segunda-feira, 29 de junho de 2009

Mais curtinhas

Procedimento Operacional Padrão (Standart Operating Procedure, EUA, 2008)
Dir: Errol Morris


Primeiro documentário a ser incluído na competição do Festival de Berlin, em 2008, Procedimento Operacional Padrão (vencedor do Grande Prêmio do Júri) se concentra nas barbaridades que o exército norte-americano praticava com detentos da prisão iraquiana de Abu Ghraib, durante a Guerra do Iraque. Os fatos vieram à tona por conta das absurdas fotos de tortura e humilhação que foram divulgadas pela mídia, escandalizando o mundo e denegrindo de vez a imagem das Forças Armadas dos EUA. O filme faz um apanhado mais amplo da situação e mostra como as fotos (e também as torturas) não se limitaram às mostradas em rede mundial. Interessante notar como a maioria dos depoimentos são dos soldados que tiraram ou participaram das foto e consequentemente foram julgados (com penas bem variadas e nem todas tão justas). Assim, somos apresentados a pontos de vistas que não se eximem da culpa, mas transparecem a crueldade irracional daqueles atos, muito embora não se esconda que a situação era largamente conhecida por todos, inclusive pelas altas patentes militares. Porém, mesmo com um tema de grande relevância, o documentário não passa do convencional e só prende a atenção pelos depoimentos, como os de Lynndie England que acabou se tornando a mais conhecida pelas fotos (ela aparece puxando um prisioneiro pela coleira numa delas). Há algumas pequenas dramatizações no filme, mas nunca soam com ar de artificialidade. Se uma imagem vale mais do que mil palavras, imagina o quanto mais de mil imagens são capazes de dizer.


30 Dias de Noite (30 Days of Night, Nova Zelândia/EUA, 2007)
Dir: David Slade


30 Dias de Noite é um embuste. O roteiro tenta manipular uma atmosfera de terror ao mesmo tempo se esforçando para o espectador não perceber os furos de roteiro deixados pelo caminho. Um deles diz respeito a um ponto central do filme: a passagem do tempo. Em Barrow, no Alasca, durante o inverno, a cidade permanece 30 dias sob total escuridão; num desses períodos, o local vai ser atacado por uma leva de vampiros, sedentos de sangue, forçando as pessoas a se esconderem o máximo possível. Por mais que os vampiros tenham poderes sobre-humanos, a narrativa possui elipses de tempo de 10 dias em que nada acontece, já que os personagens são encontrados na mesma situação. Então, qual o perigo que essas criaturas oferecem? Isso diminui bastante a força dramática do filme que não consegue transmitir um tom de perigo. Eben (Josh Hartnett) é o xerife local que vai tentar enfrentar as criaturas e ainda salvar sua ex-mulher da ameaça mortal. De fato, uma experiência vazia a quem busca bons sustos.


Se Eu Fosse Você 2 (Idem, Brasil, 2008)
Dir: Daniel Filho


O pior em relação a esse filme é que eu até dei umas risadas durante a projeção. Mas quando a gente sai do cinema e põe a mão na consciência, percebe o quanto de descabimento existe numa história que forja o riso o tempo todo, numa repetição do que Daniel Filho já havia feito no filme anterior. Temos aqui a mesma história do casal Helena e Cláudio (Glória Pires e Tony Ramos, bons atores) que troca de corpos. Daí surgem as caricaturas mais óbvias da mulher durona e do homem afeminado, esse último o mais adorado pelo público pois as pessoas ainda conseguem ver graça num homem se comportando como mulher. Mas é aí que o filme revela um erro crasso: Helena, quando ainda estava em seu corpo, não era afeminada como quando passa a ocupar o corpo de Cláudio. Mas isso não parece preocupar os roteiristas porque a graça está nos trejeitos, e quase ninguém percebe isso. O filme precisa disso para arrancar risos escrachantes da plateia. A maior frustração, no entanto, é pensar que esse é o filme brasileiro mais assistido da pós-Retomada. A força do cinema nacional reside nos filmes mais alternativos, tipo de obra que passa longe do grande público.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Curtinhas

Asas do Desejo (Der Himmel Über Berlin, Alemanha Ocidental/França, 1987)
Dir: Win Wenders


