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segunda-feira, 1 de outubro de 2018
domingo, 6 de maio de 2018
A Cidade do Futuro (2016)
Serra
do Ramalho é uma cidade do interior baiano criado pelo regime militar para
abrigar as famílias que foram realocadas de suas terras por conta da criação da
barragem de Sobradinho, no norte do Estado. É ali que os jovens Milla, Gilmar e
Igor vão formar uma família que curtocircuita certos protótipos instituídos
socialmente. Há nessa proposição de A Cidade do Futuro duas
dimensões políticas que se entrecruzam: a vida das famílias marcada pelo
peculiar passado de formação da cidade; e a força afetiva que une o trio
protagonista na criação de laços familiares inusitados.
Há,
portanto, uma política dos afetos a confrontar toda uma política social enraizada
no interior do sertão. Mesmo com suas repreensões e modos de direcionar
costumes e comportamentos, tais aspectos não impedem que novas configurações familiares floresçam como ordem natural das coisas. Faz muito sentido que seja exatamente num lugar como esse que o tipo de luta travada pelos personagens ganhe
lugar, como modo de apontar uma ruptura impensável ali justo quando as circunstâncias são as mais adversas.
Gilmar
e Milla são professores de uma escola secundária, grandes amigos. Ele mantém
uma relação escondida com o jovem Igor enquanto ela troca carícias com uma
menina, embora não esconda seu desejo por meninos também. Ao aparecer grávida,
aparentemente de Gilmar, Milla oferece uma oportunidade para que os três sigam
juntos um caminho de companheirismo e fortalecimento de um laço familiar
incomum, não sem antes sofrem todo tipo de represálias conservadoras por parte
dos moradores locais, as famílias de cada um inclusas.
É
certo que tais caminhos surgem no filme sem grande planejamento. A própria
consolidação desse formato de convivência será alinhada pelos personagens aos
poucos, no decorrer da narrativa, não sem as dúvidas e incertezas, também em
confronto com os valores locais de um lugar onde os preconceitos são sempre
intensificados, enraizados, e com poucas possibilidades de diálogo entre as
pessoas. Além disso, é muito interessante presenciar o manejo de uma
realidade sertaneja isenta dos clichês que esse espaço geográfico costumeiramente
recebe quando representado em tela (nem tudo é seca, pobreza e fome; tem balada, piscina e videogame no
sertão baiano).
Como
narrativa, A Cidade do Futuro é mesmo um tanto direto, mais
elíptico do que lacunar, o que por vezes o torna inconstante. O enredo desenha
um caminho que parece natural e coeso no percurso dos personagens, esse já
tortuoso por si só por conta das escolhas que fazem. Mesmo assim, o filme não
se priva de certos atropelos, como a inclusão das entrevistas com pessoas que
relatam a experiência de expulsão de Sobradinho, sendo o tom documental já tão
presente durante toda a projeção, reiterando uma experiência histórica já
dimensionada antes.
Entre
um arco dramático bem desenhado e a necessidade de não parecer nunca
calculado, A Cidade do Futuro talvez careça de maior força da
surpresa, da pulsão pelas consequências que as atitudes dos personagens
provocam, ou mesmo na vitalidade jovial que existe em Depois da Chuva,
sendo este novo filme tão combativo enquanto proposta que exige postura
afirmativa. É como se o filme estivesse sempre pronto para arriscar, mas se
detivesse a todo instante.
Há
no jogo de encenação de Cláudio e Marília uma concepção muito clara e segura de
tempo narrativo. O timming das cenas nunca é apressado e existe mesmo uma
atenção que a câmera detém nos atores antes ou depois de uma fala ou ação. É como
se o filme perseguisse um sentimento interior dos personagens ao captá-los
nesses momentos de introspecção, na iminência da ação. Apesar disso, falta aos
atores responder melhor a essa abordagem, a esse namoro com a câmera, o que acaba
emperrando também o ritmo do filme.
Há
algo como um entrave ali, uma barreira que não impede o filme de manter uma
coesão estética, mas não o permite se entregar mais. Isso encontra eco nas
atuações um tanto travadas do elenco, algo que os diretores moldaram tão bem no
já citado longa anterior. Talvez o fato dos atores refletirem na tela sua
própria trajetória de vida, ao mesmo tempo em que formatam uma ficção, tenha inibido
uma entrega maior, como que criando um espaço intermediário de representação entre
o naturalismo e o amadorismo. Na tentativa de encontrar seu lugar de
afirmação, A Cidade do Futuro concentra-se no rompimento
social, sem que venha acompanhado de um salto formal.
A Cidade do
Futuro
(Idem, Brasil, 2016)
Direção:
Cláudio Marques e Marília Hughes
Roteiro:
Cláudio Marques
sexta-feira, 6 de abril de 2018
TROPYKAOS (2015)
TROPYKAOS, escrito assim mesmo em
caixa alta e com caracteres que remetem a uma proposta cinemanovista-tropicalista,
antes mesmo de indicar uma maior predileção por certa marginalidade do cinema
brasileiro, mais no espírito do que no resultado final em tela, parece guardar
um grito na garganta. Quem o solta é o diretor baiano Daniel Lisboa, nesse seu
primeiro longa-metragem, com direito a excessos, para o bem e para o mal.
