia com uma obra extremamente instigante, mas, acima de tudo, bastante prazerosa pela forma como manipula os elementos da linguagem fílmica. Determinadas cenas (e dúvidas) ficam com a gente por muito tempo, efeito incontestável para classificar os grandes filmes.

7 comentários:

Amanda Aouad disse...

"menos importa as razões para tais resoluções, e mais a força das imagens que Lynch cria."

Disse tudo. Gosto muito de Estrada Perdida. É claro que a nosso cérebro fica querendo criar conexões da fita, da nova realidade, de qual dos dois é o verdeiro personagem. Mas, o filme é para ser experimentado e não compreendido racionalmente.

Gustavo disse...

Nada a comentar. Concordância total.

Wallace Andrioli Guedes disse...

Curiosamente, comentava ontem com minha namorada sobre esse filme, e disse exatamente isso sobre o cinema do Lynch: que o que realmente importa em seus filmes é essa experiência sensorial, que nos provoca arrepios mesmo quando não conseguimos encaixar o que vemos na tela em algum esquema racional de explicação.
Sobre ESTRADA PERDIDA, olha, desconfio que seja o melhor filme dele...

ANTONIO NAHUD disse...

Um Lynch da melhor qualidade.

O Falcão Maltês

Rafael Carvalho disse...

Exato Amanda, se assemelha a uma brincadeira que nunca chega ao fim porque sempre pensamos em algo diferente no momento de tentar encontrar explicações (racionais) para os fatos. É um grande prazer o filme como um todo.

Gustavo, não é uma maravilha de filme?

Wallace, tenho essa desconfiança também, sei que o filme vai crescendo na minha cabeça a cada dia. E acredito muito que o horror é aquilo que o Lynch melhor sabe administrar, com resultados muito satisfatórios (e tenebrosos), sem precisar se ancorar em plausibilidades.

Antonio, quem sabe O melhor? Tá quase chegando lá em minha mente.

Alex Gonçalves disse...

Eu disse que este filme é espetacular!

Infelizmente, ele foi concebido em uma época onde as pessoas não estavam entusiasmadas em encarar um Lynch - bem, problema delas. Mesmo assim, fico feliz pela aura cult que "A Estrada Perdida" tem nos dias de hoje.

É um dos melhores trabalhos de direção de Lynch e, ao contrário de "Império dos Sonhos", há um conteúdo muito rico para ser refletido. Também é muito importante o destaque que você confere à trilha-sonora. Tanto a composição de Angelo Badalamenti quando as canções selecionadas desempenham papéis muito importantes na narrativa.

Rafael Carvalho disse...

De fato, Alex, hoje o filme goza de um respaldo muito grande entre os cinéfilos, inclusive vi muita gente considerando-o o melhor do Lynch, coisa que cada vez mais toma minha consciência também. Acho que a música nos filmes do Lynch tem um papel fundamental, mas essa me saltou aos ouvidos não só por ser misteriosamente bonita, mas por ter uma função dramática muito acentuada na narrativa.