Existe uma enorme carga de humanidade na história do anjo que entra em crise existencial e passa a querer viver como um ser humano. Wenders é hábil em ambientar o mundo paralelo dos anjos que vivem como guardiões das almas atormentadas dos homens, vagando pelos cantos e ouvindo seus pensamentos, seus medos e angústias, em meio a uma Berlin dividida pelo pós-Guerra. Damiel (Bruno Ganz) e Cassiel (Otto Sander) são os anjos que guiam a narrativa por entre esse labirinto de divagações, até que Damiel se encanta pela trapezista de circo Marion (Solveig Dommartin). Ao mesmo tempo, ele passa a questionar sua existência: embora seja imortal, é incapaz de sentir emoções próprias dos humanos. O filme então se abre para a valorização dessa capacidade do homem em desfrutar sensações aparentemente tão banais como um esfregar de mãos quando sentimos frio. Nesse sentido, a fotografia é primorosa em apresentar o mundo dos anjos em preto-e-branco, contrastando como o mundo em cores fortes dos humanos. Além disso, o filme nos presenteia com um texto excelente transbordando uma poesia melancólica que é a marca registrada da obra. Se a existência humana é finita, nada se compara à possibilidade de amar e ser correspondido. Nunca foi tão bom ser um anjo decaído.

PS: existe uma continuação para esse filme, dirigido pelo próprio Wenders, chamado Tão Longe, Tão Perto, mas não chega aos pés da sutileza poética desse aqui.

PPS: Cidade dos Anjos é um remake Hollywoodiano descarado e oportunista do filme de Wenders. Deveriam processar os responsáveis pela refilmagem!


A Balada de Narayama (Narayama Bushiko, Japão, 1983)
Dir: Shohei Imamura


A Balada de Narayama pode muito bem ser vista como uma comédia de costumes de uma vila japonesa nos fins do século XIX, mas alcança um patamar adiante ao retratar a fome que assolava a região e as lendas milenares do local. Uma tradição rezava que, ao completar 70 anos de idade, os anciãos deveriam ser abandonados ao alto da montanha Narayama. Orin (Sumiko Sakamoto) é essa senhora que está prestes a completar seu septuagésimo aniversário e precisa deixar tudo às ordens para quando partir, o que significa encontrar uma esposa para seu filho mais novo. A questão da velhice é o ponto central da narrativa que vê os idosos como um sacrifício para suas famílias já que eles não possuem mais força para trabalhar, mas mesmo assim representam mais uma boca para comer. Por mais que isso possa parecer desumano, Imamura evoca o instinto de sobrevivência animal também presente no ser humano para se contrapor às questões morais da nossa sociedade. Engraçado também como ele lida com os instintos sexuais dos habitantes de forma tão despudorada e explícita. Mas são nos momentos finais que o filme mostra a força e persistência das antigas tradições.


Minha Mãe (Ma Mère, França, 2004)
Dir: Christophe Honoré


A primeira estranheza desse filme vem do fato dele ser dirigido por Christophe Honoré, cineasta francês de filmes gostosos como Em Paris e Canções de Amor, de cara contrastando com o tom seco e duro de Minha Mãe. Daí uma outra estranheza: a atmosfera sexualmente pervertida em que uma mãe envolve seu único filho, fruto de um casamento totalmente desestruturado, num jogo de depravação, tendo ela própria (mas não só) como objeto de desejo. Se nos dois filmes anteriores Honoré conseguia tratar com leveza assuntos tão pesados, aqui ele não tem pudores em filmar cenas de alto teor sexual. Embora as imagens sejam bem explícitas, não há como negar que esse é o ambiente em que o filme se arvora, e a narrativa chega a adquirir uma atmosfera de surrealidade diante de cenas tão chocantes. Mas o tom vai se tornando excessivo e repetitivo, quase como se o filme tivesse de ser preenchido por mais cenas pesadas até alcançar seu ato final, o melhor. Isabelle Huppert parece ser a atriz perfeita para papéis sexualmente fortes (vide seu desempenho soberbo em A Professora de Piano). Já Louis Garrel, ótimo ator, surge exemplar ao viver um filho imaturo e cuja carência de afeto vai ser preenchida de outra forma. O filme termina com uma cena impactante que nos faz pensar o quanto uma mãe pode causar donos psicológicos irreversíveis a um filho.

sábado, 20 de junho de 2009

Entre passado e presente

A Fronteira da Alvorada (La Frontière de L’aube, França, 2008)
Dir: Philippe Garrel



O cineasta francês Philippe Garrel faz filmes à moda antiga, como se vivesse na época áurea da Nouvelle Vague. Assim como no anterior e excelente Amantes Constantes, a fotografia em preto-e-branco levemente granulada cria uma atmosfera nostálgica e romântica de um tempo passado. Se em A Fronteira da Alvorada isso possa soar um tanto deslocado no início, a impressão logo é abandonada por conta de uma narrativa simples, mas envolvente, com o toque do fantástico para dar um tom diferencial.