É como
se o título traduzisse uma atitude de ímpeto diante de certos desconfortos do
mundo atual, muito pertinente também à força bruta que o filme quer transmitir,
embora nem sempre seja feliz nesse sentido. Mesmo assim, trata-se de um
trabalho de realização realmente pulsante, com muita vontade de se jogar em
questões muito particulares, ainda que para isso sacrifique certa cadência
narrativa em prol de uma atmosfera de inquietação constante.
Trata-se
de um conto com algo de fabular, ainda que calcado na realidade de uma Salvador
presente como urbes caótica, lugar capaz de provocar inquietações e anseios – o
Centro Histórico da cidade funcionando como espaço quase underground num
universo de paranoias que ali se instala. TROPYKAOS tenta dar
conta da dimensão mental e física de Guima (Gabriel Pardal), um homem
atormentado pelo sol causticante da soterópolis baiana. Fotossensibilidade e
calor intenso perseguem o personagem que, numa tentativa de fuga, quase se
enclausura em casa e nas próprias experiências com drogas.
Porém,
a vontade impetuosa de registrar e construir esse universo no qual Guima está
inserido, ou antes aprisionado, acaba limitando o filme às próprias cercanias
que cria para si mesmo. O início contém umas das melhores cenas do longa:
Guima, andando angustiado pela rua, não suporta o calor e enfia a cabeça na
caixa de isopor com gelo e água de um vendedor ambulante. É nesse início também
que, conversando com uma médica, ele a explica sua condição de impossibilidade
diante da superpotência solar. É certo que o filme entrega de bandeja, desde
já, uma constatação que esse personagem já tem sobre si mesmo.
É
então que TROPYKAOS passa a girar em torno de um mesmo eixo
que consiste em martelar a mesma incapacidade de Guima em conviver com o calor
insuportável e suas tentativas de se aliviar sempre que pode. O apreço especial
pelo sonhado ar condicionado é mais do que compreensível. É aqui também que o
filme soa muito confortável e descolado, e mesmo orgulhoso, em poder falar de
“raios ultraviolentos”, de “ar condicionado craniano” ou de Guima não estar
“geneticamente preparado para viver nessa cidade”. A frase nem é feliz pela
conotação de perigos racistas que possa carregar, mas tudo isso funciona mais
como efeito de discurso do que como problemática trabalhada no filme.
No
entanto, é também essa entrega de cabeça que acaba revelando momentos de pulsão
que fazem a história soltar aos olhos. A cena do bar, caricata na postura mesmo
de seus personagens, termina de forma reveladora – a poesia como outra
ferramenta, ou arma, de compreensão de um estado de espírito atribulado –,
assim como também termina de modo surpreendente certa cena de sexo. Situações
como a da explosão do caixa eletrônico e mesmo as cenas surreais na
igreja-seita, capitaneada por figuras tão esdrúxulas, parecem demonstrar ali a
sobreposição de uma letargia narrativa, apesar de carecerem de uma continuidade
que nem sempre tem a mesma força de tom. Ainda assim, é aí que o filme revela
suas maiores forças de imagem e atmosfera, de cinema.
Não é
com uma textura de imagem mais suja e uma verve mais porralouca que Lisboa se
aproxima de um teor marginal enquanto estética. Isso por conta mesmo da
presença de uma fotografia mais que solar de Pedro Urano, além do nível
caprichado de produção como um todo. Mas é na aproximação com certo espírito da
geração superoitista baiana, explicitamente referenciada nas presenças de
Edgard Navarro e Bertrand Duarte, que o filme alcança essas alusões e
tornam-nas como parte integrante dessa história de inquietações e intrigas
interiores – ainda que uma dimensão social não seja relegada a segundo plano,
pois ela também não ajuda a limitar e combater essas aflições.
TROPYKAOS se sai melhor como realização
quando se permite certas pirações que fazem total sentido dentro da proposta
simbólica do filme. É o mal dos trópicos,
que enlouquece, ilumina e aquece, ainda que mais pela força de seus atos
enquanto modo de coação do que como tentativa de mudar alguma coisa no mundo
concreto. Mais até para que se aceite consigo mesmo a essência do caos.
TROPYKAOS (Idem, Brasil, 2015)
Direção:
Daniel Lisboa
Roteiro:
Daniel Lisboa
sexta-feira, 19 de janeiro de 2018
21ª Mostra de Cinema de Tiradentes
E lá parto eu para as belas Minas Gerais, sempre acolhedoras, rumo a mais uma Mostra Tiradentes, a minha quarta edição consecutiva. Dessa vez, porém, o desafio é maior: chego como júri oficial da Mostra, responsabilidade grande e delicada, dada a importância da Mostra hoje no cenário nacional.
O
evento abre o calendário de mostras e festivais no Brasil e tem sua programação
de filmes e debates voltado para o cinema brasileiro. É mesmo incrível como a Mostra
construiu e consolidou ao longo dos anos um olhar muito arguto e abrangente para
certo cinema brasileiro que, em certa medida, passa ao largo da mídia e das
salas comerciais.
O
longa baiano Café com Canela, de
Glenda Nicácio e Ary Rosa – eles que são mineiros de nascimento, uai, mas
baianos de coração – abre os trabalhos nesta sexta à noite. A exibição do filme
é parte ainda da homenagem ao ator carioca Babu Santana, quase 20 anos de carreira
que se celebra em Tiradentes com exibição de outros de seus trabalhos.
“Chamado
realista” é a temática eleita para se discutir e reverberar durante esses dias
de convívio intenso com o cinema brasileiro – nós que sempre tivemos uma propensão
muito grande ao realismo no cinema, para além do que esse termo pode significar
e representar e ser ampliado nas discussões. Haverá ainda uma mostra paralela
com o mesmo nome a fim de repensar o tema, como a presença do curta baiano Mamata, de Marcus Curvelo.
E
há muita coisa espalhada pela programação da Mostra que vai até o sábado, 27. A
programação completa do evento pode ser acessada no site oficial. Quem venham
os filmes, pois.
Embebido de
Recôncavo
Curioso
pensar que um filme como Café com Canela, tão embebido de Recôncavo baiano, é
dirigido por essa dupla nascida aqui mesmo, em Minas. Egressos do Curso de
Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo (UFRB), Glenda e Ary
estudaram e não saíram de lá. Fundaram ali uma produtora, e Café com Canela é o
primeiro longa fruto dessa parceria. Como caminho dos mais naturais, o filme reflete
a cultura e o cotidiano do interior baiano, tão marcados por traços de
ancestralidade que rodeiam cidades como Cachoeira, São Félix e Muritiba.
Acompanhamos
a história de duas mulheres marcadas pelo luto. Margarida (vivida pela atriz do
Bando de Teatro Olodum, Valdinéia Soriano, melhor atriz no Festival de Brasília)
vive reclusa em casa mesmo depois de passado tanto tempo da morte de seu filho
pequeno; já Violeta (Aline Brunne, em seu primeiro trabalho como atriz) mora
com o marido e dois filhos, cuida da avó adoentada e batalha para vender de
porta em portas as coxinhas que ela mesma faz.
Demora
um tempo até que essas personagens se encontrem na trama linear do filme, tempo
aproveitado para se construir na tela um espírito de convivência interiorana,
um universo muito peculiar daquele lugar, além de apresentar outros
personagens, como o médico Ivan (Babu Santana) que vive com um companheiro mais
velho que ele (Antônio Fábio); e também a extrovertida Cidão (Arlete Dias), um
dos alívios cômicos do filme.
Mas
é quando Violeta e Margarida se encontram, por acaso, e descobrem que a mais
nova foi aluna de Margarida no colégio, o longa ganha outra cadência. Violeta
enxerga na dor do luto de Margarida uma barreira a ser quebrada, um modo de
libertação necessário, tarefa que ela toma para si com afinco. Nasce uma
amizade e com ela uma celebração da vida, com todos os seus percalços.
É
muito curioso olhar para um filme de pequeno porte como esse, em termos de
produção, apostando no risco da entrega a uma história que vende afetuosidade,
mais que tudo – algo que poderia estar desgastado no cinema brasileiro
contemporâneo, mas que encontra potência ainda aqui. Há pontos de fragilidade
visíveis na narrativa: os diálogos por vezes marcados demais, tangenciando
certo suingue caricato da prosódia baiana, a se escorar em falas comuns ou
marcadas de ingenuidade – como na cena do diálogo sobre o cinema ou o do “brinde
à vida”.
Em
outros casos, as opções de encenação apontam para vícios de diretores
iniciantes, como a divisão da tela em espacialidades diferentes, as cenas
iniciais que são, na verdade, tomadas do fim da história, ou um plano subjetivo
de um cachorro que surge inesperadamente em momento de maior emoção.
Existe,
no entanto, nessas escolhas, um ímpeto de dar a cara a tapa e de não se acanhar
perante tais procedimentos quando eles parecem mesmo sinceros, o que poderia
ser visto também como exigências por um cinema formalmente moldado nos ditames
clássicos padronizados. O filme prefere abraçar um romantismo naïf porque o
sentido do gesto narrativo está a serviço daquilo que a história representa, mais
uma vez, o lugar da afeição e da cumplicidade entre os personagens.
Glenda
já disse que o filme fala de “personagens urgentes, carregando consigo vozes
ancestrais que ainda aguardam seu momento de falar. Ou melhor, aguardavam,
porque agora é hora”. E o que se vê em tela é a potencialidade de sujeitos e
histórias há muito marginalizados no processo de constituição do cinema
brasileiro. É o cinema do Recôncavo baiano pulsando e apontando para caminhos
diversos, de contestação via afetos, ainda que o filme bambeie sobre suas
próprias limitações, mas equilibrando suas forças de mobilização.
sábado, 6 de janeiro de 2018
Melhores e piores de 2017
Fechamos
mais um ano cinematográfico tendo muitos bons filmes para festejar. Em 2017 também
fui a muitos festivais e tivemos um cardápio variado e, mais uma vez, rico de
produções contemporâneas. Não dá pra reclamar. Dos filmes que estrearam no
Brasil comercialmente, vi exatos 166 títulos. A partir deles, lanço aqui minha
lista de melhores e piores. Sem mais delongas:
1. Bom
Comportamento
Porque
há mesmo uma pureza no gesto de enfrentar a tudo e todos em benefício dos que
amamos.