A história é simples: François (Louis Garrel, sempre ele) é um fotógrafo que se vê repentinamente apaixonado pela atriz Carole (Laura Smet, hipnótica). Ele, perdido e cego de paixão, ficará à mercê dela; ela, fatal e dominadora, casada, trará grandes problemas ao envolvimento dos dois.

É muito fácil se apaixonar por Carole, aparentemente tão meiga, mas que se revela perigosa como uma femme fatale (da mesma forma como sua personagem em A Dama de Honra, de Claude Chabrol). O olhar ambíguo de Laura Smet, à lá Capitu, são perfeitos para representar a loira fatal. Garrel, filho do diretor, mais uma vez encarna o jovem romântico, mal antecipando os desdobramentos trágicos da relação.

O estilo direto e seco de Garrel pai pode soar estranho a alguns, mas é daí que surgem muitas das surpresas do filme, sendo a brusquidão seu maior aliado (a cena final, por exemplo, é um choque). Além disso, ele se vale muito mais do não dito, da força de suas imagens, para desenvolver a narrativa.

Com uma trilha sonora carregada, talvez para antecipar momentos de insanidade de ambos os protagonistas, o filme parece preso a um tempo passado quando as pessoas ainda escreviam cartas de amor umas às outras, ou quando ainda se aplicavam eletrochoques nos manicômios. Mas, deslocado ou não, esse é o universo de Garrel, lugar de onde seus personagens parecem ser eternos prisioneiros.

domingo, 14 de junho de 2009

Juventude agridoce

Os Incompreendidos (Les Quatre Cents Coups, França, 1959)
Dir: François Truffaut



A grande marca do filme de estreia de François Truffaut é a leveza com que ele aborda temas tão duros na vida de um adolescente delinqüente. Sendo seu primeiro filme, parece que Truffaut depositou toda sua paixão nos personagens. Não podia ser diferente uma vez que o protagonista é o alterego do próprio cineasta, fazendo do filme um trabalho bastante autobiográfico. E dos mais sinceros.

Antoine Doinel (personagem que vai ser retratado em outros filmes de Truffaut, compondo uma série que acompanhará o desenvolvimento emocional do jovem até a fase adulta) é esse garoto-problema que apronta descaradamente na escola em companhia de um amigo também encrenqueiro. A relação com a família é um tanto conturbada, escondida por uma aparente normalidade.

Ao longo da narrativa, vamos descobrir que ele não é filho legítimo do pai, daí o motivo por que sua mãe o trata tão mal em casa. Numa cena emblemática, Antoine a encontra aos beijos com outro homem, o que logo é esquecido pelos dois. Mesmo o pai vai demonstrar o sacrifício de cuidar de um filho problemático que nem é prole de seu sangue.

Mais do que contar a história desse personagem, o filme procura fazer um retrato sincero de uma juventude poucas vezes mostrada no cinema. Ao mesmo tempo, é um filme direcionado para adultos sobre crianças e adolescente e seus jeito de enxergar as coisas. Porque a moral da adolescência é não se importar com o mundo responsável dos adultos; mas quando um jovem é marcado pela rejeição familiar, a coisa pode se tornar bem mais difícil e a delinqüência é o caminho mais próximo. Truffaut cresceu, mas não se esqueceu das agruras de sua infância.



O cineasta filma tudo com um vigor incrível fazendo as travessuras de Antoine se sucederem sem nunca perder o ritmo. Alia-se a isso um texto gostoso e inteligente que inclui os problemas familiares de Antoine sem peso excessivamente dramático. A fotografia naturalista dá conta de filmar a cidade de Paris, belissimamente, como um espaço de descobertas do protagonista.

Sem uma atuação caricata das crianças, é interessante perceber a naturalidade com que todas elas surgem em cena, quase como uma não-atuação. O protagonista Jean-Pierre Léaud é a mais pura encarnação dessa simplicidade tão verdadeira. Mesmo nas cenas mais densas, como a prisão do garoto e a conversa com um psicólogo no reformatório, Léaud demonstra uma maturidade sem igual e da qual talvez nem tivesse noção à época.