2. Manchester à
Beira-Mar
Porque
mesmos os pequenos passos dados adiante significam muito.
3. A Cidade Onde
Envelheço
Porque
importante é onde, em nós, a casa mora.
4. Corra!
Porque
a sana de subjulgar esconde a ânsia de nunca perder os privilégios de classe.
5. Fragmentado
Porque
é sempre possível ver no outro oposto um reflexo de si mesmo.
6. O Ornitólogo
Porque
o corpo é sagrado e profano, e a vida é um calvário.
7. Moonlight: Sob
a Luz do Luar
Porque
os desejos nos definem.
8. Z – A Cidade
Perdida
Porque
as obsessões também nos desenham.
9. Jonas e o
Circo sem Lona
Porque
os filmes têm fim; a vida tem fim e recomeço.
10. Toni Erdmann
Porque
é preciso despir-se do que já fomos.
11. Paterson
12. No Intenso
Agora
13. O Estranho
que Nós Amamos
14. Eu Não Sou
Seu Negro
15. Corpo
Elétrico
16. Star Wars –
Os Últimos Jedi
17. O Filho de
Joseph
18. Martírio
19. Logan
20. John From
No outro lado da
moeda, os piores:
1. Gostosas,
Lindas e Sexies
2. Manifesto
3. Lion
4. mãe!
5. Real – O Plano
por Trás da História
6. Muito
Romântico
7. Boneco de
Neve
8. Rodin
9. A Morte te Dá
Parabéns
10. Cães Selvagens
sexta-feira, 20 de outubro de 2017
41ª Mostra Internacional de Cinema São Paulo
E
cá estou eu em mais uma Mostra Internacional de Cinema São Paulo, minha quinta
vez em terras paulistanas para acompanhar e me embrenhar nesse mundaréu de
filmes. A maratona é louca, mas muito prazerosa.
Este
ano quem assina a identidade visual é o artista chinês Ai Weiwei, que também
abre o evento com a exibição de seu documentário Human Flow – Não Existe Lar
se Não Há para Onde Ir, filme
sobre a questão pulsante dos refugiados no mundo.
Homenagens para os grandes cineastas franceses
Agnès Varda e Paul Vecchiali e ainda para o suíço Alain Tanner, com direito a
retrospectiva de suas obras. Os dois primeiros apresentam também seus filmes
mais recentes.
A
Suíça, aliás, é o país escolhido como foco do evento que recebe na programação
uma diversidade de filmes recentes feitos no país.
Dos
filmes badalados, de cineastas conhecidos, que foram exibidos nos festivais
mais importantes do mundo, passando por aquele filme que poucos têm referência,
de lugares remotos, tem de tudo na Mostra SP. É se jogar nos filmes.
Faço
cobertura para o Jornal A Tarde (matéria de abertura já está no ar) e vou
escrevendo sobre outros títulos aqui. O tempo não para.
sábado, 30 de setembro de 2017
Festival de Brasília – Parte X
Arábia (Idem, Brasil,
2017)
Dir:
Affonso Uchoa e João Dumans
Adirley
Queirós, ao apresentar no festival, um dia antes, seu Era uma Vez Brasília, falou sobre sua descrença na narrativa
convencional e nos modos cada vez mais comuns de contar histórias, incômodo que
fica impresso no seu filme. Trata-se de provocação válida, que encontra
cabimento dentro de sua proposta autoral, conceitual e política do próprio
cinema. Mas eis que no último dia da mostra competitiva chega-nos um filme
como Arábia para reafirmar o poder da
narrativa, da palavra, da ação em subsequência, surpreendendo ainda por
encontrar afeto na vida e pensamento de um operário, personagem facilmente secundarizado.
Dirigido
por Affonso Uchoa e João Dumans, Arábia
trouxe um respiro muito bem-vindo para uma seleção de longas cheia de tropeços
em Brasília, ainda que os filmes suscitassem questões importantes a serem
debatidas – e foram, alguns com mais força que outros. Arábia também toca em questão crucial:
a difícil vida de trabalhadores braçais que passam de emprego em emprego nas
fábricas e regiões operárias, encarnada aqui na trajetória errante de Cristiano (Aristides
Souza). Antes de chegar a ele, o filme começa na Vila Operária de Ouro Preto,
onde um garoto vive com o irmão mais novo. Um dia, ele encontra um caderno
esquecido de um dos operários. Naquelas páginas está o relato em primeira
pessoa de Cristiano, rememorando as voltas que deu e as experiências de uma
vida, suas complexidades e frustrações.