Diferente de outros cineastas da Nouvelle Vague francesa que possuem um tom um tanto mais intelectualizado, Truffaut parece falar com o coração, da forma mais simples e humana possível, traço da excelência de grande parte de sua filmografia. Antes de mais nada, ele é um humanista. Os Incompreendidos é o tipo de filme feito com paixão.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Curtinhas

O Equilibrista (Man on Wire, EUA/Inglaterra, 2008)
Dir: James Marsh


Em 1974 o francês Philippe Petit atravessou as Torres Gêmeas de um topo ao outro sobre um fio de equilíbrio. Sabe por quê? Era sua paixão, sua ocupação de vida. O documentário O Equilibrista, ganhador do Oscar da categoria deste ano, narra como Petit e sua equipe conseguiu entrar clandestinamente no edifício para realizar a façanha que chegou a julgar impossível. O filme então aproveita para nos apresentar esse homem que fazia do perigo seu modo de vida. O próprio Petit é entrevistado no filme e logo transparece sua personalidade irrequieta, expansiva e brincalhona: um artista. A narrativa intercala as etapas de preparação para a travessia com a trajetória do próprio homem e vai apresentando os amigos que o ajudaram. Utiliza-se de fotos de arquivo e vídeos da época, numa colagem bem amarrada por um roteiro centrado e embalado por uma surpreendente e sutil trilha sonora. Por mais que se utilize do clichê atual dos documentários de dramatizar grande parte das ações narradas, os momentos ficcionais não incomodam por não soarem pretensiosos, mas somente demonstrativos. Além disso, são fotografados num preto-e-branco tão belo que nunca chegam a comprometer o resultado final. Por tudo, o filme acaba se tornando uma bela homenagem ao homem e seu destemor em desafiar o perigo em prol da liberdade.


Tony Manero (Idem, Chile/Brasil, 2008)
Dir: Pablo Larrain


Tony Manero é um filme estranhíssimo. No Chile em plena ditadura de Ernesto Pinochet, Raúl Peralta (Alfredo Castro em ótima performance) é um estranho dançarino que idolatra e imita o personagem Tony Manero vivido por John Travolta no clássico dos anos 70 Os Embalos de Sábado à Noite. A fim de aparecer na TV para ganhar um concurso de sósias de seu personagem favorito, ele vai tentar de tudo, inclusive cometendo assassinatos perversos. A partir daí, Raúl surge como um personagem odioso e imprevisível, moralmente deficiente, mas acima de tudo um miserável, que se assemelha a uma classe baixa chilena oprimida pelo regime, mas que nutre um sonho de estrelato próximo ao utópico. Uma pena que em certos momentos o filme se utilize de uma escatologia exagerada e excêntrica. Mas nada que impeça o novato diretor de utilizar com precisão a câmera na mão em prol de uma narrativa orgânica e nunca disposta a entregar respostas fáceis ao espectador. É interessante notar que o grande ícone do filme é justamente um personagem do cinema norte-americano, país que impõe tanto sua cultura como a força bruta que apoia a ditadura. O filme mantém o discurso político nas entrelinhas porque o verdadeiro foco é seu personagem central e seu mundo sujo. O Tony Manero de ambos os filmes são personagens pessimistas e o que os une, a despeito das diferenças sociopolíticas de cada país, não é somente o gosto pela dança, mas seu estado estanque na sociedade.


Rebobine, Por Favor (Be Kind Rewind, EUA, 2008)
Dir: Michel Gondry


Michel Gondry não é o mesmo sem Charlie Kaufman. Depois do excelente Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, ele achou que podia filmar seus devaneios sozinho. O resultado foi uma bagunça danada, o cansativo, ultrafantasioso e afetado Sonhando Acordado, que de tão maluco nem chegou a ser lançado comercialmente no Brasil. Mas eis que uma ideia original resultou num próximo filme agradável: Rebobine, Por Favor é sobre Mike (Mos Def), o atendente de uma vídeo locadora cujo amigo Jerry (Jack Black) desmagnetizou e apagando vários filmes em VHS do local. Os dois então decidem refilmar algumas obras, o que acaba se tornando um sucesso no bairro. A proposta pode soar boba e ingênua, mas o melhor caminho é não levar tudo tão a sério e entrar na brincadeira. O filme exalta o prazer cinéfilo ao relembrar obras de nosso imaginário que vão do pop comercial (O Caça-Fantasmas, Robocop) aos mais cultuados (2001 – Um Odisséia no Espaço), passando pelos oscarizáveis (Conduzindo Miss Daisy), todos suecados da forma mais trash possível. Mas há uma cena no final que celebra todo o amor pelo cinema: a projeção de um filme dentro de uma loja à noite ultrapassa a vitrine e reúne na rua uma grande plateia. É a força do Cinema em agrupar diversas pessoas em torno de uma mesma paixão.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Mãe Rússia