Os
diretores oferecem um olhar muito bucólico para esse personagem e o
universo em que está inserido. Assim como acontece em Café com Canela, o protagonista nunca é visto pela chave do clichê
e do que se espera de um operário (rudeza, pouca inteligência, falta de
criticidade), tipo de estereótipo a que personagens assim estão sendo sempre representados
nas telas e ficções. Cristiano tem sonhos, aspirações, pulsões amorosas, mas
também uma passagem pela cadeia – sua narrativa começa logo após ele
conseguir escapar da prisão – além de outras complicações que virão a seguir no
seu caminho tortuoso – o filme nunca o endeusa. Tudo isso passa pelas projeções
de si que ele perfaz em sua escrita simples, mas repleta de sinceridade.
A
forte base literária do filme preenche a narrativa de uma poesia do mundano, o
que faz de Arábia uma espécie de
crônica da luta constante desse homem na tentativa de se manter de pé, de
seguir em frente tentando se firmar no mundo enquanto este mesmo mundo quer colocá-lo para baixo. Há ali uma poética do proletariado, no sentido de
dar forma a uma veia criadora de subjetividades, um sujeito literário que vemos
nascer para fazer uma autoficção muito particular. Podemos mesmo questionar as
camadas de ficcionalização que existem nessa operação em que o filme nos coloca:
um menino com referências literárias lê a narrativa que um outro desconhecido
escreveu de si próprio e que se transforma na tessitura fílmica.
Porém,
apesar dessas camadas formais, o filme está menos preocupado com a proposição
de uma narrativa que discuta suas nuances, ou seja, com uma metanarrativa
fílmico-literária, e muito mais interessado no substrato moral e íntimo que dê
conta de forjar a identidade do protagonista, através de uma aparente
banalidade de seu cotidiano. É quando o ordinário se torna pulsante, sem abandonar
a cadência naturalista que dita o ritmo do filme. Aristides Souza, ator
não-profissional, dá corpo e voz para esse jovem homem do trabalho, e é
importante destacar essas duas dimensões de sua atuação. Primeiro porque Arábia concentra-se muito no texto em voz
off do próprio Cristiano, dando consistência
aos testemunho de suas aventuras errantes; mas é também muito forte a presença
de Aristides em tela como imagem e semblante do jovem à procura de seu lugar
no mundo.
Aristides já estava lá no longa anterior que Uchoa havia dirigido, o ótimo A Vizinhança do Tigre, documentário que olha
para os jovens de uma periferia de Belo Horizonte muito próximos do crime e da
violência urbana. É curioso pensar que ator e personagem se confundem no novo
filme, espécie de prolongamento ficcional do que seriam os caminhos de oportunidades
a serem perseguidos por alguns daqueles jovens. Agora, junto com Dumans, Uchoa avança
na proposição de dar a ver um espaço de conquistas e subjetividades muitas
vezes negadas a tais personagens, que crescem como pulsão de vida e resistência sob dura realidade.
No
final do filme, depois de passar por muitos empregos e percorrer muito chão,
Cristiano expõe o desejo de explosão da fábrica onde está trabalhando, uma vontade
de libertação catártica que ganha dimensão figurada, mas não menos prenhe de
desejos de fuga de uma estrutura aprisionadora (e esse é um mesmo gesto
simbólico que Adirley Queirós já havia empreendido no memorável final de Branco Sai, Preto Fica, coisa que ele
não conseguiu construir ou avançar em seu último trabalho). Mas se no filme
brasiliense havia ira e vontade de enfrentamento, em Arábia há dissabor pelo tanto de esforço e luta que ainda serão
exigidos desse personagem, enquanto o filme é ainda capaz de buscar
confortá-lo. Não é um equilíbrio fácil de conseguir, mas sempre muito prazeroso
de testemunhar.
Festival de Brasília – Parte IX
Era Uma Vez
Brasília
(Idem, Brasil, 2017)
Dir:
Adirley Queirós
Há
sempre um filme brasiliense na mostra competitiva do Festival de Brasília, o que
muitos chamam de cota. Mas um filme de Adirley Queirós não é cota, está longe
disso. Estaria longe também por ser “um filme da Ceilândia” e não de Brasília,
como gosta de tratar o próprio diretor, fazendo referência à região
administrativa do Distrito Federal onde mora e de onde produz um discurso politizado
e contundente através de suas obras. Claro que há nisso um fator de provocação
inerente ao cinema de Adirley como forma de entendimento do seu lugar de fala e
também com a finalidade de tensionar noções como a de espaço e mobilidade civil na região do
Distrito Federal.
Era uma Vez
Brasília
talvez esteja imbuído, em certa medida, desse propósito de pensar um espaço onde determinados sujeitos estão inseridos e, dessa vez, meio que aprisionados,
estanques, pelas confluências políticas do país e o estado de crise política
atual que compartilhamos. Mas quando o longa se bastar somente ao retrato desta situação, o
filme empaca, inexplicavelmente, no meio do caminho. Causou certo mal estar a
sessão no festival, certamente por conta das altas expectativas e interesse que o
trabalho de Adirley provoca em um público mais atento ao cinema independente, mas também por toda uma incompletude que o filme desvela
porque constrói uma preparação de forças, uma concentração de energia, que
nunca se liberta de todo, nunca se torna (re)ação, nunca ganha corpo e explode. Permanece engasgada com a gente.