Alexandra (Aleksandra, Rússia, 2008)
Dir: Alexandr Sokurov

Depois da bela experiência de assistir a Arca Russa, filme em um só take, descobrir o cinema de Alexandr Sokurov parece ser uma possibilidade de ver grandes filmes, algo que se comprova pelo último trabalho do cineasta russo, Alexandra. O filme, lançado recentemente no País, pouco chamou a atenção da crítica, mas já pode ser considerado um dos melhores do ano até então.

É a história dessa senhora de idade (Galina Vishnevskaya) que resolve visitar o neto, então capitão de um destacamento do exército russo na Chechênia (área ao sudeste da Rússia que luta pela total independência de seu território). Alexandra se divide em duas frentes bem interessantes: é um filme sobre família, sem os arroubos do sentimentalismo e do acerto de contas, mas é também um filme sobre a guerra, sem nunca se focar nas batalhas.

Mais importa ao cineasta construir um relacionamento de estranhamento daquela personagem deslocada em um ambiente tão duro e masculino como um acampamento militar. Desconheço os motivos por que Galina Vishnevskaya, que vive a personagem-título, tenha sido escalada para esse papel já que é uma lenda da ópera russa. Mas como Alexandra, ele impõe sua presença naquele meio por mais que sua personagem soe tão fragilizada pela idade.

É incrível também como é possível vê-la como uma metáfora da própria Rússia que olha/observa/avalia/se preocupa com toda aquela situação de conflito que nunca se concretiza, mas somente aprisiona os soldados naquele cotidiano. O filme parece discutir a validade de tudo aquilo, da necessidade da guerra, sua importância e, principalmente, das consequências para a vida dos soldados.

Em alguns momentos a personagem cria a impressão de um espectro que espreita e observa, atenta e distanciadamente, a rotina do acampamento, quase como uma mãe carinhosa e responsável por seus filhos. Nesse sentido, a atuação de Vishnevskaya aparece com uma naturalidade expressiva impressionante e transborda todo o senso materno de sua personagem.

Já a relação entre neto e avó, marcada por um carinho aparentemente não presente em todo o seio familiar, pode passar como um pretexto para a visita da avó, mas acaba revelando sua essência de reforçar o amor que existe entre os dois.

A narrativa de Sokurov não possui pressa alguma em se desenvolver, já que o tempo no acampamento militar é lento e pouco produtivo. O filme se delicia em acompanhar Alexandra em seus percursos, inclusive fora da unidade militar, entrando em contato com os chechenos, quando se evidencia mais claramente o choque entre os dois povos. Uma fotografia em tom descolorido, como algo envelhecido e sujo, reforça a impressão de desgaste por toda aquela situação, como algo tão desprovido de força e vida humanas. O tipo de coisa com que Alexandra parece tanto se entristecer e lamentar.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Simplesmente só

Sozinho Contra Todos (Seul Contre Tous, França, 1998)
Dir: Gaspar Noé


Gaspar Noé é aquele cineasta franco-argentino que já deu um choque de 1000 volts no espectador quando cometeu aquele filme excepcional que é Irreversível. Mas antes disso, o mesmo tom perturbador e necessidade em incomodar as pessoas já estavam presentes em seu primeiro longametragem, Sozinho Contra Todos.

O filme é, na verdade, uma continuação de um de seus curtas mais famosos, Carne (vencedor da Palma de Ouro na categoria em Cannes, 1991). A história acompanha um açougueiro de carne de cavalo (Philippe Nahon, excelente ator) depois que ele perde tudo (seu açougue e a guarda da filha adorada) ao tentar matar, por engano, um homem que julgou ser o estuprador de sua filha. Depois da cadeia, ele se casa com a atendente de um bar e a engravida, tendo de ir morar com ela e a sogra. Começa sua busca por um emprego.

A atmosfera carregada do filme provém da inadequação do protagonista no mundo. Sua nova situação de dependente da esposa é um fardo, além do fato de odiá-la e a todos ao redor. A filha era a única por quem nutria carinho, mas o filme não deixa de insinuar uma relação incestuosa entre eles no passado.

A personalidade bruta e arrogante do personagem é um reflexo de uma infância marcada pela perda (o pai era um soldado comunista que engravidou sua mãe, uma prostituta; ela desapareceria do mapa, ele morreria na guerra, deixando-o órfão) e os abusos (sexuais e morais) que sofreu quando jovem, formando assim esse homem completamente amargurado. Não que o filme tente justificar suas ações violentas e descontroladas (e ele é totalmente impetuoso e temperamental), mas foge do maniqueísmo simplista ao revelar essa outra dimensão do personagem.

É um filme sobre solidão que nunca dá respostas fáceis. Mesmo com um protagonista tão desprezível, é nele que a narrativa se agarra para trilhar os caminhos de uma alma aparentemente perdida. É muito fácil para o espectador nutrir um sentimento de desprezo por ele, mas Noé não possui a mesma intenção já que o filme caminha para um final surpreendente que possui algo de positivo na forma como ele tenta resolver sua situação, embora não deixe de apresentar uma moral torta, como não podia deixar de ser tendo em vista toda a personalidade do açougueiro.

O tom em vermelho-sangue, prenunciando Irreversível, continua sendo o aspecto visual mais trabalhado no filme, além de uma edição ágil e dinâmica, embora a câmera aqui prefira os planos estáticos (talvez reflexo da situação de paralisia da vida do personagem). A história traz muito da visão de mundo grotesca de seu protagonista, via narração em off, que revela um mundo sujo e pervertido e sua vontade de matar aqueles que despreza, ou seja, todos.

O açougueiro (sem nome) é, na verdade, um grande solitário, não por opção, mas por força dos acontecimentos de sua vida. Se durante todo o filme ele renega a presença do próximo como algo bom, o ápice da história é quando ele percebe que o ser humano não foi feito para ser só, nem na vida nem na morte. E isso é o que de mais encantador há nos filmes de Noé: por mais duros e pesados que sejam, existe toda uma visão de humanidade por trás.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Chance desperdiçada

Milagre em Sta. Anna (Miracle at Sta. Anna, EUA/Itália, 2008)
Dir: Spike Lee


É bastante estimulante quando um cineasta se mostra tão militante a um tema do qual é tão próximo. Spike Lee é um grande exemplo disso, pois sendo um dos poucos diretores negros norte-americanos, sabe discutir o racismo com propriedade, energia contestadora, conhecimento de causa e também talento cinematográfico. Num país que vive uma segregação racial potente, discutir essa questão é mais complexo do que pode parecer e são filmes como Faça a Coisa Certa, Febre da Selva e Irmãos de Sangue, dentre outros, em que o talento de Lee se mostra bastante evidente.

Mesmo assim, isso nunca foi garantia de sucesso freqüente. Eis que Lee resolve sair do subúrbio norte-americano, dos bairros de maioria negra, para tratar do mesmo racismo. Milagre em Sta. Anna acompanha um destacamento do exército estadunidense, todo composto por soldados negros, defendendo a pátria na Toscana, Itália, em plena Segunda Guerra. Dentre quatros sobreviventes, um deles vai salvar um garoto italiano com o qual passará a manter uma relação de amizade.

Os equívocos do filme vão se sucedendo durante suas quase três horas de duração. De início, a narrativa não parece ter tato para iniciar a história com o assassinato a sangue frio de um homem por um funcionário negro, ex-combatente de guerra, que fica evidente quando, em flashback no campo de batalha, vamos entender seu ato.

Mais adiante, a narrativa cospe o discurso forçado e “auto-importante” sobre racismo numa cena constrangedora quando os soldados, em campo aberto de batalha, ouvem por autofalantes uma mensagem das forças alemãs tentando alertá-los sobre o desprezo dos ocupantes das altas patentes do exército para com os soldados negros. Fica claro aí que essa fala pertence a um alterego do cineasta, tornando tudo ainda mais artificial.

Como se não bastasse, a relação paternal-filial do garotinho Ângelo (Matteo Sciabordi) com o grandalhão Bishop (Michael Ealy) pretende ganhar o espectador pela graça, principalmente quando o pequeno abre a boca para dizer coisas ingênuas (ele chama o soldado de “gigante de chocolate”), evidenciando seu olhar infantil diante do horror da guerra.

Além disso (e me parece algo bastante inusitado na filmografia de Spike Lee), a história ainda conta com requintes fantásticos, traduzido pela cabeça de uma estátua que Bishop carrega consigo e crer ser uma fonte de milagres que sempre o protege (o que reforça ainda mais o tom de “ingenuidade” da situação). Acredito que nem preciso dizer como a trilha sonora se aproveita disso para soar o tempo todo “emocionante”.

A frustração pelo filme não vem nem tanto dos tropeços narrativos, mas principalmente pela oportunidade renovadora que Lee teve nas mãos para fazer um filme de guerra com teor antirracista. Ele continua filmando bem e não faz feio em retratar conflitos armados em um campo de batalha, mas acaba perdendo o tato quando a questão é ser pertinente sobre um tema em que ele mesmo já foi tão a fundo e com excelentes resultados. Dessa vez, ele fez a coisa errada.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Mais Curtinhas

Monstros Vs Alienígenas (Monters Vs. Aliens, EUA, 2009)
Dir: Rob Letterman e Conrad Vernon


Muito embora o humor dessa simpática animação da Dreamworks soe um tanto bobinha, Monstros Vs. Alienígenas é um boa surpresa pois não se prende aos clichês ou pelo menos sabe contornar os lugares-comuns. Na realidade, já se mostra interessante por ser um filme catástrofe travestido de animação digital, funcionando também como comédia. Susan Murphy, no dia de seu casamento, é atingida por um meteorito que a torna uma mulher gigante. Ela então é escondida pelo governo norte-americano juntamente com outros “monstros” numa base militar. No entanto, eles terão de salvar o planeta quando uma invasão alienígena tentar destruir o planeta Terra. O filme é cheio de estranhezas, a começar pelas criaturas que serão os novos amiguinhos de Susana, desde um cientista maluco que se transformou numa barata, até uma geléia gosmenta sem cérebro. É o tipo de filme que rende bons momentos de diversão despretensiosa e consegue lembrar (homenagear também) os filmes B de ficção científica. De uma estrutura convencional, o filme consegue ser inventivo, mas sem estardalhaços.


Um Ato de Liberdade (Defiance, EUA, 2008)
Dir: Edward Zwick


Por mais que esse filme consiga ser melhor que Diamante de Sangue, projeto anterior dirigido por Edward Zwick, é um grande desperdício ver uma história tão forte e interessante desbancar para o sentimentalismo simples, daquelas que precisam expor o letreiro “uma história real” para termos a obrigação de se importar (e emocionar) com o que é mostrado. A narrativa do filme utiliza (mais uma vez) o tema do holocausto quando a investida nazista sobre os judeus do leste europeu faz com que três irmãos se refugiem nas florestas da Bielorrússia. Logo, eles são seguidos por outros tantos judeus que formarão um grupo de refugiados sob a liderança de um dos irmãos, Tuvia (Daniel Craig), criando, assim, uma rixa com o outro irmão, Zus (Liev Schraiber). O roteiro começa por discutir pontos interessantes (mas nada novos) como a traição de alguns judeus que passavam informações aos alemães, ou a situação dos intelectuais que não possuíam habilidade para o trabalho braçal na mata. A coisa piora quando o foco da história recai sobre os dramas amorosos entre os refugiados ou os choques entre os dois irmãos. Se Daniel Craig funciona muito bem como James Bond, seu ar de durão e expressão bravia impedem um envolvimento mais emocional. Poderia sobrar para Liev Schareiber, mas ele faz mais o tipo do irmão encrenqueiro. E mesmo com uma fotografia bonita, o filme tem pouco de marcante e muito mais de pretensão em ser politicamente relevante, assim como o longa anterior de Zwick.


The Spirit – O Filme (The Spirit, EUA, 2009)
Dir: Frank Miller


O maior problema de The Spirit está no tom. Às vezes parece um noir estilizado, outras um filme-conspiração em que um lunático tenta ser o dono do mundo, e na pior das hipóteses o filme ainda quer ser uma comédia cartunesca de humor-negro. Não conseguindo se fixar em nenhum desses gêneros, chega a apelar para o deboche despretensioso. O ex-policial Denny Colt (Gabriel Macht) forja seu próprio assassinato para retornar como o mascarado Spirit, heroi pronto a defender a cidade de Central City dos malfeitores, em especial o asqueroso Dr. Octopus (Samuel L. Jackson). Ao mesmo tempo que força a narrativa, o roteiro é primário e apela para frases feitas e diálogos artificiais. Por incrível que pareça, Eva Mendes é a melhor em cena, dentro de um elenco que conta com Sam Jackson, dono de um personagem mal escrito; Scarlett Johansson escalada para fazer caras e bicos sexies; e o protagonista Gabriel Macht, pouco marcante. O visual à lá Sin City (na verdade, baseado da HQ original), co-dirigido por Miller, parece ser o grande apelo do projeto, mas funcionava melhor no outro filme ou pelo menos não tem tanta razão de ser aqui, embora seja responsável por algumas imagens graficamente interessantes. No fim das contas, muito barulho por quase nada.


PS: Aproveito para iniciar aí ao lado o ranking de melhores filmes do ano que começa com os dez mais promissores. A lista provavelmente irá se alongar aos 20 quando mais obras de calibre aparecerem. Entre os Muros da Escola é o líder absoluto até então. Veremos as surpresas que o ano ainda nos reserva.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Curtinhas

Camelos Também Choram (Die Geschichte vom Weinenden Kamel, Alemanha/Mongólia, 2003)
Dir: Byambasuren Davaa e Luigi Falorni


No Deserto de Gobi, no sul da Mongólia, uma família rural de pastores de cabras e camelos vive no meio do nada, quase à parte do resto do mundo. É época dos camelos darem cria e para surpresa geral um deles dá luz a um filhote de pelo branco, diferente da coloração escura da mãe, passando a ser rejeitado por ela. É esse o conflito. Impressiona muito nesse documentário o fato de não haver nenhuma entrevista ou mesmo narração em off. A história é contada por si só, sem interferências diretas, e o mais incrível é que possui uma grande força narrativa. O filme aposta na curiosidade do espectador para seguir acompanhando aqueles personagens, seu modo de vida, e principalmente os rumos do camelo renegado. Mais do que a história de um animal rejeitado, o filme é sobre um povo rejeitado, uma família pobre à margem da sociedade e excluída da dita “civilização”. O choque entre gerações é sentido no garotinho que deseja ter uma TV em casa, em detrimento do costume familiar das histórias orais. Os planos estáticos da câmera priorizam uma fotografia belíssima tendo o Deserto de Gobi como cenário. Mais belo ainda é o momento final quando um músico usa de sua arte para tentar reconciliar os camelos. Uma grata e grande surpresa.


Sinédoque, Nova York (Synecdoche, New York, EUA, 2008)
Dir: Charlie Kaufman


Charlie Kaufman tem boas idéias e, quando bem dirigidas, rendem grandes filmes (Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, Quero Ser John Malkovich). Uma pena que sua estreia na direção possua um ar intelectualoide de obra complexa que torna tudo muito pretensioso e pouco agradável para o espectador (embora parece que o próprio Kaufman se divertiu muito fazendo o filme). A narrativa evoca “complexidade” porque respeita os caminhos da psicologia confusa de Caden, um dramaturgo (Philip Seymour Hoffman) atormentado pelos rumos incertos de sua vida pessoal/profissional, algo que começa a incomodar quando sua esposa resolve deixá-lo levando embora sua filha pequena. A partir daí ele decide montar uma peça autobiográfica que nunca é encenada, somente ensaiada à exaustão. Daí a sinédoque do título, termo que designa a substituição de um termo por outro equivalente; e a cidade de Nova Iorque, replicada num estúdio, passa a representar o mundo em construção de Caden.

O maior problema do filme está em querer ser definitivo sobre temas universais como a morte, amor, velhice, etc. Mesmo assim, há de se considerar momentos brilhantes no filme (o surgimento dos sósias e dos sósias dos sósias, por exemplo), e toda sua estrutura de elipses que saltam anos no tempo sem o menor aviso. O mais incrível é como uma obra tão falha possa contar com um elenco tão excepcional, de uma singela Samantha Morton às afiadas Emily Watson e Dianne Wiest. Existe também uma singeleza na forma como o filme termina, embora pareça diagnosticar o caráter de lição de moral ao mostrar como a vida de alguém é o conjunto de sua vivência com todos ao redor, ou algo assim. Com um diretor mais pé no chão, a história conseguiria ser mais objetiva.