O
ponto de partida é genial: conta a história do agente intergaláctico WA4
(Wellington Abreu) que recebe a missão de assassinar o presidente Juscelino
Kubitschek no dia da inauguração de Brasília. Por algum erro, acaba aportando
nos dias atuais, em Ceilândia, logo após o golpe que destituiu Dilma Roussef da
presidência da República. Enquanto ele não chega, acompanhamos as interações
entre dois remanescentes desse mundo aparentemente distópico e esvaziado que é
a Brasília da Era Temer – a sinopse também anuncia: “Este é um documentário
gravado no ano 0 P.G. (Pós Golpe), no Distrito Federal e região”. Andreia (Andreia
Vieira) e Marquim discutem sua realidade e a necessidade de tomada de posição.
Assim
como no filme anterior de Adirley, Branco
Sai, Preto Fica – que inclusive venceu o Festival de Brasília em 2014 –, o
novo trabalho do diretor utiliza as marcas do cinema de ficção científica para
dimensionar uma atmosfera pós-apocalíptica a fim de fazer um retrato paródico,
de fortes cores politizadas, do que se vive hoje em termos de arbitrariedade no
Brasil. Também serve como representativo do lugar de deslocamento das periferias em relação aos centros
de poder, algo que Ceilândia exemplifica muito bem em meio a toda a situação de
crise e caos político que acompanhamos dia a dia, estarrecidos.
Adirley
considera seu filme um documentário, apesar das fortes marcas de fabulação, talvez
por reproduzir, a seu modo, um sentimento atual de desânimo e desamparo frente
às crises e encaminhamentos políticos do Brasil de hoje. O filme tem a
consciência de construir algo desestabilizador como narrativa e proposta de
ação política, jogando a responsabilidade para o espectador. É clara a
proposição do realizador em criar um espaço de deslocamento, de estranheza, via
marcas do sci-fi, mas especialmente
através da cadência do tempo estendido e das ações inconclusas, fincadas no
plano das ideias e sugestões. Ao mesmo tempo, tal postura pode ser vista também
como incapacidade de construir algo para além de “denúncia” de certa inércia. Ainda
mais se pensarmos em Era uma Vez Brasília
como um claro prolongamento conceitual de seu petardo anterior, um filme muito
mais ativo e mesmo explosivo como posicionamento declarado, e que não precisava
esquivar-se da ação.
Das
muitas cenas emblemáticas do filme – o churrasco na nave, o pouso, a preparação
na arena de luta – há uma em que Marquim mira com sua arma em direção ao
Congresso Nacional, distante no horizonte, e finge atirar no lugar, ação sem
efeito prático. Adirley, que já explodiu o Congresso no filme anterior, não
quer repetir o gesto, até porque o compasso do novo filme é outro, subentende
outra postura – diferente da anterior por ser agora da ordem da ilustração (como
uma observação do que acontece hoje no país, essa inércia absurda), quando
antes era da ordem da proposição (mesmo que simbolicamente, era uma chamada à ação).
Mas
é a força do tempo que incide sobre o novo filme a responsável por uma mudança
de humores e disposições. O gesto de distensão do tempo, da tensão e do sentimento
de angústia, ao não ganhar corpo e atitude, é o que faz de Era uma Vez Brasília um filme estranhamente conformado já que sua
composição narrativa, posta em atitude de inoperância desde o início, não consegue
fugir de um duvidoso movimento circular que corre o risco de não ter fim e se
encerrar em si mesmo.
quinta-feira, 28 de setembro de 2017
Festival de Brasília – Parte VIII
Por Trás da
Linha de Escudos
(Idem, Brasil, 2017)
Dir:
de Marcelo Pedroso
Por Trás da
Linha de Escudos,
de Marcelo Pedroso, é mais um filme exibido no Festival de Brasília a
compartilhar certa dificuldade de lidar com situações de diálogo com o “outro
lado”, barreira que tem se intensificado nos tempos sombrios atuais, provocando
nas pessoas tal incapacidade dialógica, especialmente na esquerda brasileira e
sua inabilidade de ação. Ou, no caso do diretor aqui, de movimento em falso,
ainda que a partir de boas intenções.
Pedroso
adentra o Batalhão de Choque da polícia militar de Pernambuco para conversar e entender
esses profissionais e seu modo de pensamento – em suas falas, o diretor posiciona-se
claramente como um militante de esquerda. O Choque é uma
unidade policial de elite responsável por conter e controlar as manifestações constitucionais
com mais peso e virulência – seu lema é “vencer sempre”. O filme já havia sido
apresentado na Bahia na programação do CachoeiraDoc. Em Brasília, as mesmas
questões suscitadas antes voltaram agora em dimensão maior. Pedroso fez um
filme com o intuito de se aproximar do inimigo, de entender o outro, mas
fracassa visivelmente e se enrola em um emaranhado de equívocos e proposições a
que o filme se lança, mas não consegue sustentar.
O
diretor se coloca como personagem do filme – e por vezes como homem em crise, a
partir de encenações de si mesmo para a câmera – enquanto busca interagir e
conversar com alguns membros do Choque, assumindo um lugar de permissão para se
trafegar e interagir naquele espaço. No entanto, rompendo certa expectativa, o
diretor evita qualquer tipo de questionamento mais incisivo para aquelas
pessoas das quais ele conquista certa proximidade. E se Pedroso assume uma
postura não combativa, até por ter sido “acolhido” na “casa do inimigo”, ele
acaba tornando-se sujeito passivo diante da possibilidade de troca que surge
ali entre lados antes antagônicos. É certo ainda que essa dimensão polarizada é
desnivelada pela própria incapacidade do cineasta em reverter a situação ou,
antes disso, de se colocar nas discussões a partir dos seus princípios, mesmo que não sejam
compartilhados por aquelas outras pessoas.
Isso
porque as coisas se põem, no início do filme, de modo muito claro para todos ali. Numa
das primeiras cenas, Pedroso conversa sobre as manifestações no
contexto do movimento Ocupe Estelita e diz que ele participou das ações; pergunta ao
policial se ele reconhece alguém da equipe do filme que estava lá e a resposta
é positiva. As cartas estão na mesa, nada precisa ser falseado ou omitido – ou
pelo menos é o que o filme talvez prometa nessa sequência. Mas em seguida o que
presenciamos abobados é o acanhamento em levar adiante tal clareza de posições,
a partir da chance de ouro que o cineasta conquista de se tornar um pouco mais
próximo daquelas pessoas e daquele universo peculiar, cheio de nuances e complexidades
– as conversas com a cabo Talita, por exemplo, são riquíssimas e muito
reveladoras do que o Choque pode representar para eles, e ela fala com muita
sinceridade sobre os sentimentos que seu ofício lhe provoca; mas quando Pedroso
tenta ir mais fundo e questioná-la, ela rapidamente vira o jogo, devolve a
pergunta e é Pedroso quem se vê confrontado na cena.
Aliás,
é possível passar o filme todo esperando que Pedroso faça uma única pergunta a
algum dos policias: por que vocês atiram spray de pimenta em alguém que está
parado e sentado no chão? – cena de fato ocorrida nos embates do Ocupe Estelita e que é mostrada no filme. Mas esse questionamento nunca chega. Ao contrário,
o cineasta participa de experiências de treinamento junto com o batalhão em
provas de resistência a gás lacrimogêneo, pega em arma para atirar em um alvo e
ainda promove uma sessão de ioga com outros policiais. Há nisso um gesto de
aproximação, mas também de total falta de tato por aquilo que representam como
imagens dóceis e amansadas, enquanto o que está em jogo é a violência e a
truculência desproporcionais da polícia quando se deparam com os manifestantes
nas ruas. Há algo de estranho nisso tudo, porém o filme não parece
desconfortável com isso, ou pelo menos não leva tal desconforto adiante a fim
de aprofundar os dilemas que se põem ali.
Daí
que o filme se dirige cada vez mais para o discurso simplista da humanização
dos policiais, do entendimento de uma estrutura política maior que rege o
trabalho daqueles sujeitos, da condição do trabalhador que recebe ordens
verticais, quando não apostando em alegorias e performances infantis e ingênuas
– usando, mais uma vez a bandeira nacional, como ele já havia feito em Brasil S/A. E isso nada
mais é do que reforçar um discurso oficial que se blinda o tempo todo de
responsabilidades duras pelas ações violentas em que o Choque age e das quais somos
testemunhas em muitos exemplos que nos chegaram aos olhos ultimamente. Daí que
se pergunta: o que o filme ganha com essa escolha? Mais do que um espaço de
neutralidade, Por Trás da Linha de
Escudos acaba sendo desfavorável para o realizador, para seu ponto de
vista, para sua proposta na medida em que os policias acabam dobrando o
cineasta na frente da câmera.
Poucos
dias antes, no Festival de Brasília, Construindo
Pontes, outro filme produzido a partir de um encontro de lados antagônicos,
uma filha e um pai, sendo ela a própria diretora do filme, Heloísa Passos, apresentou
essa mesma dificuldade. Enquanto o pai defendia calmamente o projeto político
dos militares durante a Ditadura, Heloísa não conseguia estabelecer um diálogo
de contraposição que não fosse calcado na ira e na destemperança. Refugia-se,
ao fim, no afeto – afinal não se pode esquecer que aquele é seu pai – para
terminar o filme de modo aparentemente apaziguador. Não há de se negar a
coragem de Pedroso em apostar em tal empreendimento de encontro. Mas se os
movimentos que Por Trás da Linha de
Escudos parece querer promover são todos castrados, vemos o filme andar para
trás e não adiante.
Festival de Brasília – Parte VII
O Nó do Diabo (Idem, Brasil,
2017)
Dir:
Ramon Porto Mota, Gabriel Martins, Ian Abé e Jhésus Tribuzi
O
filme é episódico, mas mais do que buscar uma unidade entre os segmentos, O Nó do Diabo quer contar uma mesma
história, pretensiosamente a história da incorporação da população negra no
cenário sociopolítico brasileiro através dos tempos. São cinco partes, a
começar num futuro super próximo (2018) e que vai regredindo a tempos de
outrora. Fora isso, é moldado a partir de um mergulho profundo nos gêneros de
horror, trash e gore e que ajudam a formar
também essa unidade em termos de conceito e construção estética.
Não
deixa de ser corajoso e desafiante que o filme se proponha a fazer tal estudo
social via marcas de gênero que tanto têm servido para espelhar as mazelas e
todo tipo de arbitrariedades políticas em sociedades no mundo todo. Na verdade,
é importante se questionar: o filme parte do horror para fazer crítica social
ou o inverso? O que veria primeiro nas intencionalidades do grupo de quatro
realizadores que se juntaram para articular e produzir esse corpo estranho da
filmografia brasileira? Sim, porque existe um claro trabalho em conjunto senão
na direção dos segmentos, na concepção dos roteiros de cada parte que são,
geralmente, assinados por mais de uma pessoa – às vezes pelos quatro juntos.
Também
vale destacar que, de certo modo, os diretores paraibanos Ramon Porto Mota, Ian
Abé e Jhésus Tribuzi encabeçam o projeto por serem eles mais próximos e
visivelmente apaixonados pelo cinema de horror, sendo o filme feito no seio da
produtora que eles fundaram em sociedade, a Vermelho Profundo. O mineiro
Gabriel Martins foi convidado a entrar no time. Curiosa essa escolha que, a
despeito das proximidades e amizades entre eles, chama
atenção por Gabriel ser o único negro dentre os realizadores, e sem um
histórico de produção no cinema que caminhasse por esse gênero – e mais
curioso ainda é poder afirmar que o segmento que ele dirige é mesmo o melhor dos cinco.
Parece-nos
importante fazer tais considerações porque O
Nó do Diabo é claramente um filme que busca pensar a figura do sujeito
negro a partir de um ponto de vista pouco usual: são protagonistas em quase
todos os episódios, sujeitos e não mais objetos das ações dos costumeiros
personagens brancos. É como se o filme buscasse contar a história da escravidão
no Brasil e suas perceptíveis consequências sociais enraizadas na sociedade
atual partindo do olhar e dos dilemas desses personagens, geralmente usados
como coadjuvantes em outras narrativas – algo que inevitavelmente tomou conta
do fenômeno de discussão sobre o tema a partir dos debates em torno de certos
filmes no Festival de Brasília (sim, estou falando de Vazante e Café com Canela).
Porém, se
o gesto de colocar em cena esse viés da história é algo a ser louvado, o filme não
está isento de outros enviesamentos que lhe são consequentes. A utilização do
horror acaba reforçando, via marcas do gênero, um imaginário de dor e
sofrimento a que o corpo negro é sujeitado há muito tempo. Nesse sentido, o
filme parece partir do terror para se chegar a essa discussão social, mas
estando o gênero à frente de tudo; ele é quem rege os movimentos e passos que o
filme segue ao redor das micro-histórias que conta e de um macrocosmo que busca
atingir.
Ora,
o terceiro episódio do filme – que se passa em 1921 –, por exemplo, dirigido
por Ian Abé, traz duas irmãs que ainda são tratadas como escravas na
fazendo de um rico proprietário – de sobrenome Vieira, presente em todos os
segmentos e sempre interpretado pelo mesmo ator, o ótimo Fernando Teixeira. Ou
mesmo a parte dirigida por Martins (que se passa em 1987) coloca o casal de
protagonista em uma situação de coação, violência e degeneração do corpo quando
eles pedem emprego numa estranha casa rural em meio a um engenho decadente onde os senhores e a própria casa começam a persegui-los e maltratá-los,
invocando uma força maligna que emana de sua essência. Não se trata aqui de esconder
a força da violência, de negá-la ou negligenciá-la como dado histórico mesmo, mas de sempre voltar a ela
como subterfúgio imprescindível para falar desses sujeitos, de suas vivências e
passagem pela História do Brasil.
Os
diretores e roteiristas precisam explorar a figura da dor e do sofrimento
do corpo negro, potencializados agora pelas marcas e “exigências” do filme de
terror trash e gore a que o filme se filia. Daí que pensar as mazelas sociais que
a escravidão deixou como herança maldita começa a parecer, no filme, um mero
capricho, tal qual um bônus, a partir do momento em que o filme se mostra muito
encantado pelo próprio fetiche de se estar fazendo cinema de gênero no Brasil –
algo que vem crescendo a partir de outras experiências parecidas e
bem-sucedidas, como o trabalho de Rodrigo Aragão e sua trilogia trash total (Mangue Negro, A Noite do Chupa-Cabras
e Mar Negro), ou de filmes como O Diabo Mora Aqui, de Dante Vescio e Rodrigo
Gasparini. O Nó do Diabo pode claramente ser posto ao lado dessas produções em
termos conceituais, mas na tentativa de dar um passo adiante, acaba se enrolando
e correndo o risco de reforça aquilo que pretendia denunciar.